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- 17 de dezembro de 2019

Pacificação e Reconciliação Nacional: da Lei da Anistia à Comissão Nacional da Verdade

Pacificação e Reconciliação Nacional:

da Lei da Anistia à Comissão Nacional da Verdade

 

Cecilia Maria Bouças Coimbra

Escolher entre o que lembrar e o que esquecer

é antes de tudo uma ação política.

(Joana D’Arc Ferraz e Cíntia Dantas).

 

O processo de estruturação da memória social tem se caracterizado como um dos mais sensíveis às disputas e aos confrontos de grupos, especialmente daqueles que ocupam os diferentes aparatos de Estado. As memórias que nos têm sido impostas selecionam e ordenam os acontecimentos segundo critérios e interesses daqueles que detêm poder nesses diferentes equipamentos sociais. Constrói-se, com isso, zonas de sombras, silêncios, esquecimentos, repressões e negações.

 

Pollak (1989) nos aponta como a memória pode ser construída e reconstruída continuamente. As chamadas políticas de memória gestadas e executadas pelo Estado universalizam determinadas narrativas. Assim, a construção da memória por parte do Estado é um processo de violência contra as múltiplas memórias que não foram escolhidas para compor o que chamam de “preservação do passado”. Este aspecto de violência está implícito, portanto, em qualquer construção social da memória que silencia as “memórias das bordas”, as memórias perigosas que resistem, insistem e que permanecem se fazendo, sempre minoritárias e restritas a certos grupos. Por isso, entendemos que a construção da verdade e da memória não é neutra e nem poderia ser. Os discursos que defendem a neutralidade costumam ocultar a posição daqueles que os emitem. Assim, “conceber a memória como um foco de resistência no seio das relações de poder, implica outra ética e outra posição política”. (Gondar, 2005, p.12).

 

Apesar das disputas sobre nossa memória recente, do poderio de uma certa “história oficial” que nos vem sendo imposta, o Estado brasileiro não tem conseguido silenciar, ocultar ou eliminar a produção cotidiana de outras histórias, outras memórias sempre minoritárias.

 

Este pequeno texto aponta para a construção do silenciamento e do esquecimento no Brasil após 21 anos de ditadura civil-militar e mantida, em parte, até os dias de hoje em um “processo de transição política pactuada”. (Greco, 2003).

 

Alguns movimentos sociais, como o Grupo Tortura Nunca Mais/RJ[1], têm se esforçado, nos últimos trinta anos, para “não deixar essa memória escapar, mas zelar pela sua conservação, contribuindo na reapropriação desses fragmentos de história esquecidos pela historiografia dominante”. (Gagnebin, 2006, p.34). Assim, é importante trazer os acordos e as estratégias de silenciamento e esquecimento que vêm desde a sanção da Lei da Anistia, em 1979, ainda em plena vigência da ditadura, até os dias atuais no chamado Estado Democrático de Direito.

 

Traremos para o debate dois blocos de questões. O primeiro refere-se à luta pela Anistia Ampla, Geral e Irrestrita e os pactos para se chegar a anistia parcial de 1979 sancionada pela ditadura. O segundo prende-se à instalação da Comissão Nacional da Verdade e Memória[2], em 2011, já em pleno funcionamento democrático e seus limites e acordos então vigentes.

 

A Anistia Que Queríamos: A Anistia que Tivemos.

 

Anistia é um ato pelo qual os governos resolvem perdoar generosamente as injustiças e os crimes que eles mesmos cometeram. (Aparício Torelly, O Barão de Itararé, apud Greco)

 

A Lei da Anistia, nº 6683/1979, votada no bojo da chamada “abertura política” do último general Presidente João Figueiredo (1979-1985), faz parte da “distensão lenta, gradual e segura” iniciada por seu antecessor o general Ernesto Geisel (1974-1979). O que se apregoa à época é a necessidade de se chegar a um “generoso consenso” (Geisel, 1974, p.38) que resultaria de um acordo firmado com o conjunto da sociedade brasileira. Entretanto, dentro da lógica de funcionamento do Estado, o que ocorre é um pacto interpares: “uma negociação interna feita nas entranhas da própria ditadura entre os blocos que participaram do poder” (Greco, idem).

