ARTIGOS

 

Neve e mistério no Rio de Janeiro: a fábula sobre corpos e arames


Luis Antonio Baptista*

Prólogo

Durante séculos o conto de fadas ensinou à humanidade enfrentar com o absurdo da fantasia os absurdos do mundo.  Os mitos nestes contos são inquiridos em seu desejo de permanecerem imunes em seus universos; são postos à prova pela leitura infantil.

A insolência do recontar mais uma vez da infância impede a solene conclusão contida na frase do era uma vez.  Para Walter Benjamin, o conto de fadas “continua ensinando hoje às crianças, que o mais aconselhável é enfrentar as forças do mundo mítico com astúcia e arrogância” (1). O recontar uma história não seria somente o desdobramento de uma narrativa, a astúcia contra a moral ou à mensagem edificante do conto, mas o experimentar o não acabou, o mais uma vez tecendo a intensificação de outros afetos.

Recontar o fato intolerável do dia a dia impediria ao horror o risco de ser capturado pela anestesia da banalização. A dor torna-se mais dor, transforma-se em outra dor na perda do espaço e do tempo originário, desvencilha-se de um sujeito, atordoa o reconhecimento do adjetivo que a torne classificável. No Rio de Janeiro a fábula sobre um corpo e um arame ameaça com insolência o mito da vida e da morte apartados por uma rígida fronteira; enfrenta o mito das fatalidades; zomba, com arrogância infantil, o acontecimento fatídico que poderia macular a paisagem da cidade feliz.

O mistério do arame

Era uma vez um homem que não conseguia entrar para dentro da terra. Sentia frio, muito frio. Desejava aquecer-se no subsolo, mas fracassava. Antes de viver este desconforto morava em uma cidade chamada Belford Roxo, quente como o sol.

Esperava há muito tempo ser acolhido pela terra, mas seu corpo frio como a neve não conseguia este intento. Anteriormente ao episódio que o esfriou circulava todos os dias com os músculos relaxados. Ia de um lado ao outro da cidade para trabalhar.

Certo dia sentiu uma forte dor na cabeça e caiu sobre a calçada. Iniciava a sina do corpo gelado. Caiu em uma rua do Rio de Janeiro no  bairro de Campo Grande, bem distante da sua cidade quente como o sol. O arame o esperava. No dia da queda estava sem os documentos. Homens de branco levaram-no para um estranho lugar. O irmão, a irmã e a mãe o esperavam em casa; ele, na geladeira, sentia saudades do sol de Belford Roxo. A família o procurou por várias semanas e nenhuma notícia. Certo dia, o irmão o encontrou frio como a neve e decidiu acatar o seu desejo. O calor da terra o salvaria do desespero.  Procurou uma mulher que usava uma longa capa preta para libertá-lo do suplício. Esta senhora decidiria o seu destino. O irmão, a mãe e a irmã esperavam a carta desta senhora para levá-lo ao calor do subsolo. A carta demorava e o homem enrijecia o corpo como pedra. A carta foi assinada, mas o endereço do lugar que o aqueceria estava errado.  Passaram-se meses e ele continuava sonhando na geladeira com a temperatura do território esperado. O arame que amarrava a porta do novo endereço fazia o irmão, a mãe e a irmã sentirem uma enorme tristeza. A mulher da capa preta assinou novamente o documento para salvá-lo, mas errou mais uma vez. Ela errava o nome do lugar solicitado, o dia em que caiu na calçada, o nome dele, a cidade dele, errava tudo ornada pela longa vestimenta preta como a treva. Meses passaram e ele continuava sem nome e sem sangue espreitado pelo arame que tanto entristecia a família. O irmão chorava, a mãe chorava, a irmã chorava quando avistavam aquela peça enferrujada que fechava a porta da geladeira. Ele lá dentro pouco a pouco desistia da esperança de ser acolhido pela terra. A mulher de capa preta sumiu. Após alguns meses a neve sobre o seu corpo pouco a pouco derretia. Capas pretas de senhoras e senhores da cidade, gerentes, administradores da vida e da morte contavam aos quatro cantos do Rio de Janeiro que o ocorrido foi mais uma fatalidade. Nos quintais do subúrbio mangas suculentas apodreciam nas árvores. O perfume das árvores transmitia o odor das coisas vivas anunciando a cortante presença do tempo. Ele na geladeira apenas derretia.  O homem de Belford Roxo desejava desesperadamente sair daquele espaço, mas o arame negava-o o direito da finitude sob o sol. Acabar, recomeçar, transfigurar, acabar mais uma vez, desdobrar-se em outro corpo eram insolências da história que lhe eram negadas. Ele desejava, além do calor, o aroma cortante dos quintais.

Epílogo

Arames são usados em diversas utilidades. Servem para cercar quintais, campos de concentração, galinheiros, cestas para ovos e inúmeras utilidades. Em Campo Grande ele negava a todos da cidade a intensidade da vida e a dor da morte. Corpos desaparecidos na ditadura também esperam o calor da terra para tecerem a insolência da história e a fúria da memória. Os arames continuam fechando portas. Mortos-vivos protegidos por esta peça circulam sobre as calçadas. O atrevimento do testemunho de recontar mais uma vez, de narrar o intolerável desprovido da paralisia da dor persiste, como o sol de Belford Roxo.

