Brazil em novo pódio
Sérgio Silva

No governo Fernando Henrique Cardoso, foi adotada uma lei sobre reparação aos atingidos pela perseguição política da ditadura militar. De acordo com esta lei, a reparação poderia atingir o limite de cem mil reais. Talvez este limite seja muito baixo tendo em vista o que foi feito contra várias pessoas: muitos, além de perderem seus trabalhos, foram presos, desapareceram, foram torturados e assassinados. Na verdade, esses danos são de valor inestimável. Não há dinheiro que pague estes danos. A reparação limitar-se-ia a reparar danos materiais diretos causados aos perseguidos e seus familiares.

O caráter parcial dessa reparação pode ser visto de duas formas, de certo modo, opostas. De um lado, em vários (talvez muitos) casos, o limite estabelecido pode ser muito menor do que o prejuízo material efetivamente sofrido (e possível de ser avaliado financeiramente). De outro lado, ele impede a concessão de reparações muito diferentes, resultado da avaliação do que pode ser avaliado. Um exemplo: a avaliação dos prejuízos materiais de um simples operário pode ser muitas e muitas vezes inferior à dos prejuízos de um empresário ou de um profissional liberal ou jornalista ou artista de sucesso.

Reparações diferentes podem ser justificadas pelas posições sociais distintas de presos políticos? As diferenças podem chegar a que ponto? Em razão de diferentes posições sociais, certas reparações podem ser dez ou cem vezes maiores ou menores do que outras? Pois é isso o que acontece no Brasil de hoje. Talvez aconteça ou já tenha acontecido em muitos outros países, mas é certo que acontece no Brasil de hoje. Talvez novas leis tenham permitido que isso aconteça. Talvez isso seja perfeitamente legal, mas perfeitamente indecente também; e tanto mais indecente quanto se destaca, na mídia, como propaganda do governo e dos poderosos em geral.

Os brasileiros não podem reclamar de seus governos. O Brasil é colocado entre os melhores do mundo nas mais importantes modalidades de terrorismo de Estado. Os exemplos são variados. Aquecimento global... Transgenia... Poluições diversas... A tortura e as execuções sumárias foram multiplicadas e generalizadas. Com essas reparações milionárias para os amigos que têm um bom lugar na mídia, o atual governo muito contribuirá para que esse país que se chama Brazil suba ao pódio mundial de um campeonato especial: o biatlo da repressão e da falta de vergonha.

Sérgio Siva é professor da Unicamp

 

Frei BettoViolências contra a mulher
Frei Betto

 O hediondo crime que envolve o goleiro Bruno – a mulher, após ser assassinada, teve o corpo destroçado e devorado por cães, segundo denúncia – é a ponta do iceberg de um problema recorrente: a agressão masculina à mulher. Entre 1997 e 2007, segundo o Mapa da Violência no Brasil/2010, 41.532 mulheres foram assassinadas no país. Um índice de 4,2 vítimas por cada grupo de 100 mil habitantes, bem acima da média internacional.

O Espírito Santo apresenta o quadro mais grave: 10,3 assassinatos de mulheres/100 mil. O Núcleo de Violência da Universidade de São Paulo identifica como assassinos maridos, ex-maridos e namorados inconformados com o fim da relação. Ao forte componente de misoginia (aversão à mulher), acresce-se a prepotência machista de quem se julga dono da parceira e, portanto, senhor absoluto sobre o destino dela.

A Central de Atendimento à Mulher (telefone 180) recebeu, nos primeiros cinco meses deste ano, 95% mais denúncias do que no mesmo período do ano passado. Mais de 50 mil mulheres denunciaram agressões verbais e físicas. A maioria é de mulheres negras, casadas, com idade entre 20 e 45 anos e nível médio de escolaridade. Os agressores são, em maioria, homens com idade entre 20 e 55 anos e nível médio de escolaridade. Acredita-se que o aumento de denúncias se deve à Lei Maria da Penha, sancionada em 2006 pelo presidente Lula, e que aumenta o rigor da punição aos agressores.

Apesar desse avanço, tudo indica que muitos lares brasileiros são verdadeiras casas dos horrores. A mulher é humilhada, destratada, surrada, por vezes vive em regime de encarceramento virtual e de semiescravidão no trabalho doméstico. Sem contar os casos de pedofilia e agressão sexual de crianças e adolescentes por parte do próprio pai. A violência contra a mulher decorre de vários fatores, a começar pela omissão das próprias vítimas que, dependentes emocional e financeiramente do agressor, ou em nome da preservação do núcleo familiar, ficam caladas ou dominadas pelo pavor frente aos efeitos de uma denúncia. Soma-se a isso a impunidade.

Eliza Zamudio, ex-namorada do goleiro Bruno, teria recorrido à Delegacia de Defesa da Mulher, sem que sua queixa tivesse sido levada a sério. Raramente o poder público assegura proteção à vítima e é ágil na punição ao agressor.

A violência contra a mulher não ocorre apenas nas relações interpessoais. Ela é generalizada pela cultura mercantilizada em que vivemos. Basta observar a multiplicidade de anúncios televisivos que fazem da mulher isca pornográfica de consumo. Pare diante de uma banca de revistas e confira a diversidade do “açougue” fotográfico! Preste atenção nos papéis femininos em programas humorísticos. Ora, se a mulher é reduzida às suas nádegas e atributos físicos, tratada como “gata” ou “avião”, exposta como mero objeto de uso masculino, como esperar que seja respeitada?

Nossas escolas, de uns anos para cá, introduziram no currículo aulas que abordam o tema da sexualidade. Em geral se restringem a noções de higiene corporal para se evitar doenças sexualmente transmissíveis. Não tratam do afeto, do amor, da alteridade entre parceiros, da família como projeto de vida, da irredutível dignidade do outro, incluídos os/as homossexuais.

Nas famílias, ainda há pais que conservam o tabu de não falar de sexo e afeto com os filhos ou julgam melhor o extremo oposto, o “liberou geral”, a total falta de limites, o que favorece a erotização precoce de crianças e a promiscuidade de adolescentes, agravada pelos casos de gravidez inesperada e indesejada.

Onde andam os movimentos de mulheres? Onde a indignação frente às várias formas de violência contra elas? Os clubes esportivos deveriam impor a seus atletas, como fazem empresas e denominações religiosas, um código de ética. Talvez assim a fama repentina e o dinheiro excessivo não virassem a cabeça de ídolos de pés de barro...

Frei Betto é escritor, autor de “Diário de Fernando – nos cárceres da ditadura militar brasileira” (Rocco), entre outros livros.
 www.freibetto.org – twitter:@freibetto




Há ainda o que se ver quando parece que tudo se deu a ver e pensar?
Maria Clara Fernandes

Menino-estátua
Tenho andado por demais sobreimplicada em arrumar algum emprego. Ponte para os meus objetivos de entregar currículo nos lugares, a rua apenas faz estrada larga para a minha pressa. Um aglomerado de pessoas bem no meu caminho me faz parar. Tinha a opção de desviar do “obstáculo” e seguir no embalo das cantilenas de auto-ajuda, no repertório dos vencedores em que ecoa apenas o “só depende de você para tornar isso real” e torná-los mais uma pedra que vou precisar ultrapassar na retilinearidade do meu percurso.

Mas, por mais que fosse “perder” meu tempo, aquela mistura de pessoas indignadas gritando, polícia e um menino todo pintado de cinza não me deixaram ir embora. Aos poucos fui me situando. Aquela cena, aparentemente, não traía aos cotidianos episódios de repressão que acontecem nas cidades contra aqueles que não têm o respaldo da lei. O menino negro-prateado, porque trabalha como estátua, fala para o policial que está apenas fazendo o seu trabalho, não está roubando ninguém.

O policial impassível com o cassetete na mão diz que ele não pode ficar ali pois está atravancando o caminho, as pessoas precisam passar por ali, estão com pressa para ir para seus respectivos trabalhos e o acumulado de gente que se formou para assisti-lo estava impedindo o fluxo. “Só estamos cumprindo ordens”. (de quem emana a ordem? Ordem sem nome, sem lugar, mas assentada em fazer circular a lógica de funcionamento do capital.)

Mesmo falando com o policial, o menino não deixa de ficar paralisado como estátua e o seu público não deixava de retribuir-lhe pelo espetáculo. Diante da imposição à circulação, ficar parado é uma resistência? Ao mesmo tempo, as pessoas se inconformavam com a situação, se perguntavam o que o menino fazia de errado, alegavam que a rua é pública, “é certo os policiais saírem matando por aí, mas o menino negro e pobre trabalhar é ilegal, né?!”

As vozes não se aquietavam e se misturavam às lágrimas do menino fazendo borrar sua maquiagem, mostrando sua pele negra e com ela as vísceras da história de seu país, de uma história em que miséria e dor têm cor. As marcas do passado de escravidão latejam nesse acontecimento e não só se referem ao sofrimento localizável do menino-estátua, mas atravessam nossos corpos mestiços, filhos da insegurança político-econômico-social, desfiliados, como diz Castel.

Os policiais são agora desafiados pelas armas-câmera da multidão que ameaçam tornar público (já não é público?) aquele acontecimento. Os policiais entram em contato com o que dizem ser seus superiores e avisam para a multidão que deixarão o menino-estátua permanecer ali. Uma salva de palmas preenche o ambiente, mas não são dirigidas à atitude dos policiais que ali representavam a figura da lei e sim para o acontecimento, para a traição ao destino prefigurado daquela cena, para a politização da arte “criadora de intensidades inesgotáveis de sentidos, diluindo compactas e irrefutáveis formas de eu e nós”. (Baptista, 2003, p.9)

Menina surfista
Há tanta vida lá fora. Aqui dentro. Sempre.

