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- 20 de novembro de 2015

Carta ao Parlamentar Alagoano

Caro parlamentar, apesar do cansaço, das condições precárias do seu corpo, rogo que leia a notícia a seguir. Leia com vagar, repita com atenção, atente para a verdade anunciada no texto.  Creio que após a leitura o seu corpo, carcomido pelo tempo, ganhará vigor. É uma declaração proferida em um templo evangélico: “A maioria da sociedade pensa conforme nós pensamos. É só deixar que a maioria seja exercida, e não a minoria. É dessa forma que vamos enfrentar. Temos disposição, sim, e não vamos tergiversar com as nossas posições nunca. Sempre estaremos lá para, acima de tudo, que nossos princípios sejam levantados e defendidos. É isso que nós vamos fazer”.  O lá, caro alagoano, é a Câmara dos Deputados do Brasil. Prezado parlamentar, não desista de prosseguir a leitura, sustente a angústia que precede o vômito. Precisamos deste incômodo. A folha do jornal onde este texto foi publicado está como o seu corpo, dilacerando-se pouco a pouco com o passar dos dias, sofre a ameaça de ir ao encontro do esquecimento. Informações fenecem rápido demais, viram cinzas, mas urge reter a chama do argumento defendido no templo evangélico. Urge tornar clara, precisa, a verdade anunciada pelo Presidente da Câmara dos Deputados do Brasil. Sabemos que a verdade deste discurso sobreviveu, e sobreviverá intacta, caso esqueçamos o perigo da sua força. O seu corpo, meu caro, conhece muito bem os efeitos desta verdade. Tem ciência que o comando deste pronunciamento faz do esquecimento um ato propício para convertemos o passado em cadáver. Estimado alagoano, divulgue, mostre este texto a vivos e mortos, mas impeça aos leitores o contágio da sedutora atividade da interpretação. Sopre nos ouvidos, leia alto, murmure a promessa afirmada no texto, mas não permita que seja interpretado. Certas interpretações ameaçam retirar das palavras a consistência da sua materialidade, de torná-las leves demais, dispersas, deslocando-as incessamente de um lugar para outro até chegarem ao ponto certo, definitivo.  Hermeneutas que quando desprezam as urgências do agora, perigos desconhecidos, traduzem paradoxos incômodos em desdobramentos infinitos amansando a força da sua emergência. Anestesia das relativizações, onde tudo será interpretado como se o mundo estivesse em paz. A paz das opiniões pessoais, dos pontos de vista cuja chama da verdade interpretada não queimará os olhos. Combustão onde inexiste a coragem de apresentar a verdade, indicar o que ela enfrenta, destrói, o que deseja aniquilar com o seu calor.  A paz das opiniões pessoais, além de desprezar a força da chama, ignora as modulações da sua forma quando soprada pelo vento. Caro parlamentar, determinadas interpretações aliviam o mal estar que embrulha o estômago; o bem estar da resposta encontrada, do significado revelado, da análise vitoriosa. Atos do catártico vômito que alivia o tremor do corpo, quando apresentando ao susto do perigo iminente. Vereador, apresente a guerra incrustada no discurso dito no templo evangélico, ressalte o seu calor escaldante, repita, mostre: “A maioria da sociedade pensa conforme nós pensamos. É só deixar que a maioria seja exercida, e não a minoria. É dessa forma que vamos enfrentar. Temos disposição, sim, e não vamos tergiversar com as nossas posições nunca. Sempre estaremos lá para, acima de tudo, que nossos princípios sejam levantados e defendidos. É isso que nós vamos fazer”.