Notas

1. Benjamin, W. O narrador. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994, pág. 215.

 

2. “ Há oito meses uma família tenta enterrar o corpo de um parente que morreu em julho do ano passado no hospital Rocha Faria, em Campo Grande, na Zona Oeste do Rio de Janeiro. O corpo está no necrotério da unidade durante todo esse tempo em função de erros e uma série de burocracia. Romildo de Souza foi internado após sofrer um derrame e passou dois dias no hospital. No dia 9 de julho o paciente faleceu e até hoje o corpo continua no necrotério da unidade.
Segundo os irmãos, Romildo estava sem documentos quando morreu. Um atestado de óbito chegou a ser emitido, mas não foi aceito pela funerária. “O hospital liberou a declaração de óbito. Mesmo assim, não foi possível confirmar o sepultamento, pois não havia um documento com foto”, explicou o irmão Roberto de Souza em entrevista ao RJTV.
Em julho do ano passado, peritos emitiram um laudo comprovando a identidade de Romildo a partir de exames feitos pelas impressões digitais. No dia 11 de agosto, a Justiça autorizou o enterro, que deveria ser feito em São João de Meriti, na Baixada Fluminense. No entanto, 20 dias depois, a Defensoria Pública enviou um novo documento à Justiça informando que a família queria que o enterro fosse realizado no cemitério Vila Rosali. Nesse mesmo documento havia a informação de que Romildo tinha sido enterrado no cemitério Santa Rosali. “Saiu alvará, voltou alvará, erraram o nome do cemitério”, lamentou o irmão.
A decisão da Justiça saiu cinco meses depois, em 24 de janeiro, mas novamente com falha. Dessa vez, constava no documento que Romildo já havia sido enterrado.  Para aumentar a dor da família, a mãe de Romildo morreu no mês passado, vítima de um derrame cerebral. “Saudade... Ela não conseguiu ver o sepultamento que ela tanto cobrava. Me senti impotente. É doloroso e difícil. Muito difícil”, contou Roberto, bastante emocionado.
A Defensoria Pública do Rio informou que só pode se pronunciar sobre o caso quando tiver acesso ao processo, que está na Vara de Registro Público. O Tribunal de Justiça informou que a juíza que está cuidando do caso, Lindalva Soares Silva, está de férias e que o tribunal só vai se manifestar ao ter acesso ao conteúdo da decisão dela.
O Hospital Rocha Faria manteve sua posição, informando apenas que o corpo não pode ser liberado, pois não pode sair de lá sem identificação, conforme determinação judicial. Sobre a troca de "geladeira" alegada pela família, a direção informa que todo o sistema de câmara mortuária do necrotério foi mudado no início de 2012 em um processo de modernização. Por isso, todos os corpos que lá estavam foram mudados de posição.

“O hospital disse que modernizou, mas por que a geladeira onde fica o meu irmão é amarrada com arame galvanizado? E não funciona e o corpo está lá se decompondo”, criticou o irmão de Romildo, que protocolou uma reclamação na ouvidoria da Secretaria de Saúde.” Matéria publicada em 29/03/2012. em http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2012/03/familia-tentar-enterrar-parente-ha-oito-meses-no-rio.htm

*Psicólogo, professor da UFF

 

Tempo, Memória, Verdade: trazer à luz o passado para iluminar o presente

 


José Novaes
*

“O passado passado não passou.
A nova vida espera nova vida.”
(Nicolás Guillén: “Elegia a Jacques Roumain nos Céus de Haiti”. Tradução de Manuel Bandeira)

“O passado nunca está morto.
O passado não é sequer passado.”
(William Faulkner, na voz do advogado Gavin Stevens, personagem de seus contos policiais; em “Lance Mortal”)

Quando a Comissão Nacional da Verdade (?) — que não se perca por este pomposo nome — foi finalmente composta e instalada, cerca de um ano após aprovada no Congresso, ocorreu aquilo que o poeta Drummond descreveu em seu poema “Nosso Tempo”: “No céu da propaganda / aves anunciam / a glória”. Sinais inequívocos indicam que não será assim; vejamos alguns deles.

Alguns livros são publicados — num raro senso de oportunidade, ao mesmo tempo em que a Comissão da Verdade (?) vem à luz — contando “histórias” da repressão durante a ditadura civil-militar. Algumas destas publicações, — e especialmente as duas aqui citadas — têm um claro objetivo diversionista (se consciente, e se planejadas as publicações, não importa): confundir, desviar o propósito de esclarecimento do que ocorreu na ditadura, de identificar os responsáveis, de publicizar estas informações. Na terminologia dos órgãos de “inteligência”, ou de espionagem melhor dizendo, são ações de contrainformação.

Em uma delas , um ex-preso político narra diversas situações e episódios, e elabora uma “classificação cronológica dos delatores e grau de reversão de seus ideais” onde apresenta o nome de vários presos políticos com as siglas: “abriu, delatou, colaborou, traiu, infiltrou, informante”, nos quais atuantes da resistência teriam incorrido. Esta tentativa de dar um caráter “científico” (reduzindo ciência a quantificação, prática comum nas ciências sociais positivistas) a sua “investigação” não é apenas risível, é vergonhosa, infamante, asquerosa, e se poderia acumular os adjetivos aqui; não dariam conta de qualificar esta atitude.