 

Desde meados dos anos de 1970, ainda em plena vigência da ditadura, diferentes movimentos sociais se reorganizam e se fortalecem. Novas práticas de resistência vão se gestando. Práticas que rechaçam e criticam os movimentos tradicionalmente instituídos, a própria luta armada, os dois partidos políticos então permitidos (MDB e ARENA) e que politizam o cotidiano dos lugares de trabalho e moradia, inventando novas formas de se fazer política. Esses “novos sujeitos políticos”[3], no início dos anos de 1980, começam a existir com os próprios estilhaços advindos das derrotas impostas por ocasião do golpe de 1964 e do AI-5, em 1968. Seus sobreviventes pensam criticamente várias de suas experiências. Esses “novos sujeitos” emergem de diferentes crises: da Igreja, dos antigos movimentos sindicais, dos tradicionais partidos políticos (Sader, 1988).

 

Assim, pequenos atos e experiências concretas que se manifestam com aparente timidez, por muitos considerados insignificantes, começam a romper com o silêncio imposto. São, sem dúvida, expressões de resistência, autonomia, criatividade e singularidade que vão forjando práticas instituintes. São as Comissões Eclesiais de Base (CEBs) vinculadas à Teologia da Libertação; os movimentos contra a Carestia e o Custo de Vida e as Comissões de Saúde e Educação em São Paulo; as Associações de Moradores no Rio de Janeiro; o chamado novo sindicalismo que, em 1977, com a campanha dos metalúrgicos do ABC torna-se um marco na retomada das lutas que culminam com as greves de 1978 e 1979 (Coimbra, 1995).

 

É neste caldeirão que começa a ganhar corpo, a partir de 1975, a luta por uma Anistia Ampla, Geral e Irrestrita.

 

Ao lado desses novos movimentos sociais há também uma escalada de ações terroristas pró-manutenção da ditadura. Reacendem-se antigos grupos parapoliciais e paramilitares quando nas greves de 1979 são presos dezenas de trabalhadores e quatro grevistas são mortos pela Polícia Militar[4]. Mais de cem atentados a bomba ocorrem dirigidos contra muitos desses movimentos sociais, a imprensa alternativa, as bancas de jornais que distribuíam tais publicações e revistas e as entidades mobilizadas contra a ditadura.

 

Os Comitês Brasileiros pela Anistia (CBAs) expandem-se por vários estados além de obter grande repercussão no exterior, potencializando a Campanha por uma anistia ampla, geral e irrestrita que ganha espaço junto à grande imprensa nacional e internacional.

 

Entretanto, dentro da lógica de funcionamento do Estado e trilhando o caminho que interessa às forças político-econômicas presentes no cenário brasileiro, o governo Figueiredo apresenta, com grande estardalhaço, a sua Anistia como a bandeira do perdão, do esquecimento, do consenso, da reciprocidade, da pacificação, da reconciliação. São considerados “revanchistas” todos os que insistem colocar em risco essa “abertura lenta, gradual e segura” generosamente oferecida pela ditadura.

 

A Carta do I Congresso Nacional pela Anistia, realizado em São Paulo, em novembro de 1978, claramente reafirma os princípios defendidos pelos CBAs em sua luta aberta e direta contra o terrorismo de Estado e as manobras que se tenta fazer à época. Diz ela em um de seus trechos:

 

A anistia pela qual lutamos deve ser Ampla para todas as manifestações de oposição ao regime; Geral para todas as vítimas da repressão e Irrestrita sem discriminações ou restrições. Não aceitamos a anistia parcial e repudiamos a anistia recíproca. Exigimos o fim radical e absoluto das torturas, dos aparatos de repressão e do regime a que eles servem. (Resoluções, p. 5).