Água. “A extraordinária mobilidade dos fluidos é o que os associa à ideia de “leveza”. Há líquidos que, centímetro cúbico por centímetro cúbico, são mais pesados que muitos sólidos, mas ainda assim tendemos a vê-los como mais leves, menos pesados que qualquer sólido”. (Bauman, 2001, p.4) Dia de ressaca do mar na praia de Icaraí. Adoro ver o mar em toda sua potência, mais pesado do que uma rocha esculpindo novas formas nas pedras, na areia. Água mole em pedra dura, tanto bate até que fura. Insistência! Avistei uma menina que surfava no meio de um monte de garotos. Ela driblava com leveza as ondas que insistiam em engolfá-la. No momento em que ela sentou na areia com a sua mini-prancha ao lado, fui falar com ela. “Nossa, sou sua fã, enfrentar esse marzão e ainda com um monte de meninos ao lado”. A menina ressabiada me olhou de cima a baixo e respondeu com uma voz dura: “Eu enfrento coisa pior que isso”. “Ondas maiores que essas?” insisti. “É. Ondas de fúria, tristeza, dor...” “Oi, marrenta!” diz um colega surfista para a menina.

A menina surfista me conta que mora com os irmãos e a mãe num abrigo da prefeitura, mas não suporta estar lá. “É muito controle. Eles (o abrigo da prefeitura) acham que só porque dependemos deles, eles pode controlar cada passo nosso”. Fica na rua vendendo bala ou canetinhas e às vezes vai à praia para surfar. Os olhares de piedade e os discursos de proteção/controle não a acompanham quando está na praia surfando. Diz Deleuze (1992): “O homem da disciplina era um produtor descontínuo de energia, mas o homem do controle é antes ondulatório, funcionando em órbita, num feixe contínuo. Por toda parte o surf já substituiu os antigos esportes”.

Dialoga a menina: “Quem não sabe surfar nessa vida acaba se afogando”. “Eu tiro onda pra onda não me tirar, eu tiro onda pra onda não me afogar”. Compõe Jairzinho Oliveira (2006). A sua leveza pressuposta em gênero e idade chocam com a dureza de sua vida, com a força de sua palavras, com a destreza com que traça ondas de fuga, com a força do mar batendo em seu corpo, tornando-a potente.

O que estas histórias narradas de meninos e meninas que circulam nas ruas podem trazer para pensarmos o modo como temos guiado a vida?

Dia 10 de dezembro comemora-se os 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Para além das críticas ou exaltações que podemos fazer a ela, analisar seus avanços e retrocessos, a concepção de humano que está colocada em jogo, constitui-se em uma boa oportunidade de pensarmos o que temos feito de nós mesmos. Interrogação foucaultiana que se volta a uma crítica permanente de nosso ser histórico, ou seja, colocar sempre em análise os nossos modos de ser e estar nos verbos da vida (trabalhar, olhar, sentir, amar) e, assim, o nosso presente. Mas o que nos fala o nosso presente? Dentre muitos diagnósticos que podemos fazer desse nosso contemporâneo, iremos nos ater a excessiva produção de significado que não nos permite avistar outros sentidos, outros olhares que não os já dados. Há ainda o que se ver quando parece que tudo se deu a ver e pensar? Retorna a pergunta que dispara o texto.

As teorias interpretativas e explicativas do comportamento humano, a tecnologia oferecendo o acesso fácil e rápido a informações de toda diversidade, a enxurrada de informações, a imagem que mostra tudo, as edições tendenciosas dos meios de comunicação de massa têm gerado corpos cansados, acelerados, hiperativos, centrados em si e muitas vezes anestesiados, não encontrando porosidade para fraturar estes discursos, desatentos às estrondosas batalhas travadas cotidianamente, que abririam um espaço de transformação possível.

Em parceria às lutas macropolíticas, a batalha micropolítica é aqui convocada na direção de fomentar outros olhares, aguçar outros sentidos, para que possamos ir além das previsibilidades, das visibilidades já anunciadas e restituir a potência daquilo que pode um corpo.

Estes meninos e meninas que circulam nas ruas possuem suas existências já desenhadas, já acreditamos conhecer seu início, meio e fim, assim, ficamos ensurdecidos àquilo que elas podem trazer de interpelação ao nosso contemporâneo, àquilo que pode nos retirar de nossos confortáveis limites e certezas.

Maria Clara Fernandes é psicóloga pela Universidade Federal Fluminense
 e mestranda de "Estudos da Subjetividade"
do Departamento de Psicologia da UFF. 

 

Lógica Penal e Criminalização das vidas: Controle, Poder e Sujeição
Luiz Fuganti 

PARTE I

Tecerei algumas considerações acerca de uma tendência dominante em nossas sociedades, que condiciona as práticas contemporâneas de justiça e seus dispositivos de julgamento, controle e gestão sobre a vida, já manifesta e pressuposta em seus modos de desejos, pensamentos e crenças. E então procurarei desdobrar algo do que pode se processar em nós segundo a natureza e o investimento dessa tendência. Paralelamente tentarei extrair algumas virtualidades daquilo que em nós pode dar sustentabilidade a uma outra postura – com outros valores, outra maneira de desejar, de pensar, de sentir. 

Nas últimas décadas esteve e continua no ar e nos discursos da nossa época um desejo de mudança com o qual interrogamos o futuro sobre ‘o que fazer’ desde agora para construir uma vida diferente, mais livre e ativa, participativa, co-produtora e fruidora direta dos bens materiais e imateriais fabricados pelas sociedades contemporâneas, os quais em tese aumentariam sua autonomia, com mais direitos e menos violência – que enfim supere em qualidade aquela que se tem levado até agora. Mas quando se busca concretamente implementar, usufruir e partilhar esse diferencial, sequer conseguimos ensaiar uma ‘lição de casa’, um ‘o que fazer consigo mesmo’ e oferecer a nossa própria maneira de viver como realização desse desejo. Quero chamar a atenção para isso. Não para juntar-me ao coro dos que lamentam as impotências do homem. Mas para compreender como, ao mesmo tempo que buscamos nos superar, aderimos por dissociação de gosto a forças que rebaixam a vida humana; e, principalmente, para que nos concentremos naquilo que se faz, política e eticamente com o próprio desejo e suas modalidades, onde e como ele se divide e assim se aplica e as cumplicidades e comprometimentos que isso implica.

Ao pretendermos fazer de nós íntegros interventores e legítimos agentes cumpridores de qualquer função socialmente relevante – no caso em questão trata-se de uma função não apenas geral da psicologia mas especial da psicologia jurídica, e tão especial que precisaríamos nos perguntar se esta demanda jurídica não estaria justamente no coração da constituição mesma da psicologia moderna, ou seja, se não seria enquanto dispositivo necessário à instrução da prática da justiça que a psicologia moderna encontraria sua principal razão de ser – investindo-nos como funcionários autorizados e qualificados no desejo de atender demandas institucionais, através de poderes e saberes socialmente estabelecidos como instâncias normativas, reguladoras e guardiãs das legítimas relações sociais e das boas condutas de mentes e corpos, acreditamos talvez consciente ou inconscientemente, além de usufruir das vantagens que tal profissão possa trazer pessoalmente, fazê-la coincidir com um ideal superior de sociedade; integrar um esforço civilizatório e humanizante e nos posicionar 'naturalmente' contra a violência, o arbítrio, a usurpação de direitos, a opressão, os maus tratos com a vida, a perversão, a corrupção e degeneração moral; integrar um processo formador ou restaurador de uma moralidade e de uma racionalidade libertadoras do mal que poderia contaminar e desencaminhar a humanidade – atributos que serviriam de princípios para essa e outras funções, tantas vezes reconhecidos como baluartes da verdadeira evolução humana e louvados como promotores de elevado senso de responsabilidade, justiça, verdade, comungando enfim, ao menos em intenção, de um inquestionável sentido do bem. Entretanto, é preciso jamais esquecer de ao menos tentar esboçar e circunscrever o quadro no qual a vida, que 'escolhe' esse caminho do bem e se quer protagonista de tal função, se insere; compreender o campo de imanência desse desejo e encontrar a fonte motora de suas crenças, pensamentos e práticas – tarefa essa que pode já fazer com que ultrapassemos em muito sua 'boa consciência' e 'comportamento irretocável' e vejamos o que pode estar por trás de seu protocolo de declaração de intenções, e que faria do mesmo mero álibe e meio para realização de desejos mais encobertos. A partir de então, destacar desse campo seus contrastes, seus claros e escuros, seus limites e necessidades, tolerâncias e escusas, obstruções e ideais, enfim seus pressupostos que condicionam o acoplamento de tal desejo; fazer saltar os pressupostos que também tornam superficial e sintomático todo seu ideário, cuja lógica segregatória está baseada na crença na oposição extrema de valores que se excluem. É, portanto, preciso tentar seguir algumas tendências que não atravessam e dominam o corpo social sem serem transportadas e corroboradas pelos nossos modos afetivos, e ao percorrê-lo, nos colocam questões e interrogam as cumplicidades que mantemos imperceptivelmente com aquilo que supostamente combatemos. Nesse acoplamento, no vínculo imanente do nosso desejo ao campo social uma escuta singular de nós mesmos se faz cada vez mais urgente. Tanto mais quanto uma espécie de surdez atinge profundamente os homens do nosso tempo. Esta se trai e se deixa diagnosticar pelo próprio aumento da desatenção tornado não somente institucional, mas também cultural, como um buraco que não pára de crescer no seio da nossa cultura. Tal surdez, deficit ou degenerescência se manifesta, por um lado, no desinvestimento regulado de um tipo de percepção ou conhecimento de si ao qual sempre temos dado às costas – e que é por nós no presente sistematicamente negligenciado; e, por outro, no desinvestimento do conhecimento de algo que não cessamos de subtrair ao presente e que por isso nos faz perdê-lo a cada vez que nos ausentamos, nos perdemos ou fugimos de nós mesmos. Talvez essa dupla negação (ou desconhecimento), implícita em nossos comportamentos e discursos seja um dia lembrada como a fonte maior da violência e demais males supérfluos, a omissão maior, a pobreza maior, o deserto próprio à nossa época. Aqueles mais vigilantes que herdarão o legado desse tempo poderão descobrir, num futuro próximo, o quanto nossos contemporâneos, enquanto depositários das condições de um direito ao futuro de seus filhos foram cúmplices e reprodutores de uma terrível inversão, uma irresponsabilidade – uma velada covardia, posta a serviço dos desejos mais vis – ao investirem na fabricação, proliferação e aplicação do que denominam medidas cautelares de vigilância e prevenção em nome do insuspeito ideal de 'segurança' e de 'preservação da vida'. Como, em suas respostas à impotência criativa e falta de autonomia que acomete as vidas tornadas dependentes de tutela institucional, acabaram por consolidar a dominação dos pontos de vista mais baixos que nivelam os homens pelo que eles não podem, e isso, claro, feito aparentemente em atenção àqueles para os quais são implementadas e executadas tais medidas – os homens de bem. Em nome da defesa da sociedade e seu bem comum têm-se promovido valores de compaixão que, ao invés de torná-la vigilante, forte e liberta do mal de alguns, anestesiam-na, fragilizam-na e a entregam ainda mais indefesa a uma indolência generalizada dos muitos demais. Pois ao fazer um uso imaginário e distorcido do sofrimento e da miséria, seja na projeção ou introjeção de suas 'causas' – quando deliram ao apontar como causa responsável pelos males que rebaixam o homem as zonas intensivas da vida -, não poupam seus bálsamos e prodigalizam seu piedoso e consolador 'amor' perante o clamor por poupar da crueldade 'desumana' vidas insípidas. Omissões que, além de desperdiçar e deformar o essencial do presente como tempo aberto e fonte imediata de uma liberdade criadora de si, acabaram por comprometer e sacrificar, num parasitismo contagioso, o sangue de vidas por vir, abortando um futuro próximo e perdendo um mais distante, fraudando o presente e encerrando o passado em dívidas cuja única possibilidade de redenção seria a de uma queda vertiginosa em um remordimento da consciência auto-punitiva – penalidade que, entre outros efeitos, pode contribuir para converter os que dela padecem a arautos de um ideal de justiça e para torná-los diligentes soldados do espírito de vingança contra tudo que é altivo e alegre. E isso em nome de sua pobre representação, a um só tempo paranóica e passional; da demanda por reparação de atos interpretados como ofensivos à suas vidas debilitadas; e do medo disseminado por estas vidas tornadas fracas e estagnadas nesse mesmo presente esterilizado, desvitalizado pela representação moral do mundo. 

