ARTIGOS
Alguém falou em Direitos Humanos?
Sergio Silva

A Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, serviu de base para a Declaração Universal de Direitos do Homem, aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas, no dia 10 de dezembro de 1948, em Paris. A Declaração de 1789 é muito provavelmente o primeiro documento definido pelo poder constituído sobre o controle da vida humana.
No século XX, destacadamente com o comunismo, o fascismo, o nazismo e o american way of life, o controle sobre todos os aspectos da vida humana fez enormes progressos, embora sem jamais consiguir transformar-se em controle total. O ser humano parece ter algo indomável: mesmo que algo muito pequeno, algo indomável.
Ao mesmo tempo, hoje, não existe praticamente nenhum aspecto da vida humana que não esteja submetido a um controle que, por todas as suas conseqüências, não possa ser qualificado por menos do que opressivo e terrível.
As contribuições do comunismo, do fascismo e do nazismo foram fundamentais, mas a forma de controle que se tornou dominante foi o norte-americano. Neste controle dominante, destaca-se a atenção para os aspectos mais comuns e cotidianos da vida: o sexo, o trabalho, as férias, a criação dos filhos, a comida, as diversões e tudo o que se possa imaginar sobre nossas vidas, digamos, diárias.
Muito importante: com poucas exceções, estas formas de controle se fazem notadamente através da concordância (pelo menos, formal) das pessoas. Melhor dizendo: pela submissão (formal) voluntária e, muitas vezes, entusiástica das pessoas. Donde, nada melhor para caracterizar o totalitarismo dominante de nossos dias do que a expressão paradoxal de totalitarismo democrático.
Tendo em vista a importância da submissão voluntária, um dos efeitos mais cruéis do totalitarismo democrático está na sua capacidade de fazer com que as pessoas pareçam não ver as formas de controle mais tradicionais de violência. Comandado pelo Estado e pela Mídia, o controle sobre a conduta sexual, alimentar e de cuidados com o corpo são também, freqüentemente, violentas, mas, além disso, este controle parece anestesiar pessoas efetivamente informadas sobre a violência tradicional das prisões, maus tratos, torturas e execuções sumárias exercida pelo Estado.
Não sei se o mundo de hoje é pior (ou muito pior) que os de antigamente, mas a política em geral e os direitos humanos em particular são um horror. Na Europa, por exemplo, os governos da Grécia e da Espanha, autodenominados socialistas e mais próximos dos direitos humanos, seguiam políticas tão contrárias aos interesses do povo que foram substituídos, com apoio popular, por governos de direita. O governo Barak Obama não tomou nenhuma medida significativa contra as prisões, locais de tortura e serviços de execução sumária que os Estados Unidos manteriam por esse mundo afora.
Esperamos que, um dia, em todo o mundo, sejam respeitados os direitos humanos considerados em sua totalidade, isto é, como direito dos humanos determinarem livremente suas vidas. Entretanto, hoje, somos praticamente obrigados (não só pelo nome de nosso grupo) a concentrar nossos esforços sobre as formas mais tradicionais de violência do Estado contra os direitos humanos.
Quantas pessoas são torturadas ou executadas sumariamente, a cada dia, em governos democráticos ou por ordem destes governos? E no Brasil? Quantas pessoas foram torturadas ou executadas sumariamente, hoje? Quem se importa com essas contas?
Que fazer? Continuar a nossa luta. Qualquer pequena vitória é uma grande vitória.
Viva o Dia Internacional de Luta pelos Direitos Humanos!
Professor da Unicamp

O escritor e as ditaduras

Frei Betto
Sabemos todos que a arte literária é polissêmica. As palavras têm vida própria e se multiplicam em diferentes significados.
Todo leitor capta o texto a partir de seu contexto. E então extrai, para seu enriquecimento subjetivo e cultural, o pretexto. Ou melhor, o pós-texto. Dito de outro modo, a cabeça pensa onde os pés pisam. O lugar sociocultural do leitor influi na hermenêutica do texto. Há sempre um diálogo entre o leitor e a narrativa. E, de certo modo, o leitor se espelha naquilo que lê. O enigma da esfinge - “Decifra-me ou te devoro” - bem se aplica ao exercício da leitura.
Um texto é tanto melhor compreendido quanto mais o leitor se encontra no contexto em que o texto foi produzido. Quem melhor tem condições de conhecer a obra de Guimarães Rosa, um mineiro ou um alemão? Certamente o alemão tem mais possibilidades de usufruir da obra de Goethe do que um mineiro.
Todo ponto de vista é a vista a partir de um ponto – aquele no qual se encontra o leitor. O leitor A não coincide com o lugar sociocultural do leitor B. A mudança de lugar sociocultural provoca mudança de lugar epistêmico. Daí as diferenças hermenêuticas comportadas por um texto literário, como são exemplos a Bíblia, o Alcorão e O capital de Karl Marx.
Escrita subversiva
Não conheço nenhuma obra literária de valor que faça apologia do stalinismo, do nazismo ou mesmo do capitalismo. Há, sim, obras que, amparadas por poderes ditatoriais, alcançaram grande sucesso de vendas, como é o caso de Minha luta, de Adolf Hitler. Mas êxito comercial não significa talento ou obra de arte.
Esta a força da literatura sob ditaduras: ela traduz o sofrimento das vítimas e dialoga com as vítimas. Ela dá voz a quem foi silenciado. Dá vida a quem morreu assassinado. Não nasce da encomenda do poder, e sim do grito parado no ar, da garganta sufocada, do sentimento reprimido, da oceânica vocação humana à liberdade. É literalmente uma escrita subversiva, que corre “por baixo” e projeta luz crítica sobre o que se passa “por cima”.
Cinco textos clássicos redigidos e divulgados sob regimes autoritários são os quatro Evangelhos e o Apocalipse. Foram escritos sob o Império Romano. E expressam a visão das vítimas, a partir daquela vítima que mais se destacou – Jesus de Nazaré, preso, torturado e condenado à pena de morte romana, a cruz.
Nos Evangelhos são nítidas as críticas ao Império Romano e a seu preposto, o Sinédrio judaico. A começar pelo massacre das crianças decretado pelo rei Herodes. O símbolo das legiões romanas era o porco. E é numa vara de porcos que Jesus ordenou aos demônios entrarem e se precipitarem no abismo (Mateus 8, 28-34). O capítulo 23 de Mateus é, todo ele, uma forte denúncia contra o poder autoritário, reforçado pela suposta sacralidade de se falar em nome de Deus. Ali as autoridades religiosas são tratadas como “hipócritas! Exploradores e ladrões! Guias cegos! Sepulcros caiados! Raça de víboras! Assassinos!”
A crítica mordaz não poupa nem Herodes Antipas, que decretou a decapitação de João Batista. Quando os fariseus alertaram Jesus: “Deves ir embora daqui, porque Herodes quer te matar”, o homem de Nazaré qualificou o governador da Galileia de “raposa” (Lucas 13, 31-32).
