VIOLÊNCIA NO RIO DE JANEIRO

A CULPA É DO ISLÃ

Cobertura da tragédia do Realengo oculta a responsabilidade do Estado, a da própria mídia patronal e tenta transformar Wellington de Oliveira na versão tupiniquim
de Osama Bin Laden

José Arbex Filho

Seria risível, não fosse a dor que se abateu no dia 7 de abril sobre a Escola Municipal Tasso da Silveira, no bairro do Realengo (Rio de Janeiro): tudo foi culpa do Islã, nas palavras do brilhante âncora da Rede Globo William Bonner, em 11 de abril. Adotando sua careta mais dramática (pelo menos, é o que o olhar arregalado e esgares de espanto parecem pretender), Bonner esclarece, finalmente, o que levou Wellington de Oliveira, 23 anos, a fuzilar crianças inocentes para, em seguida, liquidar a própria vida: foram as suas ligações com um "grupo terrorista" supostamente islâmico. Claro. Provavelmente Wellington era membro da rede de terroristas que, segundo a "revista" Veja (edição 2.211, de 6 de abril) mantém uma vasta base no Brasil. E a escola do Realengo foi o alvo, talvez, por ser um centro de operação dos serviços secretos dos Estados Unídos e de Israel. Ora ... Se houvesse um prêmio para débeis mentais, Bonner seria imbatível.

Mas é equivocado tratar o "caso Bonner" como de debilidade mental. Fosse isso, o correto seria defender o seu direito à supervisão clínica adequada, a mesma negada a Wellington, diagnosticado como esquizofrênico e fllho~de uma portadora de distúrbios psiquiátricos. A referência da Globo ao Islã – assim como a "reportagem" da Veja – está em perfeita consonância com uma "campanha" feita pela embaixada dos Estados Unidos no Brasil, junto aos principais órgãos de imprensa do país, como revelam vazamentos recentes do WikiLeaks, reproduzidos pelos blogs dos jornalistas Luís Nassif, Paulo Henrique Amorim e muitos outros.

Um telegrama de 2009, enviado a Washington pela embaixada estadunidense, critica a abstenção do Brasil em votação feita no âmbito do Conselho de Direitos Humanos da ONU, em 26 de março de 2009, sobre o tema "difamação de religiões". A resolução foi proposta pela Organização da Conferência lslâmica (OCI), que reúne 56 países, sob o argumento de que as minorias muçulmanas passaram a sofrer ataques de intolerância, discriminação e atos de violência a partir de 11 de setembro de 2001, incluindo leis e procedimentos administrativos que estigmatizam fIéis. Foi aprovada por 23 votos a 11 e 13 abstenções.

Tio Sam defende o direito de difamar religiões, em nome da liberdade de expressão. A abstenção brasileira, segundo um certo Kubiske (que assina o telegrama da embaixada), é explicada pelo fato de o Brasil não querer confrontar a OCI. A sua recomendação é fazer uma "abordagem de quatro braços, envolvendo aproximação com os altos escalões do Ministério de Relações Exteriores; uma visita a Brasília, para pesquisar meios de trabalhar com o governo do Brasil, nessa e noutras questões de direitos humanos; outros governos que possam conversar com o governo do Brasil; e uma campanha mais intensa pela mídia e mobilizando comunidades religiosas a favor de não se punir quem difame religiões."

E o tal Kubiske explica: "Grandes veículos de imprensa, como O Estado de S. Paulo e O Globo, além da revista Veja, podem dedicar-se a informar sobre os riscos que podem advir de punir-se quem difame religiões, sobretudo entre a elite do país. Essa embaixada tem obtido significativo sucesso em implantar entrevistas encomendadas a jornalistas, com altos funcionários do governo dos EUA e intelectuais respeitados. Visitas ao Brasil, de altos funcionários do governo dos EUA seriam excelente oportunidade para pautar a questão para a imprensa brasileira. Outra vez, especialistas e funcionários de outros governos e países que apoiem nossa posição a favor de não se punir quem difame religiões garantiriam importante ímpeto aos nossos esforços."

Não poderia estar mais claro. William é um offlce boy-nner da embaixada, e a Veja o seu porta-voz semanal impresso. Eis tudo.

Sensacionalismo
Voltando, agora, ao Realengo. O Wellington foi tratado pela mídia patronal como um caso isolado, atípico, um ato tresloucado de alguém que sofria de perturbações psíquicas, ou mesmo como ato terrorista islâmico. A presidente Dilma Rousseff ainda acrescentou a acusação de antipatriota, pois coisas assim não acontecem no Brasil. E a mídia ocultou a responsabilidade da própria mídia, que faz do sensacionalismo crescente um meio de aumentar a audiência e faturar mais pelos minutos do comercial. O jornalista Duarte Pereira faz uma excelente síntese do que foi a cobertura da tragédia:

"A mídia negligencia as informações de que Wellington passou por vexames e humilhações por causa de sua introversão e bizarrices, quando era aluno da escola. Não aborda a falta de acompanhamento e tratamento adequados de um paciente diagnosticado de esquizofrenia há muito tempo, o que agravou a evolução de sua enfermidade. Não trata das informações sobre atentados e manejo de armas que podem ser acessadas facilmente na internet. Não reavalia a divulgação maciça, cotidiana e acrítica dos mais variados atos e formas de violência praticados por grandes potências e contumazes delinquentes, reproduzidos em fllmes de sucesso e até mesmo em jogos eletrônicos. Não esclarece como Wellington conseguiu as armas e as munições, sem as quais não poderia ter feito seus disparos cruéis e desvairados. Não alerta para a atmosfera envenenada de individualismo e competição em que a infância e a juventude vêm sendo forjadas. (...) São poucos também os professores e mais reduzidas ainda as entidades do magistério que têm vindo a público para lembrar a violência que se tomou endêmica nas escolas, principalmente nas escolas públicas, rebatendo a ideia de que a tragédia do Realengo possa ser considerada um fato isolado e imprevisível. Surpreende também que os movimentos de saúde, sobretudo os de saúde mental, não se empenhem em repor a apreciação do trágico acontecimento num quadro mais objetivo e multilateral, que leve em conta a condição do autor dos disparos, a falta de acompanhamento e tratamento de seu padecimento mental e as circunstâncias finais de seu gesto de sofrida insanidade."

De todas as tragédias que se superpõem no Realengo, talvez a menor gravidade - ainda que mais visível e dolorosa – seja a do assassinato em si. Sua importância fica pálida em face do terror com que o Estado brasileiro trata a população pobre em geral, diante da total subserviência da mídia patronal às ordens do patrão em Washington, da impotência repetidamente demonstrada pelo povo brasileiro, toda vez que sua dignidade é atacada e seu imaginário manipulado.

Veremos o dia em que Homer Simpson dará uma lição nos office boy-nner da vida.

Matéria veiculada na Revista Caros Amigos, ano XV, nº 170, 2011
José Arbex Jr. é jornalista