Qual poderia ser o diagnóstico para um processo tão corrosivo que se apossou da humanidade sem dar trégua nem sinal de abandoná-la tão já? Como emergiu essa idiossincrasia de gosto que nos levou a cultuar cada vez mais uma via de afastamento, de separação e a manifestar uma recorrente desconfiança com relação à natureza, com sua (in)conseqüente desintensificação? Do que pode se alimentar o temor ou pânico que nos assombra com a suposição construída de uma iminente invasão de forças vindas tanto de fora quanto do inconsciente selvagem, animal interior da humanidade, estranhas e sem controle? Do que também então poderia se alimentar a falácia de atribuir a essas forças um poder maligno e caótico de produzir catástrofes, cuja suposta existência nos leva a desejar uma ordem simbólica que esquematiza em vez de singularizar, que em grosseira abreviação tudo nivela, buscando regular e governar corpos, afetos e mentes assim simplificados e mutilados? Qual vontade em nós adota uma forma discursiva preferencialmente racional quando realiza os fins da moral vigente que enquadra, abstrai e controla, organizando e assegurando assim as condições de existência da vida cada vez mais coagida e depreciada? E por essa 'garantia' tal forma discursiva é elevada sem qualquer crítica, promovida ao status de dircurso científico e verdadeiro? Mas nós perguntamos: a quem interessa tal garantia que acolhe e sustenta a vida em estado desintensificado? Não haveria aí uma motivação menos nobre, mais inconfessável?

Seduzimos e embalamos a razão essencial e extraordinária da vida para embarcá-la no sono profundo das práticas ordinárias e curvá-la às ordenações aparentes; somos treinados em atraí-la para traduzi-la e substituí-la, representá-la e negociá-la no mercado das trocas simbólicas onde é etiquetada, cifrada – para finalmente tornar-se uma mera confirmação numérica de um equivalente moral ao qual corresponde um inominável prazer de rebaixar. Vontade de conservação, de fazer retornar o que garante a medida gregária, tudo equiparando à justiça do tipo médio de homem. Fomos invadidos pelo mau gosto estéril de enquadrar e encurralar os afetos sob 'universais' cujo valor normativo coincide com o da manutenção da redundância estatística de uma maioria malograda – separada das fontes criativas da existência. Assim se busca eliminar a qualquer custo supostas ‘anomalias’ e ‘ameaças’ da vida humana. Desde então tornam-se as autênticas singularidades suscetíveis de serem deformadas pela fantasmagorização e aprisionamento em labirintos da falta de uma consciência esburacada; neutralizadas no círculo vicioso da repetição do Mesmo, o retorno indefinido de uma mesma fixação, corte ou trauma; dissociadas da auto-produção de valor em seus surpreendentes processos de variações diferenciais e do sentido alimentar do imprevisível; depreciadas pelo consenso das opiniões dominantes e sua normatização gregária, enfim, entorpecida, esgotada por sentimentos compassivos e complacentes.

Na impotência de criar e no correspondente esforço dos modos de desejo desligados das fontes do devir, encontramos não só uma vida tornada cativa, como obsecada por se conservar a qualquer custo, maníaca por segurança. Vemo-la ocupada em construir redomas subjetivas, gaiolas espirituais, prisões interiores fabricadas com signos da mesma linguagem que nos inclui na vida em sociedade. Adotamos e investimos, ao praticar essa linguagem, uma ordem de discurso que transmite de modo implícito e mudo sentenças, sutis ‘sins’ e ‘nãos’, pequenas e silenciosas sentenças de morte que quebram e curvam paulatinamente o desejo, travestidas de eficiência vital e liberdade responsável – observe-se as tonalidades acinzentadas e ritmo fúnebre dos discursos ‘competentes’ e ‘verdadeiros’ cuja ordem protegeria do mal e do caos e conquistaria garantias de um futuro indolor. Quanto mais a vida se debilita, mais torna-se suscetível de se ressentir e padecer da abertura e franqueza próprias dos jogos do existir; e então pode ocorrer também de imaginar reagir a eles, proteger-se deles agarrando-se a um 'desejo de segurança', refugiando-se e aquartelando-se em um poder de julgar. A gente acabou por contrair o hábito de ver e ouvir feito um pedinte mendigando atenção, que estende as mãos e espera em vão a provisão, e assim decepcionado, rejeitado e mais ressentido as recolhe vazias. Desde então acha-se natural acusar ao falar e exigir reparação. A gente deseja desde então apontar e denunciar o verdadeiro sentido por trás das ações, a boa ou má intenção latente do querer sob os atos e pensamentos manifestos: assim se lê escavando a procura de valores mais 'elevados' por trás das palavras, idéias e crenças expressas nos discursos; assim também se escreve feito um sisudo conselheiro, como quem prescreve advertidos deveres à vida para salvá-la, resgatá-la ao retomá-los, elegendo e restaurando a partir deles o bom fim.

Talvez chegue-se destarte a dissimular melhor o começo baixo e passional da melhor das intenções. Despista-se a insuspeitável torpeza que a movia desde o princípio e coloca-se em seu lugar, como centro da cena principal, o elevado propósito de sua transcendência aos interesses passionais. Assim também pode-se melhor desresponsabilizar e desculpar as forças do ressentimento. Cínica e languidamente subtrai-se à tarefa de adestrá-las. Acalenta-se a impotência sob o álibe de uma missão superior na existência: dobrar as forças do mal, encontrar a felicidade na terra e ao fim, depois desta vida quem sabe, o paraíso. A gente deseja e espera eleger o lado bom do mundo, para dele poder tirar vantagem no que imagina ser conforme a si própria; a gente também procura desse modo um amor, eleger um outro capturável, passível de ser amado desde que preencha a condição de servi-la; espera fazer deles – do mundo e do outro – seus funcionários, torná-los melhor, mais bem intencionados para que melhor possam merecê-la, amá-la e servi-la; ou enfim, o que dá no mesmo, para que melhor possa deles se servir e, claro, pouco tenha que dar-lhes; chupar-lhes o sumo e atirar-lhes o bagaço.

E para isso, tagarela-se, põe-se a linguagem que abrevia e generaliza no lugar da expressão viva e direta que singulariza e difere, para controlá-la, vigiá-la, preparar-lhe arapucas, julgá-la e finalmente puni-la! Senão, como seria possível o direito ao lucro e a reparação? Direito ao crédito, à vantagem, sempre em nome da 'vida', do 'cuidado', da 'proteção'; vontade justiceira que se credita o direito sobre tudo aquilo que se desvia do ideal de sua conservação e prosperidade. Mas raramente a gente faz algo de não passivo, de não supérfluo, algo do diferencial ou visceral da vida passar em nossas falas e escutas, interpretações e avaliações, registros e memórias; este algo irredutível de todo o vivente que faria dele não um poço de mágoas, de ressentimento e reivindicação passional, mas uma potência imanente e generosa de criação de maneiras de existir. Raramente tem-se a honestidade de exprimir, sem covardias e trapaças, outros usos, outras práticas que fazem da fala e da escuta, da escrita e da leitura, dos registros e das memórias, das interpretações e das avaliações operadores diferenciais e fontes vivas de nossas virtualidades criadoras.