O Apocalipse (= Revelação, tirar o véu) está distribuído em 22 capítulos. O livro se chama Apocalipse porque, ao tirar o véu, mostra ao leitor o outro lado das coisas. Aquilo que só a fé enxerga. Seus capítulos foram redigidos em diferentes épocas. Os iniciais, provavelmente escritos na província romana da Ásia (atual Turquia), no ano 64, sob a perseguição de Nero. Outros consideram que foram redigidos durante os anos em que os romanos promoveram o cerco de Jerusalém e o massacre da população da cidade (67-70). De todo modo, são textos sob a tirania. Textos que brotaram da lancinante angústia de quem já não suportava tanto sofrimento e perguntava: “Até quando, Senhor?” (6, 10).
Os capítulos introdutórios do Apocalipse se espelham no livro do Êxodo. Porque a pergunta é a mesma: quando estaremos livres das garras do faraó? A diferença é que, agora, o faraó chama-se imperador romano.
João convoca seus leitores a se colocarem em nível mais elevado que o palco de sofrimentos. Convida-os a se deslocarem de seu lugar geográfico e epistêmico e ocuparem o lugar do qual Deus encara os fatos: o céu. “Ele encontrou a porta do céu aberta” (4, 1). E lá está o trono de Deus. A imagem do trono aparece 47 vezes no texto!
Ao entrar no trono, o leitor tem, dali, uma visão abrangente, que abarca inclusive o futuro, “o que deve acontecer depois” (4, 1; 1,1). E quem olha do trono de Deus relativiza todos os poderes da Terra!
O trono é envolvido pelo arco-íris, que evoca o fim do Dilúvio e a aliança de Deus com a humanidade. Ao redor do trono de Deus estão 24 tronos com 24 anciãos – são os líderes do Antigo e do Novo Testamento, os chefes das 12 tribos de Israel e os 12 apóstolos. Todos trajam roupas brancas e trazem coroas na cabeça – símbolos da vitória e da realeza.
Todo o texto do Apocalipse joga com duplo sentido. Os recursos do sonho e das visões permitem que o autor veja o passado e o futuro. Não há motivo para chorar, pois é o Cordeiro – Jesus – que conduz a história. A imagem do Cordeiro vem de Isaías 53, 7 e do cordeiro pascal, cujo sangue nos pórticos libertou os hebreus da dominação do faraó egípcio (Êxodo 12, 23). Esse díptico é constante em toda a literatura bíblica.
Na Bíblia, cavalo equivale, hoje, a um tanque de guerra, sinal do poder opressor. Os quatro cavalos do Apocalipse simbolizam as desgraças que o povo da época mais temia: cavalo branco (6, 2) – invasões de exércitos inimigos; cavalo vermelho (6, 4) – guerras e matanças; cavalo negro (6, 5) – fome e carestia; cavalo esverdeado, cor de cadáver (6, 8) – doenças, peste e morte.
Escritores vítimas da tirania
Na história universal da ignomínia figuram inúmeros escritores vítimas da tirania: o apóstolo Paulo, condenado ao cárcere; Dante, ao exílio; Galileu, à abjuração; Campanella, à masmorra; Giordano Bruno, à fogueira; Dostoievski, ao fuzilamento.
Figuram também padre Antônio Vieira, vítima da Inquisição, e Cervantes, aprisionado pelos mouros na Argélia. E ainda Gorki, Trotsky, Gramsci, Primo Levi e Soljenítsin. E Cláudio Manoel da Costa e Tomás Antônio Gonzaga; Graciliano Ramos e Jorge Amado; Monteiro Lobato e Mário Lago, e Carlos Drummond de Andrade como em A noite dissolve os homens (1940). E mais recentemente, no Brasil, Augusto Boal, Flávia Schilling, Fernando Gabeira, Renato Tapajós, Thiago de Mello e Maurice Politi, entre tantos outros que, na literatura, registraram suas memórias do cárcere ou do exílio.
As memórias dos “subterrâneos da liberdade”, da perseguição ou do exílio são feitas de fragmentos, de diários inconclusos, de cartas censuradas, de romances nos qual a ficção é apenas um artifício para melhor traduzir a realidade. Elas têm tríplice finalidade: a primeira, terapêutica, permitir ao autor organizar minimamente seu caos interior e, na medida do possível, objetivar seu sofrimento, aplacar suas dores. Como bem expressa Ferreira Gullar em Traduzir-se:
"Uma parte de mim / é só vertigem; / outra parte, / linguagem. / Traduzir uma parte / na outra parte / - que é uma questão / de vida ou morte – / será arte?"
Fazer literatura é traduzir-se, traduzir a vertigem em linguagem, transformar o caos em cosmo, como assinala Adélia Bezerra de Meneses. "Quer percebamos claramente ou não,” - diz Antonio Candido – “o caráter de coisa organizada da obra literária torna-se um fator que nos deixa mais capazes de ordenar a nossa própria mente e sentimentos; e em consequência, mais capazes de organizar a visão que temos do mundo."
A segunda finalidade é denunciar a opressão, a ditadura, desvelando sua face cruel, monstruosa, que sequer admite a liberdade de opinião e pensamento. Por fim, produzir obra de arte, transmutar o real, abrir os olhos e a mente dos leitores para outras dimensões e nuances do terror, como são exemplos notáveis a Recordação da casa dos mortos, de Dostoiévski e, aqui no Brasil, Memórias do cárcere, de Graciliano Ramos.
Como afirmou Augusto Roa Bastos, pela boca do ditador Francia, no célebre romance Eu, o supremo, “escrever não significa converter o real em palavras, mas sim fazer com que a palavra seja real.”
E a terceira finalidade, que a rigor deve figurar como primeira, é produzir obra de arte.
Literatura de resistência
O primeiro romance escrito na América, que se tem notícia, foi Periquillo sarniento, do mexicano José Joaquín Fernández de Lizardi (1776-1827). Publicou-se o texto em 1816. Através das aventuras do protagonista, o autor descreve a vida colonial e critica veladamente o colonizador espanhol. Desde então a literatura latino-americano ficou marcada por uma íntima relação com a política.
A literatura, como toda obra de arte, é uma forma de resistência, de denúncia e de anúncio. Ela pode estar contida num livro, num manifesto ou mesmo num simples grafite gravado no muro de rua. Ali as palavras quebram o silêncio que nos é imposto, expressam nossa dor e nossa esperança, desmascaram e ridicularizam o tirano e a tirania.
