25 anos do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro

“Acreditar no mundo significa principalmente suscitar acontecimentos, mesmo pequenos, que escapem ao controle, ou engendrar novos espaços-tempos, mesmo de superfície ou volume reduzidos (...). É ao nível de cada tentativa que se avalia a capacidade de resistência ou, ao contrário, a submissão a um controle. Necessita-se ao mesmo tempo de criação e povo”. (Gilles Deleuze)

Em abril de 1985, foi veiculada pela imprensa a notícia da nomeação do coronel Walter Jacarandá para cargo de relevo no Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro. A fotografia do coronel, que acompanhava a notícia, permitiu que ele fosse identificado como torturador nos anos do regime militar. O então secretário estadual de transportes do Rio de Janeiro Sr. Brandão Monteiro, ex-preso político, reconhece no cel. Jacarandá um de seus algozes e enfatiza, em entrevista à imprensa, o “perfeccionismo e o entusiasmo” do cel. Na execução de seu “ofício”.

Outras vozes se levantam e vêm endossar aquelas declarações, entre elas as de Alcir Henrique da Costa, Álvaro Caldas e Otacílio Frutuoso Roque, vítimas também de sevícias nas mãos do cel. Jacarandá.

A reação do comandante do Corpo de Bombeiros não se fez esperar, veio imediata, inocentando seu comandado e negando ter havido tortura a presos políticos.

Mais notícias. Mais fotos. E eis que os jornais acusam também o cel. José Halfed Filho de ter sido agente do aparelho repressor da ditadura, encarregado da carceragem no DOPS DO Rio de Janeiro e do encaminhamento de prisioneiros políticos para o DOI-CODI da rua Barão de Mesquita.

Ora, o cargo do cel. Halfed correspondia ao de secretário de Estado e, como tal, membro do Conselho Estadual de Justiça, Segurança Pública e Direitos Humanos (CEJSPDH), ou seja, um ex-agente da repressão possuía direito de voto em questões referentes à defesa da dignidade e integridade da pessoa humana*.

Nessa ocasião, ex-torturadores, familiares de mortos e desaparecidos e cidadãos ligados à Defesa dos Direitos Humanos fizeram um abaixo-assinado** exigindo o afastamento do cel. José Halfed Filho do CEJSPDH.

Incentivados pela repercussão do documento, esse grupo de pessoas volta a se reunir para analisar e avaliar a postura dos órgãos oficiais frente às denúncias feitas sobre o assunto e chega às seguintes conclusões:

  1. A tentativa de quebra de silêncio que envolve a tortura, morte e desaparecimento de prisioneiros políticos nos anos de regime militar tem sempre deparado com obstáculos quase intransponíveis. Alguns setores que compõem o Pacto das Elites a que foi dado pomposo nome de Nova República recusam-se a aceitar que se traga à tona o vergonhoso passado tão próximo;

  2. Critérios supostamente éticos foram criados para que qualquer medida tomada para esclarecer os fatos referentes à violação dos Direitos Humanos praticados durante o regime militar seja tachada de “revanchismo”;

  3. A Lei da Reciprocidade (Lei da Anistia) é usada juridicamente pelas Forças de Segurança. Reciprocidade esta inexistente, pois não há reciprocidade possível entre uma linha revolucionária e a institucionalização de um crime comum e covarde como o da tortura;

  4. A avaliação funcional de militares e policiais não tem sido afetada pelo fato comprovado de terem participado da tortura, morte ou desaparecimento de prisioneiros políticos, e, em muitos casos, recebem honrarias, cargos de confiança e até representações diplomáticas;
  1. A aparelhagem altamente sofisticada dos órgãos de repressão não foi desativada, permanecendo como ameaça permanente;

  2. Só um trabalho persistente, obstinado e consciente permitirá que se chegue è elucidação dos fatos ocorridos durante o regime militar, tornando-se, portanto, necessária e indispensável a criação de um instrumento que possa lutar para manter viva a memória nacional, e assim alcançar o objetivo principal: justiça.