Despistamos, desprezamos e emudecemos de modo regular, institucional e sistemático as vozes que denunciam em primeira mão aquilo que acontece diretamente com nossas capacidades de existir segundo os modos de vida que levamos. Na vida se fala e se escuta, se lê e se escreve, se investe desejos e se pratica usos; mas em cada uma dessas operações impõe-se um passivo esquecimento, um desprezo mendaz e um grosseiro silêncio àquilo que nos faz escutar e falar, ler e escrever, interpretar e avaliar, praticar e investir. Vivemos numa civilização que tem como primeira instituição a inflação do medo e sua inconseqüente demanda por homogeneização dos tipos e dos devires ativos das forças do homem em nome da segurança – os quais ao preencherem e modificarem nossos desejos fazem necessariamente variar os humores, efetuando e continuando o curso intensivo e virtual da própria existência -, mas não sem roubar-lhe ou abreviar-lhe o futuro.

E no entanto, aquilo que constitui e move a nossa existência é também o que simultaneamente constitui e preenche nossa essência, alimenta ou envenena nosso desejo, aumenta ou diminui a nossa potência ou capacidade de existir. Esquece-se dessa modificação essencial que se passa conosco a cada relação que estabelecemos, segundo a maneira como nos relacionamos, e que mostraria o que fazemos aqui e agora da própria vida, esquece-se dessa responsabilidade bem mais profunda com a vida e que deveria ser promovida como a mais importante e essencial para o desejo ativo, uma vez que deste modo o destino estaria inteiramente em nossas mãos. Mas pasmem! Em vez da promoção dessa nova responsabilidade, simplesmente destituímos esse plano, essa fronteira existencial das relações como mera zona aparente, palco dos acidentes irrelevantes. Delegamos o controle da mesma e encarregamos embusteiramente alguma Providência exterior que venha de cima para redimir-nos e desincumbir-nos ao mesmo tempo que neutralizar essa fronteira. Mas na verdade não existe outra zona de liberdade e nem outra zona de escravidão. Porque então delegamos a Outrem esta tarefa? A zona de liberdade e de escravidão é a mesma: é sempre e simultaneamente adjacente e tangente ao modo de vida que investimos e cultivamos.

Seria preciso então deixar de acreditar, ou melhor, chegar a conceber como ficção um plano onde se quer opor os valores que orientam o homem: não passamos de crentes (num plano superior à vida) quando opomos bem e mal, verdade e mentira, realidade ideal e realidade aparente, etc e pretendemos assim jogar a própria vida contra outra vida – É mesmo desde já imprescindível distinguir o ato de pensar do de crer. E, diante de um pensar sem tutelas, é inelutável uma conseqüente destituição da crença na 'necessidade a priori' de um plano superior. Uma vez que a fé na transcendência pressupõe uma crença mais subterrânea na existência decaída, o sentido expresso nessa imaginação é necessariamente efeito de um modo coagido e servil de viver que delira sob a sombra da falta; assim também o valor desse sentido deixa entrever sua baixa origem quando a vida impotente procura atribuir legitimidade a sua resposta desesperada; quando a impotência não pode mais avaliar sem deformar o outro e tentar adaptar o mundo a si; exprime, portanto, os motivos rasteiros de quem precisa vergar todo o vivo sob as depreciações do juízo desvitalizado – Seria portanto preciso não apenas deixar de pensar e investir contra o mal, mas sobretudo deixar de pensar e investir a favor do bem. e o mal é uma ficção, não o é como crêem as belas almas por ser mera ausência do bem! Antes o contrário, é por ele ser a sombra de uma ficção ainda mais enganadora – a existência do bem como excrescência, ilusão projetada pelas vidas malogradas para além da miséria que as envolve como condição de um resgate. Como? Sua existência não passaria de uma invenção necessária para manejar vidas decaídas? E o clamor pelo bem não seria mais que uma confissão de impotência, um sintoma testemunho de renúncia e desistência, um ficar de mal com a vida pelo mau jeito junto ao jogo da vida?

Nós humanos, esposamos um círculo vicioso. Ciclo ilusionista da intencionalidade do devir. Quanto mais nos encontramos no buraco, atolados na impotência de retomar um devir que não carece de alvo exterior a si mesmo, mais investimos a ilusão de uma finalidade redentora pretendendo sustentá-la no horizonte do futuro, como suposto termo compensatório de seu curso injusto. Só conseguimos assimilar o sentido, a significação da existência atribuindo uma direção prévia a seus movimentos, cujo valor de origem e de chegada se exprimiria no poder de encaminhar ou desencaminhar, de adiantar ou de retardar, de recompensar ou de punir nossas vidas. Toda ação, toda idéia, todo afeto que carece de intenção e de um objetivo teleológico é lançado no limbo do não-senso. Fora do objetivo que move o espírito para fora da vida, liberta e purifica o desejo das paixões e converte o pensamento para o ideal não conseguimos apreender qualquer sentido legítimo. Eis a fonte de todo cansaço! Então esgotados desistimos de reencontrar as fontes imediatas que fazem de todo o vivo um criador de si e acabamos por nos render a essa maneira pesada e míope de caminhar e de enxergar. Um começo demasiado baixo para um ideal pretensamente tão elevado de pular fora, de transcender os tormentos do devir; uma indisposição malquerente para encurralar o devir, mal disfarçando a arrogância, o ódio, a mentira e a trapaça que se insinuam sob as posturas humildes, os gestos amáveis e os discursos verazes que as consciências morais se atribuem ao se auto-proclamarem sérias, responsáveis e exemplares. 

Mas quando se constata que tanto o mal quanto o bem não têm qualquer estatuto de transcendência como suposto princípio ou entidade substantiva primeira, uma tempestade pode varrer a mente dos mais castos e fazer desabar os que assim se elevaram com pernas tão artificiosas. Não há dúvida, sofrerão vertigem com a altitude à qual conduz semelhante acontecimento; pode mesmo assustar e afugentar quem mal se aproxima ou hesita em afirmar o elemento inédito e necessário de cada encontro casual sem projetar nele propósito ou sinal de cumprimento de um oculto plano divino. A apreensão de que o bem se mostra finalmente como uma ficção constitui-se em um acontecimento capital, da espécie daqueles que exige de nós uma rara elevação, um distanciamento a partir do qual se dispensa qualquer instância tutelar ou mediação diante dos desafios do que está por vir. Uma nova inocência pode então se pôr em curso e reconduzir-nos às vias de uma sutil e rara lucidez. Sim, nem mesmo o bem! Ele mesmo, a mais acalentada e enganadora das ficções que o homem já criou para distrair e fugir de suas responsabilidades mais sérias! Bem e mal não como causas de perdição ou salvação, de liberdade ou escravidão, de verdade ou de engano, de prêmio ou castigo, mas sintomas de uma humanidade infantil e ainda muito descuidada de si. Efeitos óticos de superfície, não causas de origem profunda! Fábula gestada na falsa profundidade dos porões escuros do homem amedrontado! Mentiras necessárias a uma tipologia de vida que não sabe viver sem depreciar a priori um outro diferente tomado como oposto; que não pode subsistir sem lançar mão de sistemas que criminalizam as virtualidades, destituem as intensidades, encurralam as diferenciações não controláveis e julgam o vivo, o vital da vida de fora, como se sobre ela estivessem, investidos das prerrogativas do lugar do anjo.

Funções para um tipo de vida que, por não poder criar as próprias condições do existir, também não suporta o mundo e as multidões que o povoam sem deformá-los, rebaixá-los, para adaptá-los a si, para obrigá-los a servi-la sob a promessa de recompensa pelo prática do bem e dissuadi-los sob ameaça de punição pela prática do mal. Mas já lá não se vão quase quatro séculos desde Spinoza, e um século e meio desde Nietzsche, para lembrar apenas dois dos maiores imoralistas que a humanidade já teve e que combateram sem tréguas essas ilusões e capturas do homem? Estamos surpresos com a antiguidade de tal crítica? Terá perdido a atualidade, o frescor e o viço de sua novidade? Ou faria sentido apenas para mentes extracelestes? Porque afinal o curso da humanidade segue incólume, insensível e surdo a ela em seu destino rumo ao nada, isto é, à desintensificação da existência?

E se houvessem com efeito, senão entidades ou seres substantivas doravante destituídos como quimeras, maneiras de relação que qualificariam tanto atos quanto modos de viver? Maneiras de qualificar não os seres, mas modalidades de devires – bons se ativos, maus se reativos –, servindo esses adjetivos tanto para selecionar modalidades de ações quanto para diferenciar modos de viver e de se relacionar em sociedade?

Mas a quê exatamente se atribuiria tal adjetivação? Parece então que não poderia mais incidir sobre o ser dos objetos e dos sujeitos, mas às maneiras de acontecer e modos de desejar no devir. Como poderiam ainda haver objetos e sujeitos bons, objetos e sujeitos maus? Ou, então, bom e mau emergiriam apenas no fim, como efeitos terminais e superfíciais de relações de composição ou decomposição de durações em profundidade? Não diriam apenas respeito aos efeitos a posteriori de modos mais profundos de composição e decomposição de tempos, movimentos, devires vitais com seus cortes e suas continuações? Não seriam tanto as maneiras boas quanto as más, labirintos, passagens diretas ou indiretas para intensificar os devires do vivo? E ainda mais: haveria uma atribuição mais sutil em relação aos próprios modos de assimilar, digerir e transmutar o que é investido como bom ou repudiado como ruim? E se práticas de maldade alegre fossem meios mais refinados de evolução, transmutando maneiras frouxas de viver, gerando distâncias e tensionando relações flácidas antes que a vida entrasse em franca decadência?