“Ele (o romancista) – assinala Alfredo Bosi em seu clássico Literatura e resistência - dispõe de um espaço amplo de liberdade inventiva. A escrita trabalha não só com a memória das coisas realmente acontecidas, mas com todo o reino do possível e do imaginável. O narrador cria, segundo o seu desejo, representações do bem, representações do mal ou representações ambivalentes. Graças à exploração das técnicas do foco narrativo, o romancista poderá levar ao primeiro plano do texto ficcional toda uma fenomenologia da resistência do eu aos valores ou antivalores do seu meio. Dá-se assim uma subjetivação intensa do fenômeno ético da resistência, o que é a figura moderna do herói antigo.” (PP. 121-122 in Literatura e resistência, Companhia das letras, SP, 2002).
A literatura se nutre de nostalgia e de utopia. E muitas vezes as duas convergem, como no verso de Castro Alves, em Poesia e mendicidade:
“Hoje o Poeta – caminheiro errante, / Que tem saudades de um país melhor.”
Excelente exemplo de arte literária que bem traduz o espanto frente à ignomínia é o brevíssimo conto de Augusto Monterroso, nascido em Honduras em 1921 e falecido no México em 2003. Seu miniconto, intitulado O dinossauro, mereceu elogios de Gárcia Márquez, Carlos Fuentes e Isaac Assimov, e tem apenas sete palavras: “Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá.”
Monterroso refugiou-se, ainda jovem, por razões políticas, na Guatemala e, posteriormente, no México. O conto do dinossauro é de seu primeiro livro, publicado em 1959, aos 38 anos, ironicamente intitulado Obras completas (e outros contos). Ali já transparecia seu estilo satírico, que ele talentosamente utilizava para criticar injustiças e discriminações.
Todos nós, escritores latino-americanos nascidos no século XX, quando acordamos o dinossauro ainda estava lá... Entre intervalos de democracia burguesa, predominaram regimes ditatoriais, jurássicos, violentos, que nos fizeram mergulhar no pesadelo captado, no Brasil, pelas obras de Graciliano Ramos, Jorge Amado, Cecília Meirelles, Antônio Callado, Carlos Drummond de Andrade, Thiago de Mello e tantos outros.
Ética e imaginário
A literatura logra contornar uma questão ética que se coloca sob as ditaduras: a questão da mentira. Ali a razão política supera o valor ético. Se um dissidente ou opositor é interrogado a respeito da identidade de seus companheiros, a verdade deverá ser calada, omitida. Como diz Castoriadis, o efeitos de sua respostas não concernem apenas à sua pessoa, à sua consciência, à sua moralidade, mas à vida de muitas outras pessoas.
O escritor, entretanto, não tem, como autor, compromisso com a verdade. Como observou Platão, “os poetas mentem muito”. O compromisso do escritor é com a verossimilhança. Ele transgride as regras da sintaxe e da ordem estabelecida. Como frisou Sartre, o escritor, como intelectual, sente-se à vontade com o pensamento subversivo. Ele só tem que prestar contas a si mesmo. Ele é a sua própria autoridade. Tem o poder de caricaturar, simular, sugerir, ridicularizar o poder e exaltar as vítimas. Como faz o autor do Magnificat no evangelho de Lucas, ao proclamar que “o Senhor despediu os ricos de mãos vazias e saciou os pobres de bens; derrubou os poderosos de seus tronos e exaltou os humildes” (1, 46-55).
O escritor suscita o diálogo entre o real e o possível, a realidade e o sonho. Como intelectual, jamais se instala na inércia de um saber adquirido. Está sempre se interrogando a respeito das concepções de mundo, dos modelos sociais, dos valores e normas que regem uma sociedade. Ele se inscreve nas fileiras do contra-poder político. Na opinião de Camus, o papel do escritor, como o do intelectual, é defender a lógica da indignação contra a lógica da resignação.
Sob ditadura, tirania ou opressão, o escritor, inconformado, lida com a mais poderosa arma do ser humano: a imaginação. Ela é capaz de suscitar o mais hediondo ato de violência ou mais solidário gesto de amor. É capaz de desfantasiar o ditador – “o rei está nu” – e fantasiar o reino da liberdade. E ao empunhar a sua pena, o escritor afirma a sua liberdade em relação a todos os poderes – civis, militares, políticos, econômicos e religiosos. Demole preconceitos. Aborda a condição humana com razão aberta, capaz de dialogar com as demais modalidades de saber.
O escritor é um indignado. A ele se aplica a máxima de Terêncio: “Nada do que é humano me é indiferente”. Pois se recusa a aceitar o mundo tal como ele é ou aparece. Contesta-o, critica-o, amplia suas potencialidades, transforma-o através de sua imaginação, povoa-o com seus personagens, transubstancia-o por sua arte.
Quando postado diante do pelotão de fuzilamento, em 1849, Dostoiévski se convenceu do que, mais tarde, colocaria na boca de um de seus personagens: “Podem destruir tudo, menos a mais poderosa arma que um homem possui: a sua consciência.”
Toda obra literária é uma apologia à liberdade de consciência. E é na consciência que o artista se define como clone de Deus. Pois transforma a fantasia em realidade, o sonho em narrativa, a intuição em arte. Porque nada existe que, antes de se tornar real, não tenha sido concebido pela fantasia. Da roupa que vestimos aos veículos nos quais trafegamos, dos sapatos que calçamos à moradia na qual habitamos, tudo brotou da fantasia. Daí o impacto da literatura, filha dileta do imaginário. Ela é uma arte ontologicamente subversiva e subvertida, brota do chão da vida, dos porões de nosso psiquismo, de nossas reações atávicas ao que ameaça ou suprime a liberdade.
É curioso constatar que mesmo autores declaradamente simpáticos a ditaduras - como o foram Fernando Pessoa em relação a Salazar; Ezra Pound em relação a Mussolini; Céline em relação a Hitler; Borges em relação a Pinochet e aos generais argentinos -, à revelia de suas convicções políticas conservadoras não deixaram de produzir obras de forte impacto subversivo, crítico, páginas que nos induzem a ansiar por mais liberdade, o que não deve ser confundido com liberalismo ou neoliberalismo. Como predisse o profeta Isaías, não há verdadeira liberdade se ela não estiver irmanada com a justiça, de modo a gerar paz.
Tenhamos sempre presente, entretanto, que a literatura não tem que ser de esquerda ou de direita, a favor ou contra o governo vigente. Tem que ser bela, obra de arte, signo estético, sem o que perde valor. Não se exija, portanto, literatura engajada, e sim de qualidade, capaz de suscitar em nós leitores um novo olhar sobre o real. Do escritor, sim, pode-se esperar engajamento, compromisso com a justiça, empenho contra a opressão. Até porque, em sua obra, ele nada mais faz do que nos abrir a outros mundos possíveis, através do imaginário que não conhece limites. Seu campo de trabalho é simplesmente o infinito.