Em outra destas publicações , um ex-agente da polícia civil do Espírito Santo, acusado de vários crimes, já condenado e com parte da pena cumprida por alguns deles, diz ter atuado na repressão durante o período ditatorial, e confessa ter auxiliado no desaparecimento de vários corpos de resistentes, dando seus nomes e identificando o local onde os corpos foram incinerados, uma usina de produção de açúcar no norte do estado do Rio de Janeiro. Diz ter se arrependido de seus “pecados” ao encontrar Jesus, convertendo-se a uma religião evangélica.

Da própria Comissão da Verdade (?) surgem situações e manifestações inquietantes. A primeira delas diz respeito a um de seus componentes, que representou o Brasil, em 2010, na Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA, onde o país foi condenado por uma sentença que obriga o Estado brasileiro a avançar no esclarecimento não só da Guerrilha do Araguaia, mas de todos os mortos e desaparecidos políticos. A atuação deste componente da Comissão da Verdade (?) neste fórum internacional, representando o Estado brasileiro e indo contra os familiares e entidades que fizeram a ação, coloca dúvidas, se é que não deveria mesmo impedi-lo de ali atuar, sobre sua capacidade de esclarecer os fatos, pois já teria tomado posição diante do tema, não tendo, portanto, independência para fazê-lo.

Logo após os integrantes da Comissão serem conhecidos, entrevistas com alguns deles mostraram um clima de quase cisão em torno de diferenças de opiniões. Um dos integrantes, ecoando teses de “viúvas da ditadura”, principalmente militares inativos reunidas em torno do Clube Militar, falou da possibilidade ou mesmo necessidade de investigar “os dois lados”, ou seja, também os pretensos crimes da resistência armada à ditadura.

A resposta veio firme por parte de outro integrante da Comissão: é preciso acabar com “esta bobajada” de dois lados; o “outro lado” já foi investigado, preso, processado, punido, torturado, morto, desaparecido. Seja dito de passagem: falar de investigação e esclarecimento dos “crimes” do “outro lado” não é apenas bobagem: é escárnio à memória dos resistentes — todos os resistentes — à ditadura civil-militar no Brasil.

Finalmente, duas notícias dão o fecho a este quadro dando-lhe um tom tenebroso, afrontando o governo brasileiro e sua Comissão da Verdade (?), e colocando-os em posição ridícula.

Jornal publica que a pasta da Defesa recorreu a “brechas” da lei para reclassificar documentos militares quanto ao seu sigilo, passando de 10 para 15 anos o prazo em que eles deveriam necessariamente ser colocados à disposição do público, pela Lei de Acesso a Informação; isso foi feito dias antes da entrada em vigor da lei. No dia seguinte, o Ministério da Defesa anunciou que promoverá eventuais “correções” para impedir esta ampliação do tempo de sigilo, dizendo que a ordem emanada pelo Ministro era de “manter ou reduzir” o prazo, não aumentá-lo.

No dia seguinte, outra notícia : Exército diz não ter papéis sobre a Guerrilha do Araguaia; todos os documentos teriam sido destruídos, assim como os termos da destruição, o que impossibilitaria identificar os responsáveis pela ordem.

O passado não passou, ele nunca está morto; e, quando não esclarecido, quando envolto pela escuridão tenebrosa da ditadura civil-militar (1964-1985), trevas que seus agentes ainda vivos e atuantes tentam manter, ele continua criando e intensificando a dor e o sofrimento naqueles sobre os quais a fúria terrorista do Estado se abateu e nos que perderam parentes, amigos, conhecidos, e tendo efeitos extremante danosos sobre toda a sociedade. S. Freud, em uma de suas teses, fala do “retorno do reprimido”, com o cortejo de irracionalidade e violência de que pode ser acompanhado; a repressão brutal e assassina do Estado terrorista no período ditatorial mais longo da história recente do Brasil precisa ser esclarecida, des-recalcada. Todos os fatos históricos, políticos, econômicos, culturais, sociais deste período apontam para a necessidade do resgate de sua história, na construção de uma nova vida. Na sequência imediata do trecho de seu poema citado no início, “Nosso Tempo”, Drummond diz: “No quarto, irrisão / e três colarinhos sujos”. A não ser mudando o rumo das coisas, o que teremos é isso: zombaria, escárnio e mofa, mais uma vez, sobre nós, sobre todos os sobreviventes do terrorismo de Estado, e que lutam para iluminar — um pouco, pelo menos — a história política e social do passado recente deste país.

* Psicólogo, ex-Conselheiro-Presidente do CRP-RJ, em duas gestões, Professor da UFF, ex-preso político e fundador do Grupo Tortura Nunca Mais/RJ.

Lemos, Adail Ivan de. Desafia o nosso Peito: resistência, tortura e morte durante o regime militar brasileiro. Rio de Janeiro: Consequência, 2011.

  Netto, Marcelo & Medeiros, Rogério. Memórias de Uma Guerra Suja. Ed. Topbookcs, Rio de Janeiro, 2012.

Folha de São Paulo, edições de 12 e 13 de junho de 2012.

Folha de São Paulo, 14/06/2012, p.A13, “Exército diz não ter papéis sobre Araguaia”.