 

Não podemos esquecer que o processo da anistia defendido pelo governo deveria ser “gradual e seguro” e, portanto, o que a ditadura defende é uma anistia parcial e recíproca que se torna realidade com a Lei 6683/79, promulgada em 28 de agosto e aprovada em bloco pelos

 

líderes dos dois partidos, ARENA e MDB. Houve a discordância silenciosa de parte dos vinte e seis senadores e a declaração de voto contrário de vinte e nove dos cento e oitenta e nove deputados do MDB (…). Ficam confirmadas, assim, a submissão do poder legislativo à ditadura militar e a subserviência e pusilanimidade do partido de oposição consentida. (Greco, 2003, p. 189).

 

Afirma-se por esta “anistia fardada”, no dizer de Hélio Silva (1985), a reciprocidade (tentativa de se consolidar a não punição dos agentes da repressão através dos chamados “crimes conexos”) e a exclusão dos militantes condenados por cometerem “crimes de sangue”. Colocam a possibilidade do indulto, que viria gradualmente a partir da análise de cada caso. Ou seja, anistia-se os torturadores e espera-se a boa vontade e magnanimidade do presidente general para com os militantes que não foram anistiados.

 

Sem dúvida, a Lei 6683/79 é a Lei da Anistia Parcial, Restrita e Recíproca da ditadura que muitos companheiros que viveram e lutaram à época por uma anistia ampla, geral e irrestrita, esquecem e comemoram-na nos dias de hoje. A “Anistia Amnésia”[5] parece também ter atingido aqueles que outrora lutaram contra a ditadura civil-militar.

 

A Comissão Negociada: a Comissão Que Dizem Ser o Possível Hoje[6]

 

É preciso não ter medo; é preciso ter a coragem de dizer.

(Carlos Marighella).

 

Assim, como já assinalado acima, desde a sanção da Lei da Anistia, em 1979, já se questionava a interpretação hegemônica que a ela se deu. Ou seja, pelos chamados “crimes conexos”, todos aqueles que cometeram, em nome da segurança nacional, atos de terror (sequestros, prisões ilegais, torturas, assassinatos e ocultação de restos mortais) estariam anistiados.

 

Alguns movimentos sociais que nunca aceitaram tal interpretação e juristas, como os Drs. Fábio Konder Comparato e Hélio Bicudo, já apontaram que não há conexidade entre os atos praticados pelos grupos de resistência ao regime militar e o terrorismo de Estado que à época se implantou em nosso país. Apesar disto, a perversa interpretação que se deu a este parágrafo da Anistia Parcial, Restritiva e Recíproca proposta pela ditadura é a de que os torturadores estariam anistiados.

 

Sabemos que, desde 1979 até os dias de hoje, acordos são feitos entre as forças político-econômicas que respaldam e apoiam este regime de terror, e os diferentes governos civis que se sucedem após 1985.

 

Estes mesmos acordos — entre forças civis e militares — continuam dos mais diversos modos presentes na história do Brasil, vigorando até hoje.

 

Neste cenário de acordos e concessões mútuas, em dezembro de 1995, foi sancionada pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso a Lei 9.140, que repara financeiramente os familiares de mortos e desaparecidos, cria uma Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e concede aos desaparecidos um atestado de óbito. Ou seja, apenas os declara mortos, sem no entanto esclarecer onde, quando e como ocorrem tais crimes e quem são os seus responsáveis. Em realidade, apenas um atestado de “morte presumida”. As provas de que esses mortos e desaparecidos estiveram sob a guarda do Estado e/ou foram assassinados por agentes deste mesmo Estado deveriam ser demonstradas por seus próprios familiares. Com isto, de modo perverso, coloca-se o ônus das provas nas mãos dos familiares: os arquivos da ditadura continuam trancados a sete chaves.

 

Por pressão de vários movimentos de direitos humanos, de familiares de mortos e desaparecidos, cria-se, nos inícios dos anos 2000, em alguns estados brasileiros, Comissões de Reparação Econômica para familiares de mortos e desaparecidos e ex-presos políticos. Seguindo os acordos já estabelecidos, também essas comissões estaduais de reparação exigem que os interessados provem sua prisão, tortura, morte ou desaparecimento, visto os arquivos continuarem inacessíveis.

