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- 21 de fevereiro de 2014

Direitos Humanos com Afinco e Afeto

José Leal

Carta Aberta

Estamos próximos da data comemorativa dos 66 anos da Declaração Universal dos Diretos Humanos. Talvez este seja o momento de refletir sobre alguns fatos da História do Brasil que são mantidos como herança e ainda servem de estorvo para a realização dos Direitos Humanos no Brasil.

Entre tantos, este ano de 2014, nos trás à memória os 192 anos da Proclamação da Independência do Brasil que herdou o regime de escravidão, mantendo-o por 66 anos.

Aprofundou o processo de grilagem de terras inaugurado com a invasão europeia de 1500, responsável pelo genocídio cometido contra a população indígena do Brasil que resistiu à dominação. Manteve o cativeiro e as torturas aos negros no trabalho escravo, e cometeu o massacre dos rebelados Malês e das revoltas Quilombolas.

A Constituição do Império de 1824 manteve o regime escravocrata e a colonização fortalecidos pelo sistema de capitanias hereditárias, que foi convertido como herança precursora dos feudos político-econômicos atuais.

Os fios dos tempos nos trás os 126 anos de promulgação da Lei Áurea, abolindo juridicamente o regime escravista no Brasil, mas condenando os negros aos seus próprios destinos, mantendo a exclusão que institucionalizou os escravos da abolição.

Desatamos os 125 anos de República, que levou cem anos para fazer uma revisão histórica e estabelecer uma Ordem Jurídica (Lei 7.716/89) de inclusão dos negros e negras como cidadãos.

Desde o período Colonial, passando pelo Império e estendendo-se pela República, a história da Anistia política no Brasil encontra-se registrada. Porém em nenhum desses períodos históricos registra-se a existência de fonte do direito para apurar as responsabilidades dos crimes de lesa-humanidade cometidos pelo Estado brasileiro, nem mesmo nas Anistias de 1956, 1961 e 1979 que foram promulgadas posteriormente à Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948.

Mantendo o rito da herança histórica, o poder político no Brasil nos põe em frente aos 50 anos do Golpe de Estado de 1964, que implantou a Ditadura Esguiana no Brasil, encarcerando mais uma vez a realização da Democracia e dos Direitos Humanos.

Esta trajetória nos coloca diante de duas vertentes de herança maligna. A primeira é que mesmo sendo extinto juridicamente em 1759, o “sistema de hereditariedade” volta acenando a bandeira doutrinária da “Segurança Nacional” do Golpe de 1937. Assim o Golpe de 1964 confirmou a existência de um determinado caráter hereditário no imaginário do poder do Estado. A herança em utilizar táticas golpistas desde o “Golpe de Maioridade” em 1840, como meio de solucionar conflitos políticos e socioeconômicos ao longo da História do Brasil. Mantendo sua estrutura jurídica baseada em atos institucionais seguindo o princípio de que: “ordem não se discute!”, o Golpe de 1964 fez ressurgir o autoritarismo, implantando a concepção militarizante em toda escala estatal para que, seguindo a doutrina da ESG, o Golpe executasse a “cirurgia no poder”, reimplantando o arbítrio no sistema orgânico estatal brasileiro.

Na segunda vertente, o “sistema de hereditariedade” ressurge como transtorno conversivo: – hereditariedade do sistema – aprimorando os mecanismos de distribuição de recompensas, de diversos benefícios entre seus pares e os concedidos em troca de apoiosfinanceiros e políticos. O imaginário da hereditariedade se materializou, se fortaleceu com a distribuição da proteína do privilégio, da garantia de imunidade às empresas de forte poder econômico-financeiro. Sistema que nos permite ver que a corrupção inicia-se pelo imaginário das “vantagens” que o poder pode gerar no contexto social, tanto à esquerda como à direita.

O culto ancestral à hereditariedade do sistema é uma das raízes que impedem o Estado brasileiro de proceder a Reforma Agrária como resposta aos anseios dos milhares de Sem Terra e de Sem Teto. De não demarcar as terras Quilombolas e de não conceber a importância da cultura negra para a história do Brasil. De não consolidar as demarcações das terras indígenas e não reconhecer o direito da opção consciente de viverem harmoniosamente com a natureza e com liberdade em suas terras. República que insiste em não reconhecer os povos indígenas como bem natural. Povos que constituem o patrimônio humano de nossa pré-história e de nossa história contemporânea. Desta forma perde-se mais uma oportunidade de fortalecer a realização dos Direitos Humanos.