 

Hoje, os bravos venceram



Milton Pinheiro*

Os dois últimos dias foram marcados pelo horror que vazou dos porões da ditadura, que se encontra em polvorosa diante da possibilidade da Comissão da Verdade se estabelecer. São informações colhidas pelos jornalistas que entrevistaram o verme Cláudio Antônio Guerra, delegado do DOPS do Espírito Santo, refugiado na aposentadoria que o Estado conivente lhe premiou, sobre o desaparecimento de presos políticos. 

Não estou preocupado se a confraria do crime matou o comparsa, Sérgio Fleury. Estou indignado pelo conjunto das informações que esse celerado, Cláudio Guerra, passou. São crimes contra a humanidade, são manifestações de bestialidade organizadas pela classe dominante para manter os seus privilégios.

Hoje, 03 de maio, acordei com o compromisso de encontrar camaradas: homens e mulheres, na frente do ex-prédio do Doi-Codi na Rua Tutóia, para fazermos uma manifestação cobrando punição para os criminosos da ditadura burgo-militar de 1964.
Marchei para o ponto marcado, fazia frio nas cercanias do Ibirapuera e o dia estava cinzento. Lá estavam jovens indignados, ex-presos políticos que sobreviveram ao massacre da ditadura, e militantes. Ouvimos depoimentos dos sobreviventes do “porão do inferno”, visitamos o fundo do prédio onde muitos foram martirizados e foram assassinados, mais de 50 heróis do povo brasileiro, entre eles, os comunistas Vladimir Herzog e Manoel Fiel Filho.

A manifestação prosseguiu, os nomes dos bravos lutadores assassinados foram levantados, e tal qual a lança do guerreiro, o brado forte dos presentes cortou o vento gelado e fez surgir o sol entre nós. Um-a-um, o nome dos mártires foi saudado pelo grito forte de “presente, agora e sempre”.

Entre tantos nomes saudados pela memória dos presentes, bravos homens e mulheres, um, ecoou pelo pátio da delegacia e adentrou o meu pensar, “Nestor Veras: presente, agora e sempre”. Mas em tempos de combate, onde a terra ainda é tingida de sangue no Brasil, quem é esse homem que lutou ao lado dos trabalhadores e pelo futuro, entregou a sua vida?

Nestor Veras, líder camponês, nasceu em 19 de julho de 1915, em Ribeirão Preto, São Paulo. Era dirigente do CC do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e encarregado do trabalho no campo. Foi dirigente da ULTAB e da CONTAG, fundador e editor do jornal Terra Livre. Ao lado de Francisco Julião e Alberto Passos Guimarães, organizou o Congresso Camponês que ocorreu em Belo Horizonte, em 1961. Cassado pelo AI-I foi condenado a cinco anos de cárcere pela LSN – lei de segurança nacional, passou a viver na clandestinidade, ao mesmo tendo uma companheira e cinco filhos.

Esse bravo comunista foi preso em abril de 1975, quando passava na frente de uma drogaria, em Belo Horizonte. Estava desaparecido até ontem, quando ficamos sabendo, via um representante da escória da ditadura, que Nestor Veras “tinha sido muito torturado e estava agonizando. Eu lhe dei o tiro de misericórdia, na verdade dois, um no peito e outro na cabeça. Estava preso na Delegacia de Furtos em Belo Horizonte. Após tirá-lo de lá, o levamos para uma mata e demos os tiros. Foi enterrado por nós.”

Após ter participado da manifestação, pela tarde fui para meu rotineiro trabalho de pesquisa no arquivo do Centro de Documentação e Memória da UNESP, o CEDEM. Lá encontrei um jovem estudante da UNIFESP que trabalhava com um conjunto de caixas do arquivo que continham informações da luta camponesa e da reforma agrária no Brasil, todas com o nome de Nestor Veras. Examinei as caixas com os documentos e encontrei a presença do dirigente camponês em tudo: textos, recortes de jornais, artigos na Voz Operária, congressos, assembleias, conferências, resoluções, informes, análise sobre as lutas dos trabalhadores do campo e da cidade. Esse foi o camponês que pensou o Brasil e lutou pela revolução socialista. Nestor Veras, homem simples da classe trabalhadora que teve um texto seu, colocado em um livro da Brasiliense por Caio Prado Júnior. Homem de combate, mas que encontrava tempo para tocar clarineta para os filhos.

Comovido diante daquela cena, pude então compreender que os bravos que tombaram, de forma desassombrada, pelos interesses dos trabalhadores brasileiros, venceram.  Eles venceram o silêncio da repressão e a conivência do Estado, venceram o luto cínico das instituições e o papel asqueroso da imprensa burguesa. Eles venceram, porque estão presentes na vontade de saber da juventude, venceram porque marcham ao nosso lado na luta sem trégua pela revolução brasileira.
Hoje, mais do que nunca, os bravos venceram!

E nós, militantes em defesa da humanidade saberemos, quando chegar o momento, honrar o compromisso feito por Carlos Danielli (momentos antes de ser assassinado) ao escrever com o líquido vermelho das suas veias nas paredes do Doi-Codi: “o meu sangue será vingado”. Afinal, “por nossos mortos nem um minuto de silêncio, toda uma vida de combate”.

*Milton Pinheiro é professor e militante comunista

 

 

Obra de Jirau: superexploração, sequestros e mortes!

Governo Dilma\Lula\PT: fascismo e submissão à grande burguesia!

Desde o dia 4 de abril, há mais de dois meses,
sete operários da obra de Jirau, em Rondônia, estão desaparecidos!