O que então em nós de alguma maneira pode ser dito bom ou ruim? Haveria realmente em nós algo de bom que nos dignifica ou algo de ruim que nos torna indignos? Se sim, qual seria o estatuto ou ser desse bom ou desse ruim? Seria esse algo em nós constituinte de nossa alma, de nosso espírito, de nossa essência? Haveria potência boa ou má na essência? ou seja, constituída por um ser do mal ou um ser do bem? Toda lógica punitiva que promove a criminalização da vida pressupõe essa crença. Pressupõe tanto a atribuição de uma zona demoníaca à existência quanto um plano teleológico de resgate que a transcende. Assim, torna-se natural pressupor a identificação do intensivo com o demoníaco. A natureza desnaturada, decaída, tomada como essencialmente carente de uma dimensão plena ou suficiente de realidade. Pior, a natureza degenerada empenhada em enganar e perverter! A natureza não se basta, não bastaria! E como se não bastasse, ainda poria tudo a perder! Mas perguntamos: para quem a existência careceria de perfeição, de realidade plena e idealmente acabada? E se afinal essa lógica punitiva e sua política de criminalização da vida se revelasse na verdade um grande negócio, um empreendimento próspero e lucrativo, cuja matéria prima fosse a reprodução e proliferação das paixões tristes?

Essa visão depreciativa que introjeta o mal na essência do vivo e que atribui à existência uma imperfeição, uma insuficiência de ser continua atravessando e condicionando nossas sociedades: ela é na verdade o sustentáculo de todas as nossas políticas de ódio; ódios praticados em nome de povos, raças, nações ou pátrias; grupos, minorias, maiorias, classes ou castas; gêneros, propriedades, familias, valores ou de deus, do bem; portanto é também o sustentáculo de todas as práticas de compaixão que não só não se opõem ao ódio e à inveja lançados contra os tipos bem logrados, alegres, potentes e livres, como completam, não sem mascará-la, uma empresa de vingança inconfessável e institucionalizada sobre a fruição criativa dos afetos.

Mas entendamo-nos sobre este ponto. Como explicar essa tendência e a insistência de indivíduos, grupos e sociedades inteiras em cultivar o que apequena a vida no homem como meio de sobrevida? Qual sentido haveria em introjetar a contradição no seio do vivo, em pôr a vida triste enfraquecida contra a vida alegre e potencializada? Se não suportamos as forças da alegria que nos ofendem com seus excedentes, é preciso contê-las e se possível detê-las, aprisioná-las! Há sempre um modo de extrair prazer e gozo quando se está afundado e se 'vive' na impotência: é aderir aos modos de viver da impotência! Como goza e é recompensado um aguilhoado? Repassando o aguilhão! Tornando o outro um seu igual. Senão como suportaria ele uma infelicidade só sua, não compartilhada, não distribuída, não proliferada, sem que fizesse explodir e explodir-se com o sistema? Quem é suficientemente elevado para não sentir inveja e não querer diminuir tudo aquilo que o excede em generosidade e exuberância criativa? É preciso tratar toda essa tendência, todo o conjunto de seus mecanismos, aparelhos e dispositivos como disparadores que fazem a vida humilhada conquistar poder, extrair prazer, lucrar intimamente, conquistar reconhecimento, vantagem afetiva e reproduzir seu poder ao tomar parte de um poder de excluir, que não só pode como geralmente coincide intrinsecamente com o crescimento do poder do capital.

Toda a nossa vontade de negar ou pôr sob sursis a dimensão necessária da existência intensiva, todo esse desejo decadente de enquadrar, de reconhecer, de identificar – senão de cultivar – um 'outro' sem intencionalidade como 'causa intencional' do mal que o acomete, de fazer existir uma suposta fonte responsável por tal mal, para só depois poder dizer e ver a si como um dos bons e que se quer 'oposto' a esse outro maligno encontra aí, nesse gozo possível, nessa alegria triste de miseráveis, seu sentido. A eleição de algo que seria em nós então apreendido como oposto a esse mal, e por isso mesmo nos habilitaria como legítimos participantes do bem e autorizados delatores desse mesmo mal – nós como bons, como homens de bem: como isso seria possível sem que antes pudéssemos apontar para um outro e denunciar toda a crueldade de um desvio inconseqüente, sem tornar a diferença intensiva, desprovida de boa intenção, causa do mau que nos renega e nos nega provisão, mas sobretudo sem extrair um lucro inconfessável de todo esse processo de rebaixamento que, ao mesmo tempo que nos empodera, retro-alimenta todo o sistema? Por qual razão, como nota Nietzsche, na Genealogia da Moral, no caso do que ele denomina moral dos nobres, ao invés do homem começar por afirmar as maneiras de existir que o torna uma potência criadora e livre, cultivar modos próprios de crescimento e fortalecimento, pô-los em relevo, isto é, começar por afirmar o que há de bom partindo de si, e nesse sentido ativar as mais interessantes forças de composição, fruir os resultados do devir, gozar o aumento da potência de existir, se alegrar com a invenção de variações expressivas das forças de criação que nele fervilham –, por qual razão ele prefere ou é levado a tomar o caminho contrário e começar por desqualificar um outro, fazer de um outro a causa dos seus males, sofrimentos e misérias? O quê nele, qual zona cega, qual fixação, qual covardia o faz começar por ver em tudo o que ele não é, isto é, em toda a diferença que dele difere, um não-eu, uma oposição que poderia contradizer sua vida, e por meio dessa interpretação projetada nela denunciá-la como virtualmente má até que ela prove o contrário e se torne conciliadora? Por meio desta negação a priori, ele se arvora o direito de emitir vereditos, pretende-se autorizado a juiz e legítimo intérprete da verdade, serve ao mesmo tempo de sentinela, abrigo e tutor dos malogrados, entupidos de paixões tristes. Por quê, por qual razão não se problematiza antes as maneiras de viver que nos fazem cúmplices do enfraquecimento e rebaixamento da vida em vez de logo se apressar, se precipitar em buscar responsáveis pelo malogro dos infelizes? É preciso desconfiar dessas escapadas, desses que se desviam de si, de suas responsabilidades com o que há de ativo e criativo na vida, e se refugiam, se vitimizam, se entregam na empreita de erigir um outro como a fonte do mal.

Precisaríamos sim, e com a urgência dos que não deixam para depois, problematizar as saídas e escapadas inventadas por esse tipo de existência. Que exemplo de ser poderia ser extraído de um comportamento cujos pensamentos e sentimentos, na presença de certas dificuldades ou impossibilidades, se apressasse em representar e fazer do mundo ou do outro aquilo que o nega ou a ele se opõe? Que faria de um outro fonte de misérias, infortúnios e sofrimentos que não pode transpor, para só então, por uma terrível e malévola inversão, converter-se em um bom, justo, útil, veraz? Que sonho ou utopia se projetou assim tão longe desse comportamento infeliz do homem, para isolá-lo e encerrá-lo no cultivo de seu posto de juiz inquestionável, ocupado em lustrar e adornar sua redoma protetora, enterrada já tão funda que nem se pode sequer suspeitar ser fruto nascido da árvore da impotência, uma planta quimérica plantada sobre o 'nada' para vencer este outro nada que se tornou sua vida? Sequer se imagina, em sonho ou pesadelo, que de alguma maneira essa insuficiência de ser não é natural e também não simplesmente emergiu originalmente em algum ponto da história, mas é uma falta criada e recriada a cada momento, que não pára de se insinuar no querer, inocular-se na consciência e ressurgir a cada momento em que se reproduz a dependência no horizonte de nossas vidas em cada relação que se estabelece pelo fato de se estar vivo: nos pequenos gestos, nos regimes corporais, sexuais, alimentares, de higiene, nos modos de mover e usar a sensibilidade, nos modos de usar a linguagem, nos modos de investir ou abandonar, de projetar ou introjetar os afetos e tudo o que nos acontece nas relações que estabelecemos com o mundo e os outros, nas práticas de registro e pensamento, o tempo todo, a cada momento de nossa vida presente, essas zonas de desqualificação da vida não param de emergir e solicitar nossa cumplicidade.

Zonas de desqualificação da vida que se confundem em nós com as zonas de vitimização. De alguma maneira, sempre que a nossa vida está, por algum mau encontro, sendo separada do que pode não consegue jamais, enquanto assim permanecer e usar mal o que de mau acomete, vislumbrar na matéria do que acontece um combustível de criação que transmute toda coação em força aliada na produção de uma nova maneira de viver. Ao contrário, esse tipo de vida toma aquilo que lhe acontece como algo de imerecido ou merecido, conseqüência de uma falta ou de um mérito, seja de si ou de um outro.