 

O próprio conceito de Reparação, aprovado pela Assembleia Geral da ONU em 2005, aponta para a necessária investigação, averiguação, publicização e responsabilização desses atos criminosos, para “medidas que possam impedir e, mesmo, garantir a não repetição de tais violações” e para a restituição, compensação e reabilitação dos atingidos [7].

 

O Brasil, de todos os países latino-americanos que passaram por recentes ditaduras, é o mais atrasado neste processo de reparação. Pela Lei 9.140/95 de Fernando Henrique Cardoso apenas se faz a reparação econômica, não se investigando e publicizando os atos de terror e nem responsabilizando qualquer agente do Estado ditatorial. O Brasil inicia, somente em 2011, mesmo timidamente, este processo de reparação. Apesar dos limites impostos pelo Estado, entendemos que a compensação econômica é importante, mas só tem sentido para a afirmação de algo novo em nossas vidas se for parte integrante e o final de um processo. Sem isto, as reparações meramente financeiras se transformam — e é o que o Estado brasileiro pretende — em um competente “cala-boca”, em uma proposta de esquecimento e silenciamento para os atingidos e para a sociedade em geral.

 

Atravessada por todas estas tensões e acordos firmados, a Comissão Nacional da Verdade e Memória foi votada como “aquilo que é o possível hoje”.

 

É importante ressaltar que, em dezembro de 2010, a Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA condena o Estado Brasileiro a investigar, esclarecer e responsabilizar seus agentes que participaram do desaparecimento de mais de 70 opositores políticos na repressão à Guerrilha do Araguaia[8]. Estende esta sentença aos cerca de 500 mortos e desaparecidos políticos, afirmando que a interpretação oficial da Lei da Anistia não é empecilho para tais atos reparatórios. Este é o primeiro caso ligado ao período ditatorial brasileiro julgado por um tribunal internacional[9]. O Brasil deveria responder à OEA no prazo de um ano, o que até a presente data não ocorreu. E, no bojo de tais questões, foi votada a “toque de caixa”, em regime de urgência urgentíssima, a Comissão do Possível como forma de visibilizar para a OEA alguma ação reparatória.

 

A primeira versão desta Comissão é apresentada no bojo do 3º Plano Nacional de Direitos Humanos, em dezembro de 2009. Há forte pressão dos comandantes militares e do Ministro da Defesa à época, Nelson Jobim, que colocam seus cargos à disposição por serem contrários a implantação de uma Comissão Nacional da Verdade, Memória e Justiça – nome que constava na primeira versão. O Executivo cede à chantagem e, em maio de 2010, anuncia a segunda versão do 3º Plano Nacional de Direitos Humanos, onde a proposta da Comissão da Verdade é totalmente modificada. Forças conservadoras também estão presentes questionando vários outros pontos desse 3º Plano. Saem vitoriosas e o Presidente à época, Luiz Inácio Lula da Silva, volta atrás em várias questões como a do aborto, das ocupações rurais, da liberdade de imprensa, dentre outras. Venceram as ideias daqueles que defendem o Brasil como um país de privilégios, desigual, racista, homofóbico e sexista; onde mulheres que praticam o aborto são criminalizadas e morrem por falta de atendimento; onde camponeses são mortos na luta por suas terras; onde a orientação sexual é definidora de uma pessoa; onde a diversidade religiosa do país é oprimida; onde o monopólio dos meios de comunicação dita as regras e viola os chamados direitos humanos em horário nobre como se tudo não passasse de uma peça de ficção.

 

A isto tudo, acrescenta-se a questão da Comissão Nacional da Verdade e Memória que, com uma série de reformulações tornou-se, em realidade, uma grande mis-en-scène midiática. Esta última versão do PNDH-3, aprovada em 12 de maio de 2010, pelo Decreto 7.177, apresenta uma série de modificações. Dentre as mais importantes podemos citar: seu caráter governamental e de negação à participação social.