E neste preciso momento, chega do nordeste o exemplo do Governo de Pernambuco reduzindo a verba orçamentária do Conselho Estadual de Direitos Humanos de R$ 26 mil em 2013 para R$ 10 mil para 2014. Desta forma, propagar e pleitear melhorias para o país sem a garantia de efetivação dos Direitos Humanos é erro de dissimulação política.Aqui, é necessário fazer um parágrafo para ressaltar a diferença entre o erro reversível vindo do nordeste e o rumo irreversível que chega com os exemplos do Rio Grande do Sul através de pronunciamento do Deputado Luis Carlos Heinze do PP: “…alinhados aos quilombolas, índios, homossexuais, lésbicas, tudo que não presta.”; reforçado pelo discurso do Deputado Alceu Moreira do PMDB: “Porque será que de uma hora para outra, tem que se fazer essa baderna e vigarice de demarcar terras de índios e quilombolas?”

Assim chegamos diante de fatos que registram tudo que a humanidade não precisa: – sectarismo, discriminação, racismo e exclusão –. Este é o perigo do culto à ancestralidade e de raças que se ligam umbilicalmente com o gene fascista e que é uma variante da devoção extremada à hereditariedade do sistema, que obviamente quer exterminar com os Direitos Humanos e a Democracia no Brasil.

As raízes da hereditariedade do sistema sustam qualquer iniciativa humanitária.

Raízes que não permitem as mudanças necessárias na Lei de Anistia de 1979. É o imaginário corporificado na herança de valores que não quer cortar o cordão umbilical ancestral do arbítrio e assim, mais uma vez tentam impedir a revelação da verdade histórica até aqui mascarada. Eis a razão primordial pela qual precisamos lutar sem máscaras para que nossa legislação e ações possam se consolidar e libertar os Direitos Humanos no Brasil do cárcere totalitarista. Sim, desmascarar e romper com esta herança e mostrar as diversas caras, as multifacetas que nossa história tem, caso contrário esta imprescindível realização fica mais uma vez adiada para depois do infinito.

A necessidade do rompimento deste nocivo cordão umbilical da hereditariedade do sistema, que é lesivo à Democracia, mostrou-se com evidência nos movimentos sociais dos sem máscaras em 2013, cujas asreinvindicações específicas se resumem no âmbito geral em exigências de mudanças na estrutura e na filosofia político-econômica e social do país. Diversos intérpretes dos movimentos populares ainda não perceberam que a foz de reinvindicações que desaguaram nas ruas do Brasil em 2013, tem sua fonte nos princípios dos Direitos Humanos. Quando as vozes do povo ecoam nas ruas contra o sistema de saúde, batem de frente e de corpo inteiro com o direito à vida. Quando se revolta contra o aumento de passagens, de gêneros alimentícios, bate direto no fundo de seus bolsos, pois o dinheiro que possuem não basta para comer, morar e suprir suas necessidades básicas para sobreviver. E quem quer sobreviver? Ninguém! Isso está estampado nas faces de milhares de desabrigados famintos ecoando diariamente nas ruas o silencioso grito de revolta: “Queremos viver!”

Quando os brados pela falta de segurança ecoam nas ruas, não é o clamor por presença física da polícia e forças militares especiais geradas no ventre maligno da herança arbitrária para reprimir, para tratar o povo como inimigo, e sim para prevenir, proteger e assegurar sua liberdade de expressar seus legítimos anseios impressos nos Direitos Humanos. Segurança como garantia do exercício do direito de se nascer e viver direito. Segurança psicossocial para que as mães possam gerar seus filhos saudáveis e os pais não os verem crescer passando fome, sem garantia de saúde, de educação, sem respeito e afeto social. Enfim, se isso não basta, há também os clamores: “os partidos políticos não nos representam”, resultado da hereditariedade do sistema em que o Estado e seus agentes políticos são dependentes do poder econômico privado. Gritos de “não à violência” que ainda se abatem sobre o povo e, para suprimi-la é necessário que se tenha, sobretudo, o discernimento de atacar o mal pela raiz. Sobretudo, é imprescindível combater o vírus transmissível da herança secular da violência implantada transgenicamente no Estado ao longo da história. E também o não à corrupção que se alastra pelo Brasil desde sempre, conforme aponta o capítulo “Dos que roubam com unhas toleradas” registrado no livro “Arte de Roubar” de 1656. Mais uma vez batemos de cara com a hereditariedade do sistema corrompido pelo imaginário.