Em 3 de abril, os alojamentos dos operários do canteiro de obras de Jirau foram incendiados. Imediatamente o Consórcio Energia Sustentável Brasil, responsável pala obra, formado pela construtora Camargo Corrêa e a francesa Suez Energy acusou os operários de terem provocado o incêndio. A “gerente” federal do Estado brasileiro Dilma Roussef (PT), e o “gerente” estadual Confúcio Moura (PMDB) enviaram mais de 250 policiais, 113 da Força Nacional de Segurança, 80 PMs da COE e 60 policiais do serviço ordinário da PM, que ocuparam para reprimir a greve. Com escopetas e submetralhadoras, ocupam o canteiro de obras de Jirau e agindo como feitores, coagem os operários a aceitar calados a “ordem” da exploração!

 

Repressão assassina trabalhadores
Em 13 de fevereiro, o operário da Construtora Camargo Corrêa, Josivan França Sá, 24 anos, foi assassinado pela polícia nas proximidades do terminal de Jaci Paraná, em Porto Velho. Era início da madrugada e os operários aguardavam há horas o transporte para os alojamentos. A demora provocou insatisfação e os operários protestaram contra o desrespeito da construtora, quando a polícia foi chamada e os reprimiu violentamente.

Durante outra incursão policial o operário Francisco Lima, pedreiro, amazonense, morreu. Sua filha, Soraia, contestou a versão da polícia de que ele teria sido “vítima de um infarto”, pois apresentava diversos hematomas na região dos braços e pernas. Sem contar os casos de mortes nas obras por excesso de exploração.

As prisões e as arbitrariedades contra os operários
Em 9 de abril, a polícia civil iniciou a Operação Vulcano e prendeu operários qualificando-os de “indivíduos baderneiros” que “atentaram contra a ordem pública’’. Que “não respeitam a vontade da maioria em voltar ao trabalho, tampouco a lei e a ordem". Gilberto Carvalho secretário da Presidência da República, nos governos Lula/Dilma/PT e ex-“dirigente” da CUT, cobra punição para os trabalhadores. Que agora chama de “uma minoria de vândalos e bandidos”, e diz que, o “governo tem que garantir os 90% que querem trabalhar”. Quer inclusive aproveitar o episódio, para atacar e responsabilizar a Liga Operária pelos incêndios em Jirau. Exatamente a entidade que faz a defesa dos trabalhadores. Não faz nenhuma menção à alta exploração dos trabalhadores, à falta de direitos mínimos, e ao trabalho escravo contratado  pela Camargo Correa. Empresa que fez uma das maiores doações para a campanha de Dilma, que teve para a obra de Jirau o maior financiamento da história do BNDES. Ou seja, quem exige mais repressão para os trabalhadores é o  verdadeiro bandido, com larga folha corrida, onde constam acusações de todo tipo de tráfico de poder, alta corrupção, mensalão, acusações de participação no assassinato do ex-prefeito de Santo André Celso Daniel etc. Foi a partir daí, que mais de mil operários foram demitidos por “justa causa” ou forçados a pedir demissão.

Em seguida, 24 operários foram arbitrariamente encarcerados no presídio Urso Branco, em Porto Velho (presídio este condenado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, por repetidas violações dos direitos humanos). Depois de torturados e humilhados, foram jogados naquela masmorra, recebendo o mesmo tratamento dado aos que são considerados pelo Estado como criminosos da pior espécie. Tudo isso pelo crime de participação na greve por condições dignas de trabalho e melhores salários. Foram retirados algemados dos alojamentos ou pensões, sequestrados e mantidos por dois dias sem alimentação. Parte deles esteve em cárcere privado dentro do canteiro de obras de Jirau. E depois levados para o presídio onde foram obrigados a dormir no frio chão de cimento e sem materiais de higiene e limpeza. A visita de familiares foi restringida.

O operário Julimilson Souza estava enfermo, sangrando pelo nariz e não teve acesso a qualquer tratamento médico, assim como os demais. Devido às péssimas condições carcerárias a que foram submetidos, todos esses trabalhadores estão ainda com diversos ferimentos espalhados pelo corpo, debilitados e deprimidos pela opressão.

Operário torturado
O operário Raimundo Braga, preso dentro da obra da Camargo Corrêa e espancado por horas pela polícia, foi obrigado a deixar tudo que tinha e foi levado algemado para o Urso Branco, onde, com outros, ficou dias nas piores condições. A Camargo Corrêa, que tem todo o apoio do governo, queria que Raimundo e os outros assinassem a demissão por “justa causa”, dentro do presídio, o que, além de absurdo, é ilegal.

Mais de 10 operários estão desaparecidos
Além de todas as prisões ilegais, torturas, espancamentos, ilegalidades e arbitrariedades cometidas contra os operários que lutam por seus direitos, dos 24 presos em Jirau, com prisão reconhecida pela “justiça”, no mínimo 10 estão desaparecidos, desde a ação das forças de repressão. As famílias dos trabalhadores, advogados voluntários e entidades que defendem os direitos do povo buscam notícias e o paradeiro deles. No site YouTube foi postado um vídeo em que aparece um operário baleado e sem identificação. Dessa forma denunciamos os gravíssimos fatos ocorridos e exigimos:

- A imediata apresentação e libertação dos operários presos!
- A imediata retirada das forças policiais de dentro das obras de Jirau!
- O cumprimento imediato dos acordos trabalhistas firmados com os trabalhadores!
- A investigação dos crimes contra os operários de Jirau e a punição dos responsáveis!