 

O novo texto, sutil e perversamente, retira o termo repressão políticasubstituindo-o porpráticas de violações de direitos humanos”. Da mesma forma, a identificação dos mortos e desaparecidos ocorrerá somente com base no acesso às informaçõesque até hoje continuam sendo negadas.

 

Substituiu-se também, o termo “regime de 1964-1985 e resistência popular à repressão” por “graves violações de direitos humanos no período de 18 de setembro de 1946 até a data da promulgação da Constituição (1988)”.

 

A determinação de alterar nomes de ruas, logradouros e prédios públicos etc., que indiquem nomes de pessoas comprometidas com a ditadura foi retirada. Longa luta de algumas entidades de direitos humanos, como o GTNM/RJ, para dar nomes a ruas, escolas, creches etc., de companheiros mortos e desaparecidos políticos e retirar os nomes de membros do aparato de repressão que continuam existindo em vários logradouros públicos de nosso país.

 

Não ignoramos que a memória é um campo de lutas e que estas modificações no PNDH-3 com relação à Comissão Nacional da Verdade e Memória está fortalecendo uma certa história oficial, pois em momento algum se refere à ditadura civil-militar e a seu período histórico (1964-1985). Ela, simplesmente, desaparece. Fortalece-se, com isso, a história única e verdadeira. É como afirma o filósofo da Universidade de São Paulo, Paulo Arantes: “Acresce que, além de abrandada, a ditadura começa também a encolher”. (2010, p.209).

 

No Brasil, a tortura e uma série de outras violações continuam sendo aplicadas, sem a menor cerimônia, em dependências policiais e carcerárias e em muitos outros estabelecimentos como os utilizados para o que chamam de ‘reeducação’ de ‘jovens infratores’. Principalmente, após o 11 de setembro, o governo Bush vem globalizando não só a banalização da tortura, mas fundamentalmente sua legalização: em alguns casos essa prática é defendida como necessária, como ‘um mal menor’. Devemos lembrar que a política de segurança dita pública utilizada tem se pautado pelo chamado “choque de ordem”. Tal política, baseada na Tolerância Zero (Wacquant, 1992), importada dos Estados Unidos, institui como natural e, por vezes, necessária a prática da tortura e do extermínio, em especial nas camadas mais empobrecidas da população.

Cautelosamente tratadas e meticulosamente negociadas, as memórias do terror de Estado estão sendo conduzidas por uma ‘política de memória’ delineada por governos compostos de pessoas que foram atingidas pela ditadura. Por sua vez, esses governos (…) [construíram] as suas ascensões ao poder com firme compromisso de manter intactas as premissas básicas defendidas pelo capitalismo (…).

(Ferraz e Dantas, 2014, p. 10).

 

Assim, a proposta de Comissão Nacional da Verdade e Memória, em sua segunda versão, é intencionalmente bastante limitada. Como afirmado, já no próprio texto do Projeto de Lei, estreita-se a margem de atuação da Comissão, dando-lhe poderes legais diminutos, fixando um pequeno número de integrantes escolhidos diretamente pela Presidente da República, não tendo orçamento próprio, com duração de apenas 2 anos e desviando o foco de sua atenção ao fixar em 42 anos o período a ser investigado (1946 a 1988), tentando apagar da história do Brasil os anos de ditadura civil-militar (1964 a 1985). Além disso, impede que a Comissão investigue as responsabilidades pelas atrocidades cometidas e envie as devidas conclusões às autoridades competentes para que estas promovam a responsabilização. E, para culminar, a publicização de suas conclusões irá depender da própria Comissão. Ou seja, continuamos guardando sigilo, produzindo segredo sobre aquele período de terror: continuamos produzindo esquecimento. Sem dúvida que toda esta montagem é intencional e se destina a oficializar uma certa história, uma certa memória…

 

Durante todo o seu funcionamento, a Comissão Nacional da Verdade tem mantido todos os seus trabalhos em total sigilo, assim como a tomada de depoimentos de alguns membros da repressão chamados por ela. Mantém-se a censura da ditadura!