Joe Busquet, interrogando a fatalidade de seu destino supostamente desgraçado, em vez de acusar, envenenar, lamentar-se ou simplesmente se conformar dizia: os acontecimentos de minha vida estavam ali antes de mim, à minha espera, me fazendo sinal – nasci para encarná-los! À espera do melhor de mim...não evidentemente a espera apenas de um melhor de mim já dado, mas da emergência de algo em mim ainda por vir, que cada vez mais se põe à espreita ativa e toma parte do e no fazer algo daquilo que é fatal em nós, algo de nós que está por nascer, por vir, como um tornar-se filho de nós mesmos através do acontecimento que nos faz violência. Dispor-se, simultaneamente pôr e extrair algo de nós, uma duração outra da espera que espreita no tempo e escava o presente eterno. Espreita sem esperança. Erigir o ponto de vista necessário que dignifica através de nós todo acontecimento, ao invés de acusá-lo como imerecido, ou até louvá-lo como um merecimento compensatório. De pouco serviria tomar o acontecimento como recompensa em vez de castigo: exprime apenas a outra face da moeda, o mau jogador que se embrenha na aposta, a péssima maneira de usufruir dos favores do acaso; pior talvez do que aquela que acusa. Como diz Nietzsche em seu Zaratustra: "amo aquele que se envergonha quando o dado cai a seu favor e se pergunta: não serei acaso um trapaceiro?" Porque na acusação ainda podemos ver claramente o ódio manifesto, enquanto que na atitude que exprime um amor a ele, enquanto lhe é favorável, apenas adia esse ódio que certamente, cedo ou tarde, aparecerá com o advento das situações desfavoráveis. O que significa dizer: estamos com sorte ou azar? Somos vitoriosos ou fracassados? E a quê ou a quem se ama ou se repele exatamente? E por 'quem' esse algo outro é 'amado' ou 'repelido'?

Então existe em nós uma postura – ou antes uma impostura -, promovida como normal: é aquela que faz do acontecimento uma chaga. São nossas chagas que tornam a vida repugnante, diz Deleuze, é quando assim ressentidas, as utilizamos para envergonhar o homem. Então sentimos vergonha de ser homem. E elas proliferam a cada vez que colocamos o dedo na ferida, ou quando um homem interpreta o que lhe acontece como imerecido, quando não consegue processar, digerir o que lhe acomete, nem se subtrair ao indigerível, marca ou tirania de um estado afetivo do desejo que o capturou na insuportabilidade de um sentimento que se apoderou dele seja pela tomada primeira da mente, seja pela tomada primeira do corpo, mas sempre e simultaneamente tornando cativo o elemento primeiro de seu querer.

Quando fugimos ou nos ausentamos de nós mesmos, e abandonamos nossa potência de fazer a diferença entregando-a a sorte de um tutor ou, o que é o mesmo, não tomamos conta da parte que nos cabe, quando nos ocupamos em buscar culpados, desperdiçamos o melhor do que nos acontece, trabalhamos contra nós mesmos. O que é fazer a sua parte?

Não existe vida na natureza, em qualquer recanto desse universo ou seria impossível nele existir um tipo de vida que não tivesse uma potência imanente a sua própria. A potência é imanente e está necessariamente dada. Não há qualquer falta na vida! Mas como então a falta se estabelece? De que é feita essa falta que se torna dominante no horizonte da humanidade? Quando acreditamos que de alguma maneira é preciso melhorar a existência, reformar a existência, adaptar o mundo à nossa vontade, podemos encontrar ao menos uma pista do que exatamente se passa, uma vez que essa investigação não caberia nesse artigo.

Luiz Fuganti é filósofo, arquiteto, professor, escritor. Ministra cursos,
palestras e seminários acerca de um tipo de pensamento sem referências,
imanente à própria natureza. Aulas e palestras transcritas, textos, entrevistas e
 vídeos com conceito de filosofia, entre outros conteúdos,
no portal escolanomade.org.

(Conferência no Congresso de Psicologia Jurídica
Belo Horizonte – MG, outubro de 2009 – CRPs do RJ, MG e ES)

 

Um pouco sobre a ESCOLA NÔMADE DE FILOSOFIA

Em suas práticas, a escola produz movimentos e eventos que catalisam, dinamizam, aceleram, promovem e provocam um modo de viver e de pensar nômade, autônomo, ligado unicamente às potências imanentes à própria natureza que tudo sustenta e constitui. Por isso também, em seus movimentos e eventos, promove práticas de pensamento que não demandem nenhum referencial formal a priori, seja o de um ideal transcendente à natureza ou o de uma consciência transcendental.
O diferencial de suas atividades e de sua prática constitutiva de rede é propiciar e construir uma atmosfera de pesquisa e experimentação não encontrada nos outros meios institucionais de pesquisa. Nossos pressupostos e condições de participação não partem de limites de formação ou instrução, nem de investimento em especialização, mas do mais íntimo desejo em transmutar os modos de viver do homem, liberando e elevando ao máximo as potências de diferenciar e criar realidades latentes nas forças constitutivas do homem.

Imanente à natureza, o ato de pensar nômade é inseparável de uma ética afirmativa da diferença enquanto potência autônoma de singularizar, cujo efeito imediato é a promoção de um corpo intensivo plural, percorrido pelos devires ativos do desejo. Pensamento-práxis, gera territorialidades e conquista forças vitais inventoras de novos modos de afetar e ser afetado para o homem. Libera a vida de todas as instâncias de julgamento, ao acolher as multiplicidades dos movimentos que a colocam em devir criador de si.

A Escola Nômade de Filosofia é um movimento de pensamento livre, desvinculado de modelos racionais, morais ou religiosos. Pratica o pensamento como potência de criar modos de existir, sem pressupor princípio formal fundador.

 

http://escolanomade.org/escola-nomade/escola-nomade/escola-nomade

 

A FOME EM PRATOS LIMPOS
Gilberto Molina

Se compararmos os mapas de ocorrência do analfabetismo e das áreas com carência alimentar grave no território brasileiro com a distribuição dos votos dados à presidenta eleita, podemos notar uma singular coincidência:  As regiões com estas características possuem aproximadamente as mesmas condições de contorno.

 

É o contorno da fome que contorce o indivíduo!
Quando votei para presidente pela primeira vez, em 1989, tinha a intuição de que alguma coisa não daria certo, apesar da expectativa formada por anos de abstinência de votos ao cargo máximo. Dois anos depois deu no que deu: um presidente escorjado de seu cargo e novas experiências para quem nunca votou. Naquela ocasião profetizei para minhas filhas, que não haviam ainda se aventurado por mares nunca dantes navegados: “Não acertaremos no primeiro e nem no segundo, muitas eleições se passarão até que um presidente atenda efetivamente aos anseios do povo!” E eu, doce ilusão, pensava em cinco ou seis eleições, coisa assim da ordem de uns vinte anos. E vinte anos se passaram e outros vinte passarão até que a grande profecia seja cumprida.

É claro que nessa história dos mapas não houve coincidência alguma, houve sim o reflexo de uma política assistencialista, que em sua essência deveria propor um apoio temporário ao trabalhador proporcionando um mínimo de tranquilidade para o alcance de uma estabilização financeira por meio de um trabalho fixo. Mas se o apoio deve ser temporário, a sua continuidade por tempo excessivo vicia e estagna o cidadão. Resta achar o ponto de equilíbrio, que certamente não deve varar gestões presidenciais, pois se for assim, tenho que reconsiderar mais vinte anos na minha profecia.

É a fome varando o tempo interminável!
O governo atual priorizou as classes menos favorecidas diferentemente de todos os governos anteriores e em consequência obteve o reconhecimento traduzido pelos mapas. A inclusão social é um sonho mais perto, a nova classe média já pode apalpar a realização pessoal e o consumo. Trinta milhões de brasileiros ascenderam á classe C nos últimos sete anos. Oferecer oportunidades e permitir acesso às necessidades básicas, trará em longo prazo uma mais justa distribuição de renda, que em consequência, permitirá uma sociedade mais equitativa, diferente daquela que hoje os mapas da fome mostram ... e são criticados e até discriminados

Ter a posse plena de seus direitos inicia pela satisfação de suas necessidades básicas: sobrevivência a todo custo e a fome saciada.  Em regiões tão extensas, além de bolsões de miséria, ocorre a fome em seu sentido lato, as carências protéicas, minerais e vitamínicas, essenciais à saúde do ser humano.

A fome não anda sozinha, não é um efeito isolado, aparece associada à instrução e ao nível cultural da população, formando um exemplo dialético irrefutável.  Quanto maior a renda e maior a escolaridade, menor a vulnerabilidade à fome.

Josué de Castro, em 1960 com a publicação de “Geografia da Fome”, quebrou o tabu ao falar da fome como uma questão endêmica, permanente, crônica, arraigada.  Hoje, tecnicamente, a velha e conhecida fome ganhou o status de “insegurança alimentar grave”. Renovam-se os nomes, trocam-se os atores, mas o prato vazio continua como sempre esteve.

Não vou ousar novas profecias, mas tenho esperança de que algum dia os mapas terão somente o contorno de nossas fronteiras, quando então a fome estará passada em pratos limpos.

Gilberto Molina é engenheiro, irmão de Flávio Molina que foi assassinado pela ditadura,
em 1971, aos 24 anos, enterrado em cemitério clandestino de Perus, SP

 

Homofobia: o fascismo social avança
Cecília Coimbra

“São Paulo, madrugada na Avenida Paulista. Jovens abastados, menores de idade, instrumentalizados de porretes e bastões fluorescentes, primeiro espancam dois amigos que andavam na calçada e logo adiante continuam, como policiais dos costumes, suas sedes de vingança e extermínio moem de pancadas mais dois rapazes. Não pertencem a nenhuma gangue. São executadores! Acabam pegos no dia seguinte. A mãe de um deles diz que o filho é bom aluno e que isso foi uma “atitude infantil” e que aplicará um castigo ou procurará um especialista. É uma executora da moral apodrecida que mora nos bons condomínios”. (Núcleo de Sociabilidade Libertária – Flexeira Libertária – PUC/SP)

Segundo os organizadores da 15ª Parada do Orgulho LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais) cerca de 800 mil pessoas participaram do evento, em Copacabana (RJ), no último dia 14 de novembro, quando treze trios elétricos atravessaram a orla do Posto 6 ao 2. Neste mesmo dia, horas depois, um estudante de 19 anos, foi abordado por três homens vestindo fardas camufladas, os quais identificou como militares lotados no Forte de Copacabana. Aos gritos de “viado tem que morrer”, “se matar você, faço um favor para a sociedade” e “você é uma vergonha para sua família”, foi jogado no chão, chutado e atingido por um tiro na barriga que, felizmente atravessou seu corpo, salvando-o. Nesta mesma noite, cinco jovens agrediam quatro rapazes na Avenida Paulista.