 

Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos (Cebraspo)
Defender o direito do povo defender os seus direitos!

www.cebraspo.org.br - cebraspo@gmail.com

 

 

Sobre o livro ”Desafia o nosso peito”

Francisco de Assis Barreto da Rocha Filho*

Chico de Assis na Penitenciária na Ilha de Itamaracá – Pernambuco,
já nos últimos anos de sua prisão

 

Caros amigos do grupo “Amigos de 68”
Sou Francisco de Assis Barreto da Rocha Filho, ou simplesmente Chico de Assis, ex-preso político de Pernambuco, estado onde passei 9 anos, 4 meses e 27 dias, trancafiado entre a antiga Casa de Detenção do Recife (até a sua extinção, em 1973) e a ainda atual Penitenciária Barreto Campelo, em Itamaracá-Pe (nos seis e tantos anos restantes). Sou também companheiro de lutas, na época da ditadura, e amigo pessoal até hoje de Marcelo Mário de Melo, ex-preso político de Pernambuco, bem como há quase 50 anos de Marcelo Santa Cruz, meu contemporâneo na  Faculdade de Direito,  advogado pernambucano, vereador olindense pelo PT e irmão do desaparecido político Fernando Santa Cruz, cuja história ajudei a contar, ao lado de quatro outros autores, no livro "Onde Está meu Filho?", publicado pela Paz e Terra, em 1985. Como não pertenço formalmente ao grupo – embora acompanhe e receba vários e-mails de participantes dele –, solicitei aos dois amigos que me ajudassem na circulação entre vocês deste e-mail, parte do que chamo minha “estratégia de ataque” – porque não tenho que me defender, diante de acusações tão desamparadas dos fatos e tão marcadas pela irresponsabilidade, como as que me foram feitas no livro “Desafia o nosso peito”, de um tal Adail Ivan de Lemos.
              
No famigerado cronograma que o Adail criou para estabelecer uma "tipologia", onde se pudesse classificar o comportamento geral de todos os presos (e num e-mail do Espinoza, também membro do grupo, está ressaltada a incongruência cometida pelo autor, ao não inserir o comportamento dele em nenhum dos tipos por ele inventados), eu sou colocado na condição de "delator" (pelo gráfico, já invadindo as fronteiras do colaborador!). Tive que esperar uma semana, a partir do dia em que tomei conhecimento da infâmia, para obter o livro e procurar em suas páginas anteriores e posteriores à divulgação do grâfico (que está na pag. 38), a citação de alguma fonte, de algum acontecimento histórico, de alguma denúncia que pudesse ter levado o irresponsável autor à semelhante classificação. Talvez a raiva, a revolta e a impotência, diante de um mal já levianamente praticado, tenham escurecido minha vista. Mas o certo é que não encontrei absolutamente nada parecido (é certo que também ainda não tive estômago para ler o livro todo). Há apenas, pelo que consegui ler, duas outras referências a mim. A primeira, na página 40, quando ele tenta estabelecer os critérios através dos quais teria formulado sua "científica" tipologia, diz:

"Por exemplo, o indivíduo pode ter "colaborado" por medo da tortura, mas não abriu mão de sua ideologia, como aconteceu com Frei Fernando e Manoel Henrique Ferreira. Ou pode ter "colaborado" e também desistido de sua causa, como Celso Lungaretti e Francisco de Assis, que abandonaram seus ideais do passado e passaram a criticar suas organizações".

De onde ele extraiu tamanha ignominia, em qual episódio se baseou, de quais fontes bebeu tanta covardia, nenhuma palavra. Volto a repetir: foram 9 anos, 4 meses e 27 dias. Durante todo esse tempo, enfrentei, nos limites máximos das minhas forças, aos arreganhos diuturnos da repressão. Foram 5 dias de torturas que se sucederam à minha queda (da qual não resultou nenhuma queda subsequente – e olhem que eu era dirigente regional do PCBR, conhecedor, pelo menos, de parte das estruturas existentes em três estados da região, além de haver resistido à bala no momento da prisão). Foram mais três dias no Quartel da Aeronáutica, já nove meses depois de preso, em função de uma ação na qual eu me havia falsamente envolvido (para livrar companheiros menos preparados e ainda desconhecidos da polícia no momento de minha prisão), da qual resultaria a morte de um tenente daquela força e pela qual fui envolvido num processo que ganha longe do de Kafka. Vale a pena algum comentário a respeito. Fui absolvido em primeira instância da acusação principal e condenado a outro processo por me haver autoacusado falsamente no curso daquela ação. Desse outro processo, resultou uma condenação minúscula de 6 meses de detenção. Pois bem. Alguns meses depois, por recurso obrigatório julgado no STM, em relação aos fatos narrados no primeiro processo, os caras "esqueceram" que já me haviam condenado por autoacusação falsa e passaram a considerá-la "verdadeira", em razão do que eu teria que acrescentar aos 14 anos de cadeia a que já estava condenado, a bagatela de uma prisão perpétua, automaticamente transformada em pena de 30 anos de reclusão. Passei a viver uma situação configurada por todo o mundo jurídico como "aberração Jurídica", porque apenado por duas sentenças que se excluíam entre si, mantidas até a data da minha liberdade em novembro de 1979 (através de redução de penas no STF e do instituto da liberdade condicional, porque a parcial, excludente e restrita anistia de 79, excluía aqueles que se envolveram em ações armadas e tivessem tido seus processos julgados em todas as instâncias, como era o meu caso).  O velho Modesto da Silveira chegou a ser meu advogado nesse processo, junto ao STM e ao STF (se a "pesquisa exaustiva e cientifica" que ele diz ter feito para produzir o monte de leviandades que produziu fosse verdadeira, bastaria ter perguntado a respeito ao respeitado causídico, cuja participação nesse imbróglio também me chocou muito, mas começa a ser melhor dimensionada a partir de vários e-mails do grupo, dando conta de que ele já se dispôs a batalhar pela retirada de circulação da merda, embora isso não elimine de todo a fedentina que ela espalhou). 
               