 

Entretanto, pequenas brechas, mesmo que consentidas, se abrem. Por pressão de alguns grupos e movimentos, de alguns familiares, as Comissões Estaduais da Verdade de São Paulo e do Rio de Janeiro tornam públicas suas sessões. Da mesma forma, o depoimento à Comissão Nacional da Verdade do ex-comandante do DOI-CODI/SP, Carlos Alberto Brilhante Ustra, dado em maio de 2013, é público, mas sob controle: somente 100 lugares foram reservados para “os interessados” e o militar conseguiu na Justiça Federal habeas corpus garantindo o direito de permanecer calado. Sem dúvida que é importante um ex-comandante da repressão apresentar-se publicamente e ser questionado por seus atos de terror. É a primeira vez que isto ocorre em um governo civil pós-ditadura. Entretanto, há que se ter cuidado. Ao criar-se um clima eufórico, emocional, de “comoção nacional” — como assim preconiza a Presidente da República em entrevista à época — se produz uma cortina de fumaça no sentido de abrandar as críticas que se fazem ao funcionamento da Comissão Nacional da Verdade.

 

Graças às pressões que há muito vêm sendo feitas por alguns movimentos sociais, em maio de 2013, é tornado público um relatório parcial da Comissão. Importante lembrar que mis-en-scènes midiáticas ocorrem apenas para tornar oficiais fatos que há muito se sabia. Espetacularmente são anunciados, como se fossem produtos de pesquisa da Comissão, os assassinatos sob tortura de Rubens Paiva no DOI-CODI/RJ e de Wladimir Herzog no de São Paulo. Anuncia-se, também de modo espetacular, que “o extermínio e a tortura tiveram o aval dos presidentes militares e de seus ministros” e que o Estado ditatorial “usou força desproporcional” na repressão à Guerrilha do Araguaia, utilizando bombas de napalm. Fatos — já fartamente documentados através de pesquisas feitas, sem qualquer apoio governamental, por muitos familiares e movimentos de direitos humanos — são apresentados como importantes descobertas da Comissão, agora, pelo menos, visibilizados pela grande mídia e tornados oficiais pelo Estado brasileiro. O mesmo ocorre no relatório parcial onde se afirma que “a tortura teve início logo após o golpe de ’64” e que “já naquele ano funcionavam centros de tortura”.

 

Além dos sequestros de pesquisas realizadas anteriormente há, por parte da Comissão, outros exemplos de “falta de vontade política”. Dentre eles podemos citar dois casos. O primeiro refere-se ao morto político Raul Amaro Nin Ferreira[10]. Quando do levantamento realizado por movimentos de direitos humanos em Dossiê entregue ao governo Fernando Henrique Cardoso[11], várias provas já se apresentavam através dos depoimentos de um ex-soldado e de alguns ex-presos políticos sobre a prisão e morte de Raul. Tanto que sua família, em 1979, iniciou um processo contra a União, ganho em 1994, quando o Estado foi responsabilizado pela prisão, tortura e morte de Raul. Após a instalação das Comissões Nacional e Estadual (RJ) da Verdade e Memória, seus familiares, por conta própria, iniciam uma exaustiva pesquisa percorrendo os arquivos do DOPS/RJ, do Arquivo Nacional e do GTNM/RJ, dentre outros, apesar dos principais arquivos da repressão ainda continuarem fechados e inacessíveis. Várias testemunhas são ouvidas e chega-se a resultados que apontam o cenário do assassinato de Raul e 19 nomes de agentes da repressão envolvidos em sua prisão, tortura e morte, culminando com as torturas sofridas no Hospital Central do Exército onde veio a falecer[12]. Mesmo tendo em mãos tal pesquisa, as Comissões Nacional e estadual (RJ) da Verdade nada fizeram; apenas aceitaram-na. Sequer tiveram a iniciativa de chamar alguns desses 19 agentes da repressão para serem ouvidos; sequer aprofundaram tal pesquisa.