Frei Betto é escritor, autor do romance “Minas do Ouro” (Rocco), entre outros livros
Tema proposto pela União Brasileira de Escritores para o Congresso Brasileiro de Escritores Ribeirão Preto, 14 de novembro de 2011

A tortura e a irresponsabilidade presidencial

Fábio Konder Comparato
Ao adotarem no curso do século XIX o sistema presidencial de governo, criado pela Constituição norte-americana de 1787, os países latino-americanos, inclusive o Brasil, operaram uma mudança de fundo no modelo ianque.
Nos Estados Unidos, os Founding Fathers de Filadélfia acolheram sem hesitações o princípio da separação de Poderes, formulado originalmente por John Locke no século XVII e retomado por Montesquieu no século seguinte. Ou seja, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário têm competências exclusivas, não podendo nenhum desses Poderes interferir no funcionamento dos demais.
Na América Latina, diversamente, prevaleceu um sistema dúplice, com a instituição, por trás da fachada constitucional, de um direito não oficial, para a proteção dos “donos do poder”.
Assim é, por exemplo, no que diz respeito ao Chefe do Poder Executivo. Ninguém ignora que em todos os países latino-americanos, sem exceção, muito embora os textos constitucionais proclamem solenemente o princípio da separação de Poderes, o Presidente da República goza de um status hegemônico em relação a todos os demais órgãos do Estado. As razões históricas dessa dubiedade institucional são bem claras. Nos países hispano-americanos, a tradição caudilhesca. Entre nós, a tradição imperial.
A Constituição Política do Império de 1824, em seu art. 99, declarava que “a Pessoa do Imperador é inviolável e Sagrada (com maiúscula). Ele não está sujeito a responsabilidade alguma”. O Imperador, qualificado como “Chefe Supremo da Nação e seu Primeiro Representante”, era titular do Poder Moderador, “para que incessantemente vele sobre a manutenção da independência, equilíbrio e harmonia dos mais Poderes Políticos” (art. 98).
Ou seja, como sustentou com razão o 1º Visconde do Uruguai, entre nós nunca vigorou a máxima de que o rei reina, mas não governa. Por força da Constituição de 1824, sublinhou ele, o Imperador reina, governa e administra. O falso regime republicano, instalado em 1889, herdou essa tradição imperial e fez do Presidente da República um agente político propriamente irresponsável.
Alguns exemplos, referentes aos dois últimos Presidentes, ilustram o que acabo de afirmar. Episódios semelhantes, senão piores, aconteceram com todos os seus antecessores. Na verdade, não se trata de uma questão de pessoas, mas de mentalidade e costumes políticos.
Dispõe a Constituição Federal que o Presidente da República deve respeitar, sob pena de crime de responsabilidade, o livre exercício do Poder Judiciário (art. 85, II).
Sucedeu que em abril de 2010, o Supremo Tribunal Federal julgou a ADPF (argüição de descumprimento de preceito fundamental) nº 153, ajuizada pelo Conselho Federal da OAB. O que se pediu, nessa ação, foi simplesmente que a lei de anistia, promulgada pelo último Presidente do regime militar, fosse interpretada à luz da nova ordem constitucional e do sistema internacional de direitos humanos.
Surpreendentemente, o então Presidente da República, cedendo à pressão do seu Ministro da Defesa, que alegava inquietação no seio das Forças Armadas, pediu pessoalmente aos Ministros do tribunal para que a ação fosse julgada improcedente, de modo a ser mantida a impunidade dos agentes militares que assassinaram, torturaram e estupraram presos políticos, durante o regime de exceção.
Sobreveio, porém, em novembro daquele mesmo ano, a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que condenou o nosso país em razão de graves violações de direitos humanos, praticadas durante a chamada Guerrilha do Araguaia. Nessa mesma sentença, e seguindo sua consolidada jurisprudência, a Corte julgou que a anistia dos responsáveis por crimes de Estado contra opositores políticos, a despeito do que fora decidido pelo nosso Supremo Tribunal Federal, é juridicamente insustentável, por violar o sistema internacional de direitos humanos.
Pois bem, de acordo com o estatuído no art. 68, primeira alínea, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, à qual o Brasil aderiu, “os Estados-Partes na Convenção comprometem-se a cumprir a decisão da Corte em todo caso em que forem partes”.
Acontece, porém, que até hoje, faltando poucas semanas para o término do prazo de apresentação pelo nosso país do primeiro relatório de execução dessa sentença condenatória, o governo da atual Presidente da República não cumpriu nenhum dos seus pontos decisórios. Pior: o Advogado-Geral da União, que é “submetido à direta, pessoal e imediata supervisão do Presidente da República” (Lei Orgânica da Advocacia-Geral da União, art. 3º, § 1º), ao pronunciar-se no processo da ADPF nº 153 supra-referida, declarou sem rodeios que o Brasil desconsidera a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Não satisfeita com essa manifestação de repúdio aos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, a atual Presidente da República, que exerce com exclusividade a direção da política de relações exteriores (Constituição Federal, art. 84, VII), decidiu descumprir abertamente a injunção determinada pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, de suspensão das obras da Usina de Belo Monte.
Ou seja, a atual Chefe de Estado, sem ter a coragem de denunciar formalmente a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, prefere repudiá-la na prática.
Ora, que diz em seu art. 4º, inciso II a Constituição Federal que a Presidente se comprometeu solenemente a “manter, defender e cumprir”, ao tomar posse de seu cargo (art. 78)?
“A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:
II – Prevalência dos direitos humanos.”
Pergunta-se: – Haverá neste país alguma autoridade ou agente político, capaz de tomar a iniciativa de responsabilizar a Presidente da República por essas flagrantes violações da Constituição?
Na verdade, o regime de irresponsabilidade presidencial não se tem limitado apenas a isso.
Dispõe a Constituição competir privativamente ao Presidente da República nomear os Ministros do Supremo Tribunal Federal (art. 84, XIV). Como sabe qualquer pessoa com elementar formação jurídica, todas as competências públicas, especialmente as exclusivas de determinados agentes, são poderes-deveres. O seu não-exercício prejudica gravemente o funcionamento da máquina estatal.
Ora, no caso, trata-se da mais alta Corte de Justiça do país, que se encontra afogada em processos (mais de 100.000 aguardando decisão final), e cujo funcionamento tem sido ultimamente perturbado pela moléstia de um dos seus Ministros, obrigado a se licenciar com freqüência para tratamento de saúde.
Pois bem, já pela segunda vez, a atual Presidente da República deixa transcorrer meses sem providenciar a nomeação de Ministros daquela Corte, para o preenchimento de cargos vagos por aposentadoria.
A Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992, declarou constituir ato de improbidade administrativa “retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício” (art. 11, II). A mesma lei definiu como responsáveis por tais atos todos os agentes públicos, acrescentando incluir-se entre eles todo aquele que exerce, por eleição, cargo público em qualquer dos Poderes da União.