Eu diria mais: foram cerca de cinco greves de fome, uma delas de 25 dias de duração, ora para manter um mínimo de dignidade nas degradantes condições carcerárias que os caras nos dispensavam, ora para elevar nossas bandeiras de lutas, como as feitas em favor da anistia. Foram inúmeros protestos, documentos, abaixo-assinados, escaramuças diárias em condições extremamente desfavoráveis. Sempre sem baixar a guarda, sempre combatendo o bom combate, para enfim ver um adailzinho qualquer, do alto de sua empáfia, afirmar, logo em seguida à frase em que me coloca como arrependido: "manter-se coerente com seus princípios e não se arrepender é um critério fundamental para o posicionamento correto nesta classificação, porque indica que o combatente não passou para o lado do adversário". Aqui, a pergunta que não quer calar: cabe na cabeça de alguém, minimamente decente, que a repressão dispensaria tratamento tão permanentemente cruel e desumano, a alguém que se houvesse passado para o lado das forças repressivas? A resposta fica a critério da consciência de cada um.

A minha, é claro, é um redondo e orgulhoso NÃO!  Se houve alguma coisa que se transformou numa quase obsessão em meu comportamento nas torturas foi a de não deixar brechas, não permitir qualquer sinal, que permitisse aos caras vir com qualquer proposta abjeta de arrependimento. Além de denúncias feitas na Auditoria, quando possível descrevendo torturas e nominando torturadores (nem sempre eles aceitavam transcrever, mas em alguns dos meus 7 processos isso foi possível), eu fiz  questão, mesmo nos depoimentos dados nas masmorras, de realçar minha condição de militante e defender minhas convicções políticas. Tudo isso é público, tudo isso é História, tudo isso pode ser reconhecido por diversos companheiros da direção regional do BR à época (como o próprio Marcelo Mário de Melo) e que ainda convivem comigo na condição de grandes amigos. E agora vem um não sei quem, a serviço também não sei de quem ou de quê, e no maior cinismo diz estar aberto a críticas e correções, só que para obtê-las a indigitada vítima terá que ter suas objeções "avaliadas em relação a um conjunto de fatores: honestidade do depoente (grifo meu, irado com a cara de pau do rapaz!), testemunhas corroborativas e coincidências e similaridades com registros históricos já publicados". Como se ele pudesse ser tratado como juiz supremo, diante do qual teríamos que nos penitenciar e explicar. Como se ele não soubesse que o ônus da prova é de quem acusa. E mesmo que se consiga, pelo ridículo expediente proposto, efetuar correções, o mal já feito com a publicação, quem pagará? De mim, ele só obterá desprezo, pelo profundo mal que já me causou.

Mas o pior (se é que pode haver pior!) ainda estaria por vir. Ao narrar as circunstâncias da prisão de Antonio Joaquim Machado – que teria levado, segundo ele, à prisão de Carlos Alberto Soares de Freitas – ele deixa de ser apenas irresponsável, apenas leviano, apenas infamante. Ele passa a ser torpe, na calúnia e na difamação. Diz ele à página 138 do seu tratado de mentiras:

"Em seu depoimento para a CFMDP & IEVE, Sergio Emanuel Dias cobriu um ponto com Antonio Joaquim "Quincas", no dia 14 de fevereiro, que estava ansioso e sentia-se perseguido. À noite, sem ter onde ficar, Antônio dormiu no aparelho de Carlos Alberto Soares de Freitas "Bruno", situado à rua Farme de Amoedo, 135, em Ipanema. As origens de sua queda (de quem? de Carlos Alberto? de Joaquim? – perguntas minhas) estão "provavelmente" (aspas, grifos e protestos meus!) relacionadas à prisão de Francisco de Assis Barreto da Rocha Filho, em Recife, no início de fevereiro de 1971."

Só quem não tem noção do que seja honra, pode achar possível denegrir a honra alheia, através de termos tão vagos ou hipotéticos quanto os “provavelmente”, “é possível”, “talvez”, com que está preenchida a maior parte das acusações, através das quais tentou enxovalhar a memória de dezenas de companheiros, que trucidados pela tortura já não podem se defender.  Volto a repetir: é infâmia demais! Minha prisão se deu a 16 de julho de 1970, depois de cerco e metralhamento do aparelho onde me encontrava com as companheiras Nancy Mangabeira Unger e Vera Pereira Rocha (a primeira, ferida no tiroteio que trocamos com os esbirros policiais e as duas banidas alguns meses depois, no sequestro do embaixador suíço). Até então, pelo menos aqui no Nordeste, o Partido ainda não mantinha qualquer contato mais estreito com a VAR-PALMARES, organização a que pertenciam os dois companheiros, por cuja prisão eu seria "provavelmente" responsável, sete meses depois da minha. Todos os que passamos pela monstruosa engrenagem construída pela ditadura para nos vencer e destruir, sabemos ser zero a possibilidade de alguém entregar um ponto – e este ponto continuar existindo! – há exatos sete meses depois de preso. 