 

Outro exemplo refere-se às torturas e ao extermínio de comunidades indígenas inteiras durante o período ditatorial. Em abril de 2013, já em pleno funcionamento da Comissão Nacional, é encontrado o “Relatório Figueiredo”, escrito entre 1967-1968. Este Relatório, desaparecido por 45 anos, supostamente em um incêndio no Ministério da Agricultura[13], aponta de modo estarrecedor as torturas e o extermínio de tribos inteiras realizadas pelas forças do Estado. O Relatório encaminhado à Comissão Nacional é pouquíssimo explorado, pouquíssimo utilizado. Não há interesse político em tornar pública as terríveis ações criminosas ali descritas. Precauções são tomadas para que alguns nomes de agentes da repressão ali constantes não sejam divulgados. Os acordos e pactos continuam vigorando. Marcelo Zelic (2014) faz um minucioso e extenso estudo não somente sobre o Relatório Figueiredo, mas em diversos livros e documentos considerados sigilosos sobre a questão indígena no período ditatorial. Aponta para criação da chamada Guarda Rural Indígena – GRIN. Em vídeo estarrecedor, mostra o desfile realizado por esta Guarda, em 03 de março de 1970, em Belo Horizonte, onde marcham tendo um índio pendurado no pau-de-arara. Apresenta, ainda, documentos da época que comprovam que o GRIN “preparava os índios para cuidar da ordem nas tribos”. Torna-se, inclusive, uma espécie de atração turística participando de várias solenidades da ditadura. No Relatório final da Comissão Nacional da Verdade e Memória somente 35 páginas tratam deste pouco estudado aspecto de nossa história.

 

Os presos, mortos e desaparecidos indígenas não possuem rosto, identidade, etnia, parentes, histórias. A sociedade terá que se contentar com tão poucas páginas destinadas ao tema.

(Zelic, 2014).

 

A grande novidade deste Relatório Final é enumeração de vários centros de tortura, inclusive dezesseis só no Rio de Janeiro e a listagem de mais de 300 torturadores. Sem dúvida é um avanço, graças às pressões exercidas; entretanto, sem ultrapassar certos limites e acordos realizados, dentro da lógica de funcionamento do Estado. Não por acaso, em 10 de dezembro de 2014, quando é apresentado oficialmente este Relatório Final, o discurso da Presidente Dilma Rousseff aponta claramente essas negociações, “os pactos e acordos” realizados. Na apresentação da própria Lei 12.528, de 18 de novembro de 2011, que cria a Comissão Nacional da Verdade e Memória lê-se que esta se institui “a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional” (Brasil, 2011, p. 1).

 

Assim, os crimes cometidos pela ditadura civil-militar que controlou o Brasil por mais de 20 anos começam, ainda timidamente, a ser apontados, embora os documentos que comprovam essas atrocidades continuem em segredo, assim como os depoimentos daqueles que cometeram tais crimes.

 

Sem dúvida, pequenos avanços ocorrem, em função dos enfrentamentos surgidos durante os quase três anos de trabalho da Comissão Nacional da Verdade e Memória. Várias comissões estaduais são criadas; entretanto, muito poucas com autonomia do governo federal que, além de escolher os nomes que compuseram a Comissão Nacional, “notáveis” de sua confiança, mantêm as comissões dos estados sob monitoramento desses membros. Algumas universidades federais e sindicatos criam suas próprias comissões da verdade e memória. Entretanto, muitas nem chegam a se formar e outras têm uma duração efêmera. Sabemos das limitações das chamadas políticas de memória executadas, geridas e controladas pelo Estado.