Tranqüilize-se, porém, Sua Majestade. Em primeiro lugar, porque a ação de improbidade administrativa, no caso, só pode ser ajuizada pelo Procurador-Geral da República, que ela própria nomeou. Escusa dizer que não condiz com os padrões brasileiros de gratidão e cordialidade que o Chefe do Ministério Público intente ações judiciais contra quem o escolheu para exercer tais funções.
Tranqüilize-se também a Presidente da República por mais uma razão. Em 2007, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar um processo de reclamação movido por Ministro de Estado, denunciado por improbidade administrativa, decidiu que a Lei nº 8.429 não se aplica aos agentes políticos sujeitos a processo de impeachment pelo cometimento de crime de responsabilidade.
E então? Seria possível abrir um processo por crime de responsabilidade contra a nossa Chefe de Estado, a propósito do retardamento indevido da nomeação de Ministros do Supremo Tribunal Federal?
A resposta é negativa. Sem dúvida, a Constituição Federal declara constituir crime de responsabilidade do Presidente da República atentar contra “o livre exercício do Poder Judiciário” (art. 85, II). Mas a Lei nº 1.079, de 1950, que define tais crimes, não inclui entre eles o retardamento indevido na nomeação de magistrados.
Em suma, o Brasil não faz exceção à regra geral da duplicidade normativa, vigente em toda a América Latina, à qual me referi no início desta exposição. A nossa Constituição se abre com a solene afirmação de que “a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito” (art. 1º). Mas na boa e simples realidade, como se acaba de ver, o Presidente da República está acima da Constituição e das leis; e o povo, do qual todo poder deveria emanar (art. 1º, parágrafo único), permanece em estado de absoluta menoridade política, sempre contente com o afago recebido dos poderosos.
Artigo retirado do site Conversa Afiada
Publicado em 31/10/2011
Jurista
Para além do perdão
Otávio Dias de Souza Ferreira
A decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, proferida no dia 24.11.2010, que condenou o Estado brasileiro no caso da Guerrilha do Araguaia ressuscita a discussão sobre a violência estatal da Ditadura brasileira, ostenta o condão de revogar a lei da anistia e traz à tona verdades convenientes.
A Corte reconheceu por unanimidade que o Brasil é responsável pelo desaparecimento forçado de sessenta e duas pessoas, detenção arbitrária e ilegal, tortura e morte e falta de investigação dos fatos, situação que viola uma série de direitos e garantias judiciais como o direito à vida, à integridade pessoal, ao reconhecimento da personalidade jurídica, ao devido processo, à falta de acesso à justiça, à informação e à verdade. Entre as punições impostas ao Brasil, destacam-se os deveres de: conduzir eficazmente a investigação penal dos fatos a fim de esclarecê-los e punir os responsáveis; esforçar-se para localizar as vítimas desaparecidas, identificando os mortos e entregando seus restos para familiares; realizar ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional a respeito dos fatos; implementar programas de educação das forças armadas em direitos humanos; tipificar o delito de desaparecimento forçado; produzir informações relativas às violações de direitos humanos em relação a esse episódio; e pagar indenizações aos familiares e vítimas.
O que mais inova tecnicamente nessa decisão é seu potencial de coerção. De acordo com julgamento recente do STF relativo à prisão do depositário infiel, os tratados de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário têm força hierárquica legal superior às leis comuns, embora menor do que a Constituição. Como o Brasil ratificou expressamente seu reconhecimento à competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos para firmar a última palavra quando o assunto tratasse de tais direitos, significa que a decisão sobre o caso Araguaia tem natureza de norma superior à Lei de Anistia, revogando seu artigo primeiro e permitindo a persecução civil, administrativa e penal dos autores de crimes de lesa-humanidade e o esclarecimento da verdade. A decisão deve ser cumprida e nem mesmo a estranha decisão do STF de abril de 2010, que considerou constitucional a lei de anistia, permite entendimento diferente, porque a realidade legal agora é nova, conforme a Constituição e resulta de compromisso voluntário do país perante a comunidade internacional, no exercício de sua soberania.
Entre as determinações da condenação, a Corte ressaltou que a Lei de Anistia não pode servir de empecilho à investigação e punição dos responsáveis pelas violações, por ser incompatível com a Convenção Americana. A Lei 6.683, de 1979, representou, para a época, uma conquista contra o regime ditatorial por beneficiar alguns dos perseguidos e presos políticos no momento em que as bases de sustentação do Governo estavam ruindo. Mas não se pode afirmar que foi propriamente fruto de uma negociação com a sociedade civil, uma vez que não havia paridade de forças. Se por um lado era uma das medidas da agenda de abertura política “lenta, gradual e segura” que estava em curso, por outro atendia aos interesses dos militares ao consagrar a impunidade aos autores de crimes contra a humanidade em uma ordem jurídica ilegítima, cujo nascimento se dera através de um golpe de Estado na democracia constitucional instaurada em 1946. Tanto que o alcance da anistia foi parcial, não alcançando muitos dos presos políticos que permaneceriam na clausura.
Muitos juristas polemizam em torno da prescrição dos delitos perpetrados naquela época. Mas o voto do Juiz “ad hoc” Roberto de Figueiredo Caldas, na decisão referida, lembra que a Assembléia Geral das Nações Unidas, em 1968, adotou a Convenção sobre a Imprescritibilidade de Crimes de Guerra e Contra a Humanidade. O Brasil a assinou, embora depois não a tenha ratificado. Todavia, o Magistrado ensina que uma característica peculiar desse tratado é a de apenas reconhecer aquilo que o costume internacional já determinava, sendo apenas consolidadora de Direito já existente. E o costume é consagrado no direito internacional como fonte de grande importância. Assim foi o entendimento da própria Corte Interamericana, quando do julgamento do Caso Almonacid, elevando a imprescritibilidade desses delitos à categoria de norma de direito internacional geral.
A professora Flávia Piovesan adverte para o fato de que praticamente toda a América Latina já reviu suas leis de anistia, menos o Brasil. Cita, na jurisprudência internacional, o Caso Barrios Altos, como paradigmático na Corte Interamericana no sentido de condenar o Peru a anular sua Lei de anistia. No mesmo sentido orientam-se duas decisões similares da Comissão interamericana de Direitos Humanos em relação às leis de Argentina e Uruguai e um “General Comment” adotado pelo Comitê de Direitos Humanos em 1992, este no âmbito da Organização das Nações Unidas (“Direitos Humanos e Justiça Internacional”, fls. 108 e 111).
Talvez mais relevante para a sociedade do que condenar penalmente criminosos de idade bem avançada que agiam em nome do Estado – quando já desfrutariam de benefícios legais em razão da própria senilidade, e provavelmente já nem teriam tempo hábil de vida para cumprir as reprimendas que merecem – está o resgate e a divulgação da história e seu valor pedagógico.