Mostre esta promessa como se fosse uma falta de ar, uma mordida de cão, um soco no estômago, algo que retire o ouvinte, ou o leitor, do torpor provocado pelo excesso de eu ou de dor.  Sustente a angústia que precede o vômito. Caro parlamentar, na apresentação do texto enviado, terá a chance de interromper inúmeras harmonias cotidianas. Você sabe que este discurso transita em outros espaços. O reconhece no almoço da família daquele homem religioso, delegado de polícia, pai exemplar, cumpridor dos deveres, mas que após o almoço segue para a delegacia para mais uma sessão de tortura. Ouve no murmúrio carinhoso do pai de família, no grito viril do torturador temente a Deus durante a aplicação do choque elétrico.  O reconhece no sorriso da família feliz do sudeste, na foto tirada na passeata junto aos policiais após o massacre na periferia. O pronunciamento no templo evangélico está nítido também nas manifestações das ruas; ruas indiferentes às palavras de ordem saudosas do horror da ditadura. Nas ruas a insolência que enfrenta e repudia esta verdade também é encontrada. O localiza na promessa da segurança econômica aos cidadãos da Berlim dos anos trinta, desesperados com o futuro incerto.  A maioria venceu, apoiou o nazismo, tenho certeza que este fato você não esqueceu. Caro, urge reter a chama do argumento defendido no templo localizado no Rio de Janeiro.  O movimento do fogo, estimado político, é vulnerável aos ventos; as labaredas não possuem uma única forma, mas queimam implacavelmente.

O seu cansaço, vereador de Coqueiro Seco, afirma que o outrora não é um cadáver e o presente não é uma mera transição; imagino que seja devido à presença de vários tempos e corpos sobrepostos no que resta dos seus ossos, mas não desista.  Estimado parlamentar, retenha a angústia que precede o vômito, mostre o pronunciamento do Presidente da Câmara aos culpados, aos endividados, às mulheres estupradas, aos suicidas, aos desempregados, aos humilhados que não conseguem sorrir ou suportar a retenção daquilo que embrulha o estômago. Assuste a tristeza destes corpos, retire-os da imobilidade feita por excesso de dor.  Mostre o discurso, mas não permita o vômito. Caso alguém deseje interpretar, impeça.

Caro Renildo Jose dos Santos, mostre, apresente o pronunciamento da Câmara dos Deputados do Brasil na igreja evangélica; talvez o seu nome perca a nitidez do pronome pessoal, escape do território delimitado e do passado encerrado. O fazendeiro e o militar, mandantes do seu assassinato, também perderão a nitidez pronominal.  Esquartejaram o seu corpo porque você desejava homens, um estorvo para o perfil do macho parlamentar. Os fragmentos da sua carne transformaram-se  em  cinza em Coqueiro Seco, juntaram-se a outros pedaços também assassinados, misturados a corpos  que ainda vivem. Coletivo impessoal, um nós nervoso sempre provisório porque feito por sustos, espantos, urgências. A angústia que precede o vômito embaça a nitidez, o limite de qualquer rosto, do seu e dos que o mataram. Caro, agora anônimo, leitor de qualquer lugar, mostre aos que não conseguem suportar a retenção daquilo que embrulha o estômago. Assuste, desenraize a imobilidade destes corpos, retire-os do peso feito por excesso de dívida, de culpa e de dor. Caro anônimo, apresente sem aspas este comando: A maioria da sociedade pensa conforme nós pensamos. É só deixar que a maioria seja exercida, e não a minoria. É dessa forma que vamos enfrentar. Temos disposição, sim, e não vamos tergiversar com as nossas posições nunca. Sempre estaremos lá para, acima de tudo, que nossos princípios sejam levantados e defendidos. É isso que nós vamos fazer.

Mostre a chama deste discurso, faça-o queimar, mas não permita o vômito. Caso alguém deseje interpretar, impeça.

Rio de Janeiro, Berlim, Coqueiro Seco, São Paulo, deserto, 5 de novembro de 2015.

Anônimo

 

Notas:

– O anônimo também pode ser chamado, entre outros nomes, de Luis Antonio Baptista, Professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFF.

– O trecho do discurso citado referente ao Presidente da Câmara dos Deputados do Brasil foi publicado no jornal Folha de São Paulo em 2 de março de 2015.

– A frase “a angústia que precede o vômito” foi inspirada no ensaio Anotações sobre Kafka de Theodor Adorno.

– Sobre o assassinato de Renildo Jose dos Santos sugiro o site: http://blog.tnh1.ne10.uol.com.br/ricardomota/2010/09/14

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