Intolerância, preconceito, fundamentalismos os mais diversos fortalecem-se cotidianamente. Grupos religiosos – em especial vinculados ao Candomblé e à Umbanda –, homossexuais, negros, nordestinos, moradores de rua, empregadas domésticas e, principalmente, segmentos pobres de nossa população – os chamados “perigosos sociais” (ver Editorial) – são os principais alvos daqueles que vêm sendo produzidos como pequenos “soldados-cidadãos”, como policial de plantão em cada um de nós.

As agressões destes que se julgam juízes acima de qualquer suspeita vão muito além dos xingamentos e ataques na internet. São violentas agressões físicas que, se não matam, deixam profundas marcas. É o caso, por exemplo de um travesti que foi agredido e chutado tão violentamente, na Praça da República (centro de São Paulo), por vários jovens o que lhe causou hemorragia interna e o obrigou a extrair um rim. Dois jovens curitibanos gays foram impedidos de entrar em um Shopping Center da cidade. Em outubro último, um adolescente gay foi espancado e humilhado dentro de um módulo da Polícia Militar, na Praça Osório, também em Curitiba. Muitos outros exemplos ocorrem cotidianamente em nosso país.

Pessoas vêm sendo friamente assassinadas por sua escolha sexual. No Brasil, levantamento realizado aponta que a cada três dias um homossexual é brutalmente assassinado, e em muitos casos, com requintes de crueldade.

O ódio e a intolerância ao que é diferente, ao que foge às normas instituídas, sacralizadas e, por isto, consideradas as únicas e verdadeiras formas de viver e de estar no mundo são adubados por diferentes dispositivos sociais, em especial pelos grandes meios de comunicação de massa hegemônicos presentes em cada um de nós. Não por acaso, uma pesquisa realizada, em 2009, em escolas públicas de todo o país com 18,5 mil alunos, pais, professores, diretores e funcionários de 501 unidades de ensino no Brasil constatou que 87% da comunidade escolar têm preconceito contra homossexuais.

“Muitos profissionais de educação ainda acham que a homossexualidade é uma doença que precisa ser tratada e encaminham o aluno para um psicólogo. Por isso nós temos pressionado os governos nas esferas federal, estadual e municipal para que criem ações de combate ao preconceito”, explica o presidente da ABGLT (Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais), Toni Reis. Não por acaso, a pesquisa aponta que, cotidianamente, ocorrem em nossas escolas as piadas preconceituosas, os cochichos nos corredores, as exclusões em atividades escolares e as agressões físicas a alunos homossexuais que produzem perversos efeitos não só no rendimento escolar desses alunos. Em muitos casos, esses estudantes perseguidos preferem interromper os estudos abandonando a escola.

No Rio de Janeiro, há um projeto de lei nº 717/2003, de autoria do deputado estadual Edino Fonseca (PSC) que prevê a criação pelo governo estadual de um programa para as pessoas que “voluntariamente optarem pela mudança da homossexualidade para a heterossexualidade”. Este projeto vem sendo questionado pelo Conselho Regional de Psicologia por ferir o Código de Ética dos psicólogos. Muitos outros movimentos de direitos humanos do estado têm se colocado contrários a este projeto como o Grupo Tortura Nunca Mais/RJ.

Em função desses movimentos, em especial do GLBT e da firme posição assumida pelo Conselho Regional de Psicologia, foi lançada na ALERJ, em 31 de agosto de 2004, a Frente Parlamentar pela Livre Expressão Sexual.

Semelhante ao projeto fluminense encontra-se também tramitando na Câmara Federal um outro do mesmo teor (PL 2177/2003) de autoria do deputado federal Neucimar Fraga (PL/ES).

Há um número crescente de países que reconhecem as uniões homoafetivas e o direito à livre orientação sexual, como a Holanda, a Bélgica, a Noruega, a Espanha, a África do Sul, a Argentina, o Canadá e alguns estados dos Estados Unidos. Entretanto, em sua grande maioria, há aqueles que criminalizam esta prática de forma extremamente rigorosa. Segundo Flávia Piovesan (O Globo de 02/12/2010) “em mais de 70 países, a homossexualidade é punida com sanções penais bastante duras e repressivas, como é o caso de Uganda ao debater neste ano o projeto que prevê pena capital para condenados por ‘homossexualismo agravado’ (...). [Entretanto] Desde 1996 a Corte Européia de Direitos Humanos tem reiteradamente proferido decisões que repudiam práticas discriminatórias baseadas em orientação sexual” (p.6).

Há em nosso Superior Tribunal Federal, várias ações judiciais que pretendem o “reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo, estendendo por analogia a esta união os mesmos direitos e deveres reconhecidos nas uniões entre homens e mulheres (...)” (idem).

Cabe, portanto, a todos nós, movimentos sociais, Legislativo e Judiciário a coragem de romper com os preconceitos e com os “padrões discriminatórios, que têm negado aos homossexuais direitos básicos” (idem), já garantidos – pelo menos nas leis – a toda e qualquer pessoa.

O avanço dos fundamentalismos adubando a lógica totalitária que nos vem sendo imposta fortalece a idéia de que “para viver é preciso aderir ao não pode!” (Núcleo de Sociabilidade Libertária – Hypomnemata 125, PUC/SP) e que “em pouco tempo e de maneira gradual, uma prática de governo ditatorial realiza-se como um programa democrático” (idem).

Cecília Coimbra é Professora da UFF,
presidente do Grupo Tortura Numca Mais/RJ


Xenofobia e homofobia: questões penais?

Natália Ferraz Granja e Juliana Carlos

Em outubro desse ano, logo após as eleições presidenciais, uma onda de declarações preconceituosas contra nordestinos pôde ser vista em redes sociais de grande popularidade, como o facebook e o twitter. Os comentários ligavam a eleição de Dilma Rousseff (PT) à grande popularidade da candidata nos Estados do Nordeste, e desqualificavam o direito de voto dos habitantes desses estados. Um dos comentários postados no twitter atraiu grande atenção por sua virulência e por partir de uma estudante de Direito, Mayara Petruso.

No dia 03 de novembro, a seção pernambucana da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-PE) apresentou uma representação criminal em São Paulo contra a onda de ataques aos nordestinos divulgada pelo Twitter após o resultado da eleição. A representação da OAB-PE é contra Mayara Petruso, uma das que teriam iniciado os ataques. Segundo o presidente da OAB-PE, Henrique Mariano, Mayara deve responder por crime de racismo e incitação pública à prática de crime , no caso, homicídio. Entre as mensagens postadas pela universitária, há frases como: "Nordestino não é gente. Faça um favor a SP, mate um nordestino afogado!".

No dia seguinte, 04 de novembro, a ONG Safernet protocolizou no Ministério Público paulista uma notitia criminis relacionada às manifestações de racismo cometidas no twitter e facebook após a apuração das eleições. A partir de denúncias dos próprios usuários dessas redes sociais, a Safernet produziu um relatório com a identificação de 1.037 perfis acusados de cometer racismo contra nordestinos.

A reação à onda de preconceito que se manifestou nas redes sociais despertou a discussão sobre a criação de leis penais específicas para punir de forma severa aqueles que praticarem condutas xenófobas ou homofóbicas. O fundamento do clamor pela criminalização destas condutas passa pela idéia de que somente com a instituição de sanções penais será possível coibir ações como a da estudante de Direito Mayara Petruso.

Esse movimento de criminalização está nitidamente ligado à concepção de que o combate a condutas ofensivas às liberdades individuais passa, necessariamente, por sua inclusão, de forma muitas vezes até casuística, no sistema penal. Ainda que haja a possibilidade de levar a questão a outras esferas de solução, sejam elas judiciais ou não, a sociedade só parece se sentir efetivamente “segura” quando a força do Direito Penal entra em cena. Mais ainda: mesmo em casos em que já há tipos penais que podem ser aplicados, ainda que de forma mais genérica, o surgimento de situações que causam grande comoção social invariavelmente incentiva movimentos pela criação de novas normas criminalizadoras. O resultado é um inchaço do sistema penal que leva à perda da força inerente à idéia de criminalização de condutas. O Direito Penal, dessa forma, se torna banal: tudo é crime, logo, todas as condutas são colocadas no mesmo patamar de gravidade. 

Parece ser exatamente esse o ponto que permeia a criação de leis penais para punir os casos absurdos de agressão contra migrantes e homossexuais que tem sido noticiado: ainda que seja possível processar criminalmente aqueles que se voltam contra estas pessoas com fundamento em normas penais já existentes no sistema jurídico brasileiro, há um forte clamor para que sejam elaboradas leis específicas para estas situações.

Infelizmente, a discriminação não apenas destas “minorias”, mas também de todos os que destoam do padrão imposto por uma sociedade preconceituosa, está culturalmente arraigada e não será fulminada por uma lei penal. Se não houver uma mudança individual e particular no modo como esses grupos são encarados, as ofensas continuarão e a criminalização proposta se tornará uma mera vingança pessoal do agredido.