A criação da ‘Comissão da Verdade’ – conforme projeto enviado ao Congresso Nacional em maio de 2010 – auxiliaria o cumprimento da decisão da Corte Internacional, bem como o esclarecimento de muitos outros crimes cometidos em todo o país durante o período da ditadura militar.
O esquecimento das barbaridades cometidas pelo Estado no período ditatorial produz o fenômeno da tautologia – repetição do mesmo. Isso é notório, por exemplo, nos recorrentes usos da tortura como instrumento de investigação e da violência policial contra manifestações sociais pacíficas.
Sobre a importância social da memória, é bem vinda a lição de Herbert Marcuse, ao advertir-nos sobre seu poder subversivo, sua capacidade de libertação e redenção do passado, permitindo um novo futuro com transgressão destrutiva. A “verdade histórica” teria o condão de denunciar o caráter irracional da ordem estabelecida, contribuindo para reduzir a ignorância, a brutalidade e a opressão (“Eros e Civilização”, p. 112, e “A ideologia da Sociedade Industrial”, p. 104 e 140).
O julgamento de agentes do Estado teria impactos materiais e imateriais poderosos também para as famílias – tanto das vítimas, quanto dos vitimadores –, reparando uns e quitando glórias indevidas de outros.
Incomodados com a repercussão da decisão da Corte Interamericana, defensores dos criminosos militares – e eles próprios – já se insurgem contra, praguejando pela investigação dos crimes dos dois lados, pretendendo justificar a violência que praticaram, a partir da violência perpetrada pelos movimentos armados de rebeldia que combatiam. Vladimir Safatle esclarece que essa retórica se baseia na “teoria dos dois demônios”, a qual visa, em última instância, perpetuar a impunidade. Recorda o fato de que não existiam grupos de luta armada no Brasil antes do Golpe militar, sendo eles “resultado direto do fechamento das vias políticas de transformação”. E conclama a tese do direito de resistência da teoria política liberal, segundo a qual “toda ação contra um governo ilegal é uma ação legal”. (“Dois Demônios”, Folha de São Paulo, 11.01.11).
Os torturadores de outros tempos atingiram os maiores graus hierárquicos em suas corporações, reproduzindo uma cultura de reprimenda aos direitos humanos nas gerações que lhes sucederam. Depois de apenas condecorações e louros angariados por anos a fio, eis uma oportunidade para se deter essa lógica. A busca da verdade sobre o passado consiste, mais do que na vergonha de alguns, em um alento contra toda uma escola de impunidade e truculência estatal.
Advogado em São Paulo, associado do IDDD
(Instituto de Defesa do Direito de Defesa)
Advogado, formado em Direito e Administração pela Universidade Presbiteriana Mackenzie

Viagem ao velho mundo
Helena Martins e E. P. Cavalcante
Saímos do Rio de Janeiro para Lisboa na noite de 8 de agosto. No dia 9, às 11 horas, chegamos ao aeroporto da Capital portuguesa. A entrada na Comunidade Econômica Europeia, via Portugal, é bem melhor do que ir diretamente a qualquer outro país da Europa. A passagem pela imigração em Lisboa é bem mais leve, para quem vai do Brasil.
Na capital lusitana fomos recebidos por um casal amigo e ali permanecemos até o dia 12, quando partimos para a cidade do Porto, onde dormimos. No dia 13 pela manhã, partimos para Santiago de Compostela, na Galícia, terras de Espanha. Após conhecer Santiago, uma cidade muito interessante e que realizava um evento com jovens católicos de todo o mundo – iam a Madri para visita ao Papa – partimos na manhã do dia seguinte para Vitória, no País Vasco – pronuncia-se Basco.
Chegamos a Vitória na noite de 14 de agosto, e no dia 15 era feriado nacional em toda Espanha, inclusive no País Vasco. Aconselharam-nos a ir a Guernica de ônibus, passando por Bilbao, o que fizemos.
Eu queria muito conhecer Guernica, a cidade que renasceu das cinzas, pois foi inteiramente destruída pela aviação nazista, em 1937. E a ela eu dediquei algumas páginas do meu livro: Guerra & Terrorismo.
Lá chegando, havia uma manifestação pacífica, mas calorosa, reivindicando anistia para os presos políticos e independência para o povo vasco. Quando falei que fui anistiado político, no Brasil, eles ficaram muito alegres, nos abraçaram, e fizeram questão de tirar fotos conosco. Doei dois exemplares do meu livro para eles, com a recomendação de lerem as pag.s 85 e 86, onde falo do bombardeio da cidade. Ali eu transcrevo o discurso do prefeito de Guernica, logo após os tristes eventos de 26 de abril de 1937, onde ele diz:– “ Guernica foi ferida mas não morrerá. Das árvore brotarão novas folhas verdes em toda primavera: seus filhos a elas retornarão, suas casas serão reconstruídas, suas igrejas escutarão novamente seus hinos e preces. Guernica, o símbolo de nossas liberdades nacionais e o símbolo de ferocidade do fascismo internacional, não pode morrer.” Mas para um vasco, que prefere se comunicar na sua própria língua – ignorando ostensivamente o espanhol – ler português não é fácil, convenhamos.
Fomos visitar a Árvore da Vida, a única coisa que ficou de pé na cidade, após o bombardeio. À tarde voltamos a Vitória.
Foram 25 dias perambulando pelo velho mundo. Mas o que mais nos impressionou foi o País Vasco, o povo vasco.
Que aquele povo tem milênios de história e de lutas nós já sabíamos. É certo, – e as pesquisas comprovam – que os vascos ocuparam a Península Ibérica por cerca de 2 mil anos antes de Cristo. Portanto aí já vão 4 mil anos. Mantendo a sua língua, cultura e tradições. E lutando contra invasões de povos que tentavam a conquista da região.
Em 778, o Imperador Carlos Magno, fundador do Sacro Império Romano Germânico, invadiu a Península Ibérica, e foi derrotado pelos bascos na batalha de Roncesvalles, morrendo em combate o famoso guerreiro Roldão ou Rolando, seu sobrinho, um dos “doze pares de França” , que cobria a retaguarda do exército em fuga. Essa história virou lenda, e hoje é cantada pelos cordelistas nordestinos.
A língua basca, euskera, tem uma história a parte: não se sabe a sua origem. Não tem nenhum parentesco com qualquer das línguas do tronco indo-europeu, é única.
Mas o mais importante para nós, foi ouvirmos de brasileiros que moram lá, em Vitória:
“Este país é mais do que socialista, já é quase comunista. Aqui não há propriedade privada explorando os serviços públicos: a saúde, a educação, os transportes, e outros. Tudo que presta serviço à população tem de ser público. A saúde é gratuita, não há clínicas particulares, e o governo vasco paga 70% das receitas médicas. A educação também é pública.”
Aqui é necessário se fazer um parêntesis: em toda a Europa, educação e saúde são prioridades para os governos.