Diante deste quadro, o mínimo que se exige é de que enquanto o povo clama nas ruas, os parlamentares e os agentes públicos não façam farra com o orçamento da União. Que não alimentem a hereditariedade do sistema baseada na troca de recompensas, benefícios pessoais ou de grupos das capitanias hereditárias da República. Está claro que as manifestações sem máscaras também clamam por profunda mudança nas Leis eleitorais, na estrutura dos órgãos estatais e dos partidos. Elas clamam por descentralização, por direito de participação no processo de decisão e execução das políticas públicas. Querem traçar novos rumos políticos desatrelando as campanhas do processo eleitoral dos poderosos grupos econômico-financeiros. Apontam para a edificação de um Estado democrático soberano revirando, reeducando os agentes políticos e todos os escalões dos serviços públicos. Politicamente estas vozes começam a perceber que o que deveria ser plano, na verdade é uma receita política errada, na qual a massa dos programas dos partidos não contém ingredientes concretos e sim genéricos, recheados de geleia eleitoreira.

Bom apetite, mas não se faz política com receita e sim com planos concretos e com o firme compromisso de suas realizações. Distante de seus eleitores, os partidos e seus parlamentares sem determinação política, permanecem pulando por cima das respostas e de suas promessas eleitorais. É o sagrado ritual à hereditariedade do sistema estimulando a síndrome do “promete e não cumpre” que é um ato de corrupção, que se define como alteração daquilo que deveria ser. Estimulados pela “Lei Gerson”, aquela que desordena juridicamente a ordem de se levar vantagem em tudo, os poderes da República pulam por cima de suas esferas de competência em disputa pela hegemonia do poder em constantes ações de judicialização do Legislativo, ações onde órgãos Executivos insistem em querer legislar. E todo esse exercício de pula-pula olímpico movido por algum interesse privado, transcorre em detrimento do processo de realização da Democracia e dos Direitos Humanos, ou pior, pula por cima de seus princípios.

Faz 35 anos da Lei de Anistia-Anestesia, que com seu caráter compulsório anistiou e concedeu benefícios a todos os envolvidos no Golpe de 1964 e do período da Ditadura Esguiana. Estamos diante dos 12 anos de promulgação da Lei 10.559, que ressalva o direito das vítimas da repressão da Ditadura de requererem o reconhecimento de anistia política e reparações econômicas através de processo junto à Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. No entanto, os processos se acumulam durante anos, permanecendo presos na Comissão de Anistia, mas a inoperância circula livre mantendo o culto do “fazer pela metade”. Será que este não poderia ser o momento do Ministério da Justiça começar a se libertar da hereditariedade do sistema de injustiças?

Sem pessimismos, o Estado e o governo deram avanços significativos com iniciativas políticas memoráveis. Completam-se 16 anos de criação da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, 9 anos de criação da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado Federal. Há 2 anos temos a Comissão Nacional da Verdade. Fora da esfera estatal, comemoramos os 29 anos da ONG Tortura Nunca Mais. Em suas histórias, todas essas entidades têm travado constantes combates contra as concepções da hereditariedade do sistema. Aqui, vale ressaltar que o Grupo Tortura Nunca Mais nasceu exatamente deste combate.

No entanto, a consolidação e desenvolvimento destas inciativas dependem da luta que nos leva a buscar as raízes das questões. Manter debate no círculo vicioso do ser, ou não ser um Estado democrático, não é a questão. Ter a digna coragem de discutir buscando as raízes para reconhecer o porquê que não é, e fazer ser com determinação, isso é que pode ser a solução da questão. Sempre de plantão, os guardiães da hereditariedade do sistema tentam amarrar com sua corda ancestral toda e qualquer ação que fortalece a Democracia e os Direitos Humanos. E esta corda é feita com os mesmos fios hereditários das cordas que amarraram índios, escravos, presos políticos torturados, que amarram as medidas que beneficiam o povo e é também a que hoje amarram seres humanos nos postes e nas ruas das cidades.

Portanto, esta é uma luta que requer uma alerta constante para a ampla e profunda realização da Democracia e dos Direitos Humanos que o país tanto clama e precisa com urgência. Esta é uma batalha para soltar as amarras, romper o cordão umbilical das heranças.

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