Não se pretende afirmar que quem sofre uma violência fruto de preconceito, seja ela física ou psicológica, deve simplesmente se curvar e “oferecer a outra face”. A vítima tem todo o direito de manifestar sua raiva e indignação pela humilhação. O fato é que, do ponto de vista dos efeitos gerais, a criminalização específica da xenofobia e da homofobia não terá o resultado supostamente pretendido, qual seja, o de evitar que ocorram. Talvez ocorra mesmo o inverso: incitar o ódio dos intolerantes punidos que verão na vítima, e não na sua própria conduta, a razão da sua punição. Enquanto o agressor não encarar a sua postura como condenável, a existência de crimes específicos que visam proteger o alvo de suas condutas preconceituosas não surtirá efeitos.

O preconceito odioso que tem como alvo migrantes e homossexuais não precisa ter como resposta a criminalização específica de condutas que podem ser punidas por meio de tipos penais já existentes. Mas, mais do que isso, deve-se questionar se a aplicação de sanções penais, que tem como seu maior expoente a privação da liberdade, é a solução para esse problema social. Será que perpetuar o encarceramento de indivíduos em um sistema penitenciário falido como o nosso surtirá efeitos positivos não apenas na vida daqueles envolvidos diretamente, mas na sociedade como um todo? A criação de crimes ultrapassa, e muito, a mera modificação da legislação penal. É preciso refletir a respeito das graves conseqüências provenientes da aplicação do Direito Penal não apenas quando se trata da questão das agressões às minorias, mas também em todos os conflitos sociais em que ele tem sido chamado a atuar.   

Natália Ferraz Granja é advogada
Juliana Carlos é socióloga

 

Cenas de um Corpo sem Dono
Luis  Antonio Baptista

Bullying,  homofobia e  zonas perigosas são denominações utilizadas para designar atitudes e áreas da cidade. Na mídia, assim como nos textos acadêmicos, a psicopatologia da alma humana e a topografia urbana explicariam a origem das mazelas da atualidade. Em determinadas áreas da urbe e da alma estariam alojadas as razões da violência. Em certos corpos, psiquismos ou cantos da cidade, impermeabilizados por suas individualidades, residiria o mal passível de cuidado ou extirpação. A ordem médica e o poder  policial serão necessários para retirar de cena  os males que sujam a imagem do Rio de Janeiro. No passado estes males eram punidos ou curados  por intervenções na carne. O  higienismo de outrora  sonhava  manter reclusas as ameaças contidas nas  almas ou nas  classes perigosas. A assepsia da atualidade requer a boa imagem, a nitidez da cena na qual a diferença brilhará na tela urbana tornada espetáculo. A psicopatologia do contemporâneo possui em seu discurso a  velocidade do mercado. O consumidor de comportamentos adequados e da  saúde  perfeita estará sempre em dívida com a vida social que requer o politicamente correto como imperativo. Na cidade espetáculo, zonas perigosas e ações violentas são consumidas nos domicílios como entretenimentos que poderão promover prazer, repulsa ou indiferença. Na tela os corpos não fedem, personagens claros desempenham sem ambigüidades o scripit; tudo se passa lá, tudo acontece lá e é assistido pelo telespectador que tudo vê , como se o corpo da alteridade se dissolvesse até virar um nada. As imagens inadequadas são apagadas. Passamos com pressa  pelas chamadas  zonas de risco, circulamos com medo quando estamos fora da tela, atravessamos a cidade acelerados;  a procura da diferença sempre com o prazo de validade a vencer. Entre o outro e a cidade uma impermeável tela de vidro anestesia a força do assombro; um “entre” produtor de imagens e de corpos,  cuja a única impureza ameaçadora seria a chance de terem história. Uma sobrevida limpa, sem contágios  é oferecida pelo mercado para sermos provisoriamente  felizes, tolerando e respeitando as diferenças. Neste mercado da diferença o ato de humilhar dá lugar ao bullying, medicável, em sua tradução como  distúrbio comportamental . Não partilharíamos da impessoalidade  dor . O corpo do humilhado torna-se um tipo, um índice, uma diferença formatada na  imagem pronta para ser reconhecida e consumida. A força política da humilhação é domesticada  perdendo o ímpeto aniquilador do seu ato.   Desta outra  pele   não encontraremos  vestígios das nossas histórias. Dos espaços perigosos não encontraremos o passado e o futuro do nosso corpo.  Os humilhados serão reduzidos a  vítimas ou condenados por atos que só a eles dizem respeito. A diferença brilha solitária, sempre em dívida, comovida ou não com o que extrapola as suas bordas, mas irremediavelmente imaculada . Nada de misturas ou contágios.  Zonas de risco, almas em dívida  conheceriam  a cidade cuja impermeabilidade das fronteiras é inexistente e  a vida é suja?

Porosa como suas rochas, assim é definida Nápoles por Walter Benjamin. Rua e casa, noite e dia,  ruídos e cheiros díspares entrelaçam-se rompendo e refazendo  suas  fronteiras. Inexiste assepsia neste lugar. Nápoles deixa passar, é feita e refeita por atravessamentos e, nesta passagem, é impedida de concluir, ou instituir, qualquer ação que pretenda ser definitiva. Os seus poros rejeitam adjetivos que a definam como um assentamento feliz. Nenhum adjetivo perpetuar-se-ia no seu traçado. Espantos desencadeados pelo horror ou pela beleza dos  fatos que a perpassam  são sempre vistos como uma primeira vez.  A porosidade da cidade meridional a faz vulnerável ao  acaso, contingente às  ações; sem o conforto da continuidade do tempo. Nela, como em suas rochas, a passagem produz vida suja, uma modalidade de vida  maculada por acontecimentos e afetos que a fazem seguir incompleta, sempre . Narrativas, atos, experiências de outros portos atravessam os seus poros,  aturdindo o passado e o presente das suas pedras.  Nápoles é fatal para a  serenidade do espírito ; perigosa  para os que desejam a estabilidade das suas formas, ou para o  corpo de quem a experiencia. Esta cidade é asfixiante para os defensores da pureza dos espaços. Histórias de outros sítios, narrações de mares distantes passam através da sua pele nutrindo-a ; o estranho a alimenta e  a faz contar de outra forma o que passou pelo seu corpo  maculado.  Do legado da vida suja que a ocupa temos a inquirição ao mundo dominado por ceticismos paralisantes. O tempo das suas rochas impede ao presente o reconhecimento do já visto, e ao passado a sua morte.  Utopias anunciando o que virá, desatentas às urgências da atualidade, são também impedidas. Nenhuma  dor ou alegria bloqueariam a impertinência do desejo desencadeada  por seus poros. Benjamin a tem como imagem de pensamento, como um modo de existir e de se fazer política.

Certo dia a porosidade napolitana atravessou o oceano. Aportou em um bairro do Rio de Janeiro chamado Urca. Em um dia de julho, esta  tranqüila localidade perdeu a serenidade.  As fronteiras deste recanto a beira-mar foram invadidas por forças sem corpo definido, que atingiram um corpo sem dono. A clareza dos mapas urbanos no afã de delimitar a sedução e a periculosidade dos territórios fracassou. O cartão- postal carioca desfazia-se da aura do espaço imaculado. A vida suja ocupava as ruas. Algo vazou, perpassou os limites deste lugar aparentemente estranho à turbulência da cidade. A Urca perdia a inocência.  No outono carioca, a paisagem bucólica foi visitada por uma modalidade de barbárie particular. O jornalista Jefferson  Lessa foi interrompido de entrar em casa  por jovens da classe média  moradores deste bairro. Gritavam em coro:  - Veado!; e o agrediram  com virulência . Seria  o corpo do jornalista atacado só dele ? O que perpassou e redesenhou o corpo dos jovens que o definiam como um animal ?.

No texto publicado no jornal carioca, Jefferson afirma que foi vítima de um bullying homofóbico. Será? O corpo do  jornalista foi violentamente agredido. O Rio de  Janeiro foi maculado pela  vida suja que aturde e põe em questão a geografia do eu e a do  medo. A Urca fedeu.  A zona bucólica vista através do vidro despedaçava-se. O bairro seguro foi atravessado por modos de vida fascistas desprovidos de um único autor. O fascismo individualiza,  produz espaço e aniquila qualquer diferença que ouse turvar a paisagem. Nos campos de concentração, nas delegacias de polícia  suburbanas, igrejas, escolas , entre outros lugares, esta prática é operada cotidianamente.  Jefferson foi humilhado, assim como todos os  que portam em seus corpos a presença  encarnada da cidade produzindo a impertinência do desejo. Chamado de animal perdia a posse em seu corpo da história de outros corpos. Aos animais só restariam os limites da natureza.  Para a vida fascista veado é veado, branco é branco, pobre é pobre, homem é homem, vida é vida, morte é morte e tudo tem que estar no seu devido lugar. Longe da Urca, no Alemão e na Vila Cruzeiro, a pacificação é comemorada junto aos detritos humanos e inumanos deixados após o combate.  Na TV a zona norte não fedeu. Saúde e paz ocupam o Rio de Janeiro. O discurso médico e a polícia clamam por direitos e deveres. O jornalista foi vítima de mais um ato de bullying.  Será ?  Dos poros da cidade de São Sebastião potentes paradoxos incitam-nos a vislumbrar a violência de qualquer cartão-postal, tanto os dos cadáveres sem cheiro vistos na tela quanto a da sedutora paisagem tropical onde nada acontece. O que estamos fazendo da nossa vida, que modos de existir recusamos  quando o ato de  humilhar torna-se um inocente objeto moral ou  médico?

PS  O artigo mencionado do jornalista Jefferson Lessa tem como título O medo de ser. Relato pessoal de um caso de bullying homofóbico num aprazível bairro carioca. Foi publicado no jornal O Globo em 18 de julho de 2010.