Perguntei sobre o ETA. E ouvi a resposta: “Olha! o ETA tem dois lados – me falou uma das pessoas com quem conversei – ela tem um lado que eu detesto, é radical. Há algum tempo, mataram uns policiais espanhóis que andavam por aí. Isto, para mim é inaceitável. Mas tem outro lado: ele protege o povo vasco. Há pouco tempo – continuou o meu interlocutor – veio um pessoal de fora, e abriu uma boate muito badalada, com muita música e iluminação feérica. O ETA descobriu que eles estavam vendendo cocaína. Telefonou para eles e avisou: ‘ Não! Aqui não pode vender isto!’ Mas os donos da casa de festas continuaram na sua atividade criminosa. Então o ETA procurou uma hora em que não havia ninguém no local, e dinamitou o prédio.”
No entanto, a maconha lá é tolerada. Mas não pode haver tráfico. Ouvi isso de pessoas que moram lá. E o que muito me impressionou, positivamente: “Aqui não há ladrões”, ouvi isto de mais de um habitante do país.
Quanto ao salário: o menor salário pago a um trabalhador – da limpeza das ruas, como exemplo – não pode ser menos de mil euros. Seriam dois mil e quinhentos reais, no nosso câmbio atual, e o maior salário, que é o do médico, não pode passar de três mil euros. Há equilíbrio econômico, e também social.
Em todas as cidades europeias, que visitamos, uma coisa chama a atenção e alegra a vida: as flores. Há muitos jardins, muitas flores. Mas o País Vasco, nesse ponto, supera todos. Aquele país é um jardim. Na entrada de Guernica há um pequeno, mas belíssimo! Parece que ali depositaram vários buquês de flores. Foi a coisa mais linda que vimos em nossa viagem!
Em Paris tivemos a única decepção no nosso giro pela Europa: fomos logrados por um site que oferece o serviço de hospedagem, pago com cartão de crédito, daqui do Brasil, para diversas partes do mundo. Cuidado, viajantes!
Mas felizmente, o Consulado Geral do Brasil em Paris resolveu o problema. No que somos gratos àquela representação diplomática. Sito nominalmente os senhores Antônio Xavier, chefe de comunicações, e os jovens funcionários Bruno e Jorge. Funcionários eficientes e prestativos.
Fomos a Verdun, para ter outra visão do resultado das Grandes Guerras – ou de qualquer guerra – sobre a humanidade. Lá visitamos o forte Douaumont e a Torre onde fica o ossário. A cidade de Verdun é pequena, mas muito bonita e aconchegante. Porém, lembramos que na Batalha de Verdun houve 700 mil baixas, com mais de 80% mortos em combate, e os demais morreram nos hospitais militares; e outros ficaram mutilados, em cadeiras de rodas, como mortos-vivos. Cerca de 80% daquela tropa estava na faixa de 18 a 24 anos.
Já conhecíamos a capital portuguesa, e podemos afirmar: Lisboa está cada vez mais bonita. É pena que brasileiros gastem tantos dólares para conhecer Miami e Nova Iorque, a Meca do capitalismo, e esqueçam a Europa. Especialmente Portugal e o País Vasco.
Rio de Janeiro, outubro de 2011
Cavalcante é ex-preso político e militar anistiado. Helena é psicóloga

Oração de um nenhum a Nossa Senhora dos Desvalidos
Luis Antonio Baptista

É a primeira vez que rezo para uma santa que não gosto do nome. Não sou desvalida, excluída, carente, fudida ou qualquer coisa semelhante, mas estou precisando da sua ajuda. Melissa me indicou a senhora para esta súplica; é a minha última tentativa. Estou cansada, dona santa. Era devota de São Jorge, mas perdi a devoção. O santo guerreiro não existe mais na minha vida, depois lhe explico. Após o que aconteceu comigo detesto os guerreiros. Minha fé a cada dia que passa vai para o ralo. Grana, saúde, amor nada disso me interessa; o meu pedido a senhora é outro. Não sou feliz, infeliz, não busco ou procuro nada, sou uma insistente. Meu pedido é fruto de uma raiva incontrolável, depois também lhe explico. Deixei a rua, me aposentei da Lapa velha de guerra. Conheci Melissa nas calçadas da Mem de Sá. Sou manicure. Tenho um companheiro, trabalho, gosto de viver. O meu problema não é a falta de algo, é de excesso. Tenho um cansaço por carregar nos ombros o peso de predestinações que não escolhi. Não é mole não, dona santa. Muito nome, muita identidade, muito significado, muita história mal contada sobre este corpo surrado de tanta esquina. Melissa me disse que a senhora escuta os esquecidos pelos outros santos. Tentarei pela última vez. O meu pedido é estranho; os seus companheiros do além só atendem aos que exibem a fome de alguma coisa. Não tenho fome de nada; se tenho não a exibo, vou à luta. Nossa Senhora dos Desvalidos, desesperadamente eu quero ser um nenhum. Mesmo desgostando do seu nome rogo à senhora para ser uma, ou um, inclassificável nenhum. Ontem fui ao posto médico doar sangue para uma antiga colega de calçada. Pegaram a bicha, deram tanta porrada no meio da rua que ela quase morreu. Precisava com urgência de sangue. No posto me informaram que o meu não prestava. Na portaria o cartaz dizia que homossexual masculino não poderia doar. Homossexual é o caralho.!!! Santa dos Desvalidos, dos desclassificados, dos descamisados, dos desgraçados, desculpe mais uma vez o palavrão, mas saí puta daquele lugar. O meu corpo gasto, com este silicone vencido nos seios e esta tripa dependurada ainda vive. Meu sangue não tem nome. A única coisa que ele tem, além daquilo que eu como e bebo, é o que me faz insistir em viver. Vida, para certas pessoas, é insistência. Melissa me chamou de burra, de desinformada. Segundo ela, no programa de uma mulher que conversa com o papagaio, foi informado que nós não poderíamos doar.