João Cândido – O Almirante Negro: 100 anos da Revolta da Chibata
Maysa Machado

Saídas de nossos livros de história raras são as figuras dos heróis que permanecem como ícones e realimentam, de modo contínuo, nossas esperanças em uma Nação mais justa e igualitária.

A luta dos Direitos Humanos, suas bandeiras de igualdade e respeito à frágil condição, de que trata, não cessa.  Mobilizar consciências e preparar a resistência é que produz não só heróis, mas a tão esperada transformação.

João Cândido Felisberto, o Almirante Negro, como é conhecido, em ensaios, poesia, cordel, sambas, autos, é uma dessas consciências que ilumina todos os caminhos para a transformação de nossa cidadania. Está inserido em nosso imaginário nas lutas de Resistência. Por isso é cantado, sua coragem é reconhecida, manter acesa a chama que sua memória representa é dever e orgulho para todos os militantes da causa dos Direitos Humanos.

O Grupo Tortura Nunca Mais-RJ que concede a medalha Chico Mendes de Resistências-memória e lutas, prestou sua homenagem à João Cândido,  no ano de 2006.

Comemora-se, neste ano de 2010, o Centenário da Revolta da Chibata. A liderança e a consciência política, para a mudança, estavam em um negro, pobre, que não se subjugou nem se afastou da luta. Filho de escravos trouxe por ensinamento, e como forma de sobrevivência, a resistência à opressão, desde o berço. Aos treze anos, já participara da Revolta Federalista, em seu Estado o Rio Grande do Sul. Aos quinze iniciou sua forte relação com o mar, entrou para a escola de Aprendizes de Marinheiros. Do menino vindo do interior, livre, torna-se o homem, que anos mais tarde, viajado pelo mundo, pelos mares alargou conhecimentos e informações sobre várias lutas e direitos às melhores condições de trabalho dos marujos. As repercussões dos movimentos e insurreições dos marinheiros ingleses e russos vão influenciá-lo e aos seus companheiros na organização da rebelião, bem sucedida, em sua principal reivindicação.

Vida difícil percorre. Dedicado, destaca-se pela experiência adquirida, através de treinamentos exaustivos conquista lugar de respeito entre os marinheiros, a tripulação e diante dos oficiais. A disciplina na Marinha era rigorosa infringindo castigos corporais aos marinheiros, inadmissíveis. Os costumes da sociedade brasileira resistiam à aplicação das leis.  No começo do século passado as práticas sócio-culturais, por aqui, estavam em atraso com as conquistas européias, dos trabalhadores, vistas por João Cândido. O tratamento desumano gerou a Revolta. Descontentes eram humilhados com a chibata por indisciplina. Queriam aumento dos soldos, uma alimentação adequada, e a abolição dos castigos corporais, que já tinham sido proscritos. O impasse acontece e atinge o governo de Hermes da Fonseca, a crise transpõe, em magnitude, a origem de responsabilidade da Marinha, em aplicar os abjetos castigos.

Em vinte e dois de novembro de 1910, a capital da recente república brasileira é abalada pela movimentação, na Baía de Guanabara, na mira dos canhões. Mais de três mil homens, quatro navios, aguardam a resposta do Presidente. Um manifesto é transmitido por rádio. A população sobe aos morros para ver os navios ancorados.  Um acordo é alcançado para por fim à prática da chibata e por anistia aos rebelados. Entretanto, no que se referia à anistia nunca foi cumprido. São presos, torturados, perseguidos, mortos.

Julgados e excluídos da Marinha não conseguiam emprego. O líder esteve internado no Hospital Nacional dos Alienados, em abril de 1911, a justificativa eram as alucinações das sangrentas torturas sofridas, por ele, e seus companheiros, muitos mortos na cela da ilha das Cobras, naquele dezembro de 1910. Voltou a prisão na ilha das Cobras, prisão que dura 18 meses em isolamento. No ano de 1912, no tribunal foi provada a inocência de João Cândido e seus companheiros dos crimes que lhes atribuíam. O historiador Marco Morel, autor do livro A revolta da Chibata, ressalta questões que permanecem, em nossa sociedade, desde o movimento de rebelião dos marinheiros. Uma delas, a violência do aparelho de Estado contra as populações mais pobres. Violência naturalizada e assentida na resistência de camadas da população à implantação de políticas públicas de Direitos Humanos.

Um século depois, nos recentes episódios em nossa cidade, com a retomada do território do complexo do Alemão, pelas forças policiais civis e militares, e por tropas do exército e da marinha, ainda remanesce nas ações e práticas o abuso de autoridade, em sua maioria impune. O forte aparato policial militar justificado pelos meios de comunicação, espetacularizando as ações, numa demonstração massificadora de poder, poder público, esse omitido por décadas de descaso com estes mesmos territórios e populações.

 As causas que moveram João Cândido e seus companheiros são as provas que encontramos para uma sociedade excludente, hipócrita em que o poder público é exercido com total distanciamento dos legítimos interesses populares.

“Glória a todas as lutas inglórias”

 João Cândido Felisberto – Nascido em quatro de junho de 1880, no Rio Grande do Sul, e falecido em 1969, no Rio de Janeiro.

 

Socióloga, membro do GTNM-RJ,
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Textos consultados:
1 – 20 anos da Medalha Chico Mendes de Resistência – memórias e lutas. GTNM-RJ.
2 – Projeto Memória ”João Cândido – A luta pelos direitos humanos” – Fundação Banco do Brasil – 2008.
3 – Cheganças do almirante negro na pequena áfrica.
(Odisséia de João Candido contada em cordel de Edmilson Santini)