Pra terminar, seria supérfluo dizer que não há aqui nenhuma tentativa de desenhar em torno de mim qualquer auréola de heroísmo. Fiz concessões, sim, em variados níveis. A maioria delas o tempo mostrou serem insignificantes. Meus depoimentos foram avaliados, reavaliados, triavaliados por quem de direito – os companheiros que estavam fora e os de dentro da prisão. Meu comportamento geral, face às torturas, ficou situado na média dos comportamentos sustentados pelo conjunto – ou um pouco acima, na medida em que da minha prisão não decorreu a prisão de mais ninguém. Repito em letras maiúsculas: NINGUÉM!

No calor do debate à época, movidos ainda por algumas concepções, ora extremamente sectárias, ora idílicas e idealizadas sobre o que fosse de fato o enfrentamento das torturas, era natural que trocássemos entre nós algumas ofensas, algumas agressões, com teor semelhante às infelizes classificações do Adail. Mas os longos anos na cadeia, no exílio, nas diversas trincheiras em que o processo histórico  nos foi colocando, esgotaram essa discussão em todos os seus aspectos e nos ajudaram a compreender, sob um ângulo essencialmente humanista, o fenômeno da tortura e seu correlato natural, o drama do torturado. Nesse contexto, vimos companheiros que se dispuseram, dispostos a morrer, a dar cobertura à fuga de outros num aparelho, e no momento seguinte, não tendo morrido como esperavam, caíram em desespero e abriram quase tudo que sabiam. Vimos outros que resistiram pouco, muito pouco para o nível de responsabilidade que possuíam, mas logo se recuperaram para enfrentamentos típicos do regime carcerário que iriam viver, através de denúncias, protestos e mesmo greves de fome. Vimos outros tantos que resistiram até onde puderam, por longos e intermináveis dias, conseguindo manter sob controle a abertura que fariam depois disso. E, finalmente, vimos os que resistiram bravamente, sem dizer nada até a morte. São comportamentos contraditórios, onde se fundem coragem e medo, quase no mesmo momento. São comportamentos que não cabem no arcabouço estreito dos rótulos definitivos, onde Adail encerrou os nomes contidos no seu grotesco cronograma dosimétrico dos comportamentos do combatente torturado.

Bom, companheiros, eu estou exausto. Emocionalmente esgotado. Esse cara, o Dr. Adail (ops! por um momento me senti numa sala de torturas, onde os caras costumavam se tratar por doutores!) conseguiu me derrubar de uma forma infinitamente violenta. Pela gratuidade e estupidez das acusações feitas. Pelo ineditismo delas, 42 anos depois dos fatos vividos. Eu tenho hipóteses que podem explicar o brutal e indecente equívoco que ele cometeu. Mas não vou fornecê-las. Ele que trate de pôr em funcionamento os "científicos mecanismos de pesquisa" de que se diz possuidor.

Finalizando, diria que estou à disposição de qualquer componente do grupo, para possíveis esclarecimentos sobre os fatos aqui relatados. Gostaria de continuar obtendo informações sobre providências e encaminhamentos que estejam sendo adotados, no plano coletivo. Claro que no plano individual estou promovendo gestões que me permitam descobrir os caminhos mais adequados, em todos os níveis. Mas se tais encaminhamentos pudessem ter um caráter minimamente coletivo seria indiscutivelmente melhor.  Meu e-mail é fassisfilho@gmail.com. Fico no aguardo das manifestações de vocês, a respeito do conteúdo das colocações aqui feitas. Deixo com todos os companheiros, abraços.

Chico de Assis

PS – A literatura, em toda a minha vida, fez um contraponto essencial com a intensa e prioritária atividade política, desenvolvida na maior parte do seu curso. Cheguei a publicar um romance, “A Trilha do Labirinto”, espécie de memória romanceada, que consideraria uma honra fazer chegar um exemplar a vocês – a quem interessar, é só me mandar o endereço residencial que encaminharei com o maior prazer. Naturalmente, cometo também algumas incursões na área da poesia. É desses esporádicos oásis poéticos, que retiro o poema que segue. Sou dos que pensam que a verdade poética é bem mais consistente que as meias verdades da vida:

 

O Torturado

Nos olhos de medo
desfilam os amigos.
A História à espreita
num vão de janela.

Minha mente passeia
sobre grutas companheiras
que induzem à confiança.

Mas o meu corpo é um verme
sem muletas e habita
regiões desconhecidas
donde a humanidade foi repelida.

Tento inutilmente
alcançar a harmonia
das formas ou a ordem
cósmica das coisas.

Tudo se tece
em horas de coragem
lúcida ou se abate
num desespero/minuto.

A dor guarnece os limites
da cidade heroica
com os subúrbios da vilania.
                                                     

 (nov/1970)
Francisco de Assis Rocha Filho é poeta e escritor
 
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