(1) Depois da minha aposentadoria faço o exame com freqüência, não tenho nada. Por que esta ciência de merda tenta insultar o meu corpo? O sangue de todos os doadores é testado após a doação, por que não o meu? Nos meados dos anos setenta tinha dezoitos anos e trabalhava na Rua do Riachuelo. Certa madrugada recusei dar dinheiro a um policial dono do pedaço e fui parar na delegacia. O cara enfiou um cabo de vassoura no meu rabo e depois me deu um pedaço de papel higiênico para me limpar. O cana sorria dizendo com a voz doce que eu era uma guerreira. Detesto esta palavra até hoje. Na mão do torturador o anel com São Jorge assistia calado. Perdi a fé neste santo. Na delegacia sentenciaram que meu corpo era um insulto; no posto de saúde insultaram o meu corpo e apodreceram o meu sangue. Aliás, Santa dos Desgraçados, o cabo de vassoura entrou no rabo dos travestis vivos e mortos. Não gemi de dor sozinha. A dor que senti foi, e ainda é de muita gente. Minha avó dizia que as artistas do passado tinham carteirinha da saúde pública para controlar a transmissão da gonorréia. Artista mulher e puta eram um risco à saúde. Que medicina é esta, santa dos infames, onde no posto de saúde o usuário morre como barata? Será que esta gente de branco sabe a história do sangue da gente fudida desta cidade? Um cliente do passado, professor em São Paulo, me disse que o sangue tem história; na época não entendi, mas cada dia que passa fica mais claro. Aprendi com meu corpo. Melissa acredita que temos uma alma de travesti, de viado, de bicha, de gay, de homossexual; ela não perde o programa da mulher que conversa com o papagaio; repete sem pensar o que assiste na TV. Outro dia assistiu no programa que gay não é opção e sim orientação; perguntou se eu concordava, desejava saber a minha resposta. Mandei ela ir à merda. Não respondi e não responderei perguntas que já trazem a resposta. Aprendi esta recusa nas delegacias, com os clientes anônimos, na noite e com a noite. É, dona santa, a noite esculhamba muitas verdades. A rua me ensinou que os nomes servem para o combate e para sonhar; depois da luta, do sonho ou do prazer, seguimos em frente, esquecemos o que éramos porque o buraco é mais em baixo. O nós se desfaz até a próxima luta. Levei e dei muita porrada nas calçadas, gritei muito que era viado e daí, vai encarar, mas depois em casa a vida me cutucava, me atrapalhava, e eu esquecia o que me definia. A cutucada da vida me desfazia como uma dádiva inesperada. O espelho nunca me deu sossego. Era uma benção sem deus este esquecimento. Moro em um conjugado no edifício Balança Mas Não Cai, próximo da Central do Brasil. Meu namorado é camelô da Rua Uruguaiana; apesar dos dez anos de casamento só transo com camisinha. Insisto na luta e no sonho. O desassossego do espelho é minha outra benção. Apesar da idade não tenho a arrogância dos guerreiros ou a vaidade dos vencidos. No passado queria ser astronauta, depois Ângela Maria, agora insisto. Alguma coisa deve acontecer. Não espero o acontecimento, deixo ele entrar. Não sou uma morta viva, apesar de tudo. Não sobrevivo. Insistência é o que sou. A noite me ensinou que saúde e vida não são a mesma coisa. Santa dos Desvalidos, a senhora deve estar curiosa para saber o porquê do meu desejo de ser um nenhum. A raiva me desorienta, me faz falar sem parar. Estou cansada. Tem dia que dá vontade de desistir. Insistir, no meio de tanto assassinato de gente que teima em viver, não é fácil. A antiga colega agredida na rua ficou cega. Os filhos da puta quebraram uma lâmpada no rosto dela. Em São Paulo fizeram a mesma coisa com um rapaz. Quando vi esta cena na televisão lembrei do professor, o meu cliente. O sangue tem história; a fúria ou a indiferença também. Ele dizia isto rindo quando me via triste. Às vezes o nó custa a se desfazer e o espelho reflete uma única imagem. Nestes momentos a gente corre o risco de ser reduzida a ressentidos sobreviventes Isto é a morte. Melissa adora as psicólogas que aparecem na televisão propondo o respeito à diferença, aquelas mulheres com voz de freira, ou psicólogos com voz de padre, denunciando o preconceito. Me dá vontade de quebrar a televisão quando escuto estas baboseiras. Por que o respeito? Que diferença? O preconceito acaba, e daí? O que quer esse pessoal que confunde vida com saúde? Melissa não aprendeu com a noite. Não sou diferente, insisto cada vez mais em ser um nenhum. O nó às vezes custa a se desfazer, a vida demora a esculhambar as historinhas que nos fazem engolir. Estou cansada, santa dos que não acreditam nos santos. Detesto pastores, professores, delegados, psicólogos, filósofos e toda esta gente que não sabe me dizer para que serve a liberdade. O vizinho do apartamento 511 sem saber me salvou. Ele é um homem calado, de pouca conversa, mas quando bebe umas cervejinhas adora contar histórias. Soube que meu pai nasceu no sertão de Minas Gerais e me contou uma história que não consigo esquecer. Toda sexta-feira ele está no pé sujo em baixo do prédio. Não sei o seu nome e nem o que ele faz, mas sei que é poeta. Em uma destas noites ele me falou sobre um conto passado em uma cidade pequena de Minas. Um homem de braço com duas mulheres sofria na caminhada; ia da casa ao trem que levaria sua mãe e sua filha para o hospício de Barbacena. Elas partiam para nunca mais voltar. O homem chamava-se Sorôco, um brutalhudo de corpo, voz grossa, que em seguida afinava. A mãe de preto, segundo o poeta, batia a cabeça nos docementes. A filha, também segundo o poeta, punha os olhos no alto, que nem os santos e os espantados, vinha enfeitada de disparates. Usava uma carapuça com panos e papéis de diversas cores. A travessia era uma tristeza. O povo da cidade assistia com respeito à caminhada dos três em direção ao comboio. Todos da cidade gostavam muito de Sorôco. A filha de repente começou a cantar. Santa dos Desvalidos, o vizinho poeta descrevia este canto com brilho nos olhos, para ele a moça cantava levantando os braços e a cantiga não vigorava certa, nem no tom nem no dizer das palavras. Era um constado de enormes diversidades desta vida, que podiam doer na gente, sem jurisprudência. A mulher com os olhos dos espantados cantava o nenhum. A mãe repetia o canto da filha, sem tom, sem jurisprudência ou palavra certa. O trem apitou e as duas partiram para Barbacena. O final da história, dona santa, reproduzo as palavras do poeta: Sorôco estava voltando para casa, como se estivesse indo para longe. Mas, parou. Em tanto que se esquisitou, parecia que ia perder o de si, parar de ser. Num rompido ele começou a cantar, alteado, forte, era a cantiga, mesma, de desatino, que as duas tinham cantado. Cantava continuando. Continuava o nenhum. E foi sem combinação, todos caminhando com ele cantavam a mesma música. Todos da cidade levavam Sorôco para casa, iam até onde que ia aquela cantiga. (2) O nenhum transtornava as fronteiras de todos. Santa dos infames rogo a senhora ser esta canção.
Professor do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em
Psicologia da Universidade Federal Flumiense, doutor em Psicologia Social pela
USP com pós-doutorado em Sociologia pela Universidade de Roma La Sapienza.
Notas
1 O programa citado transmitido em 10/11/2011 pode ser assistido neste endereço http://www.youtube.com/watch?v=iiP4dnZRKhc
2 Rosa, Guimarães .Sorôco, sua mãe, sua filha. Primeiras Estórias. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1988.