 

É neste quadro que continua a luta para que todos os documentos e relatórios dos aparatos de repressão sejam amplamente abertos e publicizados; onde o período de terrorismo de Estado (1964-1985), com suas memórias de borda e marginais, seja efetivamente investigado, esclarecido e conhecido. Continua a luta para que nossa história recente em sua multiplicidade possa ser debatida pelas novas gerações, e que os agentes do Estado terrorista possam ser responsabilizados. Que se conheça e se torne público os nomes de toda a cadeia de comando, desde os presidentes militares, passando por seus ministros e comandantes militares até os civis — grandes proprietários rurais e empresários —, que não só respaldaram e/ou apoiaram o terror, mas que o financiaram e até hoje encontram-se presentes no cenário politico brasileiro. Nós, os atingidos, há mais de 40 anos damos os nossos depoimentos. É fundamental, é pedagógico que aqueles que serviram ao terror sejam chamados, apareçam à luz do dia e, publicamente, tenham seus crimes enumerados.

 

Há muito ainda para dizer, há muito ainda para contar. Há que não entrar na chantagem do “possível” dito em nome da governabilidade democrática e em função de acordos e pactos realizados que, em realidade, ressalta certas memórias em detrimento de outras, que adoça determinados acontecimentos, que produz uma outra história, que mantém no silêncio  e no esquecimento memórias consideradas perigosas.

Este texto, portanto, afirma que:

 

Há sempre uma concepção de memória social implicada na escolha do que conservar e do que interrogar. Há nessa escolha uma aposta, um penhor, uma intencionalidade quanto ao porvir. Tanto quanto o ato de recordar, nossa perspectiva põe em jogo um futuro: ela desenha um mundo possível, a vida que se quer viver e aquilo que se quer lembrar. O conceito de memória produzido no presente, é uma maneira de pensar o passado em função do futuro que se almeja. Seja qual for a escolha em que nos situemos, estamos comprometidos ética e politicamente”. (Gondar, 2005, p. 17).

 

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Zelic, M. “Comissão Nacional da Verdade e Povos Indígenas: a um passo da omissão”, 2014. In: https://docs.goolge.com<document<edit. Acesso em: 21 de setembro de 2015.



[1] O GTNM/RJ foi fundado em 1985 por familiares de mortos e desaparecidos políticos e ex-presos políticos. Foi o primeiro de cinco outros fundados posteriormente em outros estados brasileiros.

[2] Neste texto não se fará uma análise crítica da produção histórica da verdade enquanto dispositivo de poder e nem das leis que, emanando do poder de Estado, gerem melhor as condutas e a vida. Entretanto, apesar de não serem trabalhados aqui, tais conceitos atravessam este texto. Sobre o tema consultar a obra de Michel Foucault.

[3] Termo cunhado por Eder Sader (1988).

[4] São eles: Benedito Gonçalves, Guido Leão e Orocílio Martins Gonçalves em Minas Gerais e Santo Dias em São Paulo.

[5] Termo cunhado por Greco (2003).

[6] Algumas ideias deste item encontram-se em Coimbra (2013).

[7] Resolução nº 60/147, capítulo 10 “Reparação por Dano Sofrido”, artigos 18 ao 23.

[8] Movimento de resistência ao regime militar (1966-1974) na região do Bico do Papagaio entre o Pará, Maranhão e Goiás, organizado por militantes do PCdoB.

[9] Esta petição à OEA foi encaminhada pelo Grupo Tortura Nunca Mais/RJ, CEJIL (Centro pela Justiça e Direito Internacional) e Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos de São Paulo.

[10] Engenheiro, assassinado em agosto de 1971, no DOI-CODI/RJ. Foi violentamente torturado e levado para o Hospital Central do Exército onde as torturas continuaram até sua morte.

[11] Trata-se do Dossiê dos Mortos e Desaparecidos Políticos a partir de 1964, realizado pelos Grupos Tortura Nunca Mais/RJ, PE e MG e Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos de SP, 1995.

[12] Sobre esta pesquisa, entregue oficialmente às Comissões Nacional e Estadual (RJ) da Verdade consultar Raul Amaro Nin Ferreira: Relatório, 2014.

[13] Este é um dos argumentos exaustivamente utilizados pelos diferentes governos civis pós-ditadura. Os arquivos não existem, pois foram queimados acidentalmente ou não.

 

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