Por isso, foi criado em 26 de setembro de 1985 o Grupo Tortura Nunca Mais, entidade civil cujas finalidades primeiras são a denúncia e o esclarecimento de todo e qualquer crime contra a pessoa humana – ontem, hoje e sempre – e a postura firme e consciente contra a impunidade.

O Grupo Tortura Nunca Mais está ciente de quanto o medo se tornou uma instituição nacional e a tortura o instrumento eficaz na manutenção dessa instituição, mas também pode afirmar que, apesar de todas as dificuldades, a trajetória do Grupo em pouco mais de um ano de existência apresentou um saldo positivo.

O êxito do I Seminário do Grupo Tortura Nunca Mais foi de grande importância para a nossa caminhada. Por isso a publicação das conferências, debates e conclusões do seminário é muito mais que o registro de momentos de grande emoção. É a transcrição da verdade histórica. É a obtenção, pela permanência da palavra escrita, do testemunho sobre uma época sombria. Acreditamos que um livro como este permaneça e com ele a esperança. Esperança de que, em época não muito longínqua, o capítulo tortura seja banido das páginas da história do Brasil e – como sonhar sempre é permitido – também da história da humanidade.

Rio de Janeiro, 25 de dezembro de 1986.

Diretoria
Presidente: Flora Abreu Henrique da Costa
Vice-presidente: Yedda Botelho Salles
2º vice-presidente: Rubin Aquino
Secretária-geral: Cecília Maria Coimbra
2ª secretária: Maria Dolores Perez Gonzáles
Tesoureiro-geral: João Luiz de Moraes
2º tesoureiro: Sérgio Murilo Nascimento Pereira

(Apresentação do livro I Seminário do Grupo Tortura Nunca Mais. Petrópolis: Vozes, 1987 – esgotado.)

Há 25 anos atrás quando o GTNM/RJ foi criado, sua apresentação pública se deu através de um Seminário, ocorrido de 28 de outubro a 01 de novembro de 1985, na Faculdade Cândido Mendes, na Rua da Assembléia.

Foram cinco noites com mais de 2000 pessoas a cada noite e o programa era:

1ª MESA – 28/10/85 – Um Regime que Tortura

1) Abertura – Flora Abreu – presidente do Grupo Tortura Nunca Mais
2) Maria de Fátima Oliveira Setúbal – ex-presa política, torturada
3) Dr. Herman Assis Baeta – presidente da OAB Federal
4) Ver. Jaime Wright – representante de D. Paulo Evaristo Arns
5) Marilena Chauí – professora de filosofia

2ª MESA – 29/10/85 – Um Regime que cala

1) Cícero Sandroni – representante do Dr. Barbosa Lima Sobrinho - ABI
2) Tárik de Sousa - jornalista
3) Taiguara – compositor e cantor
4) “Magro” (MPB4) – compositor e cantor
5) Achiles (MPB4) – compositor e cantor
6) Chico Buarque de Holanda – compositor e cantor
7) José Américo Pessanha – prof. De filosofia da antiga Fac. Nac. de Filos. Da Univ. Brasil

3ª MESA – 30/10/85 – Um Regime que Destrói

1) Dr. Laércio Laurelli – Assoc. Nac. de Advg. Crim.
2) D. Cyrene Moroni Barroso – mãe de Jana Moroni Barroso, desaparecida política do Araguaia
3) Dr. Nilo Batista – presidente da OAB/RJv 4) Dr. Pedro Henrique de Paiva - médico
5) Dr. Hélio Pellegrino - psicanalista
6) Carlos Comitini – repres. Anistia Internacional
7) Dr. Luiz Eduardo Greenhalgh – ex-presidente do CBA/São Paulo

4ª MESA – 31/10/85 – Leitura da peça A pandorga e a lei, de João das Neves
                                       Exibição do filme Sônia Morta e Viva, de Sérgio Waismann - debate

1) Prof. João Luiz de Moraes – tesoureiro-geral do Grupo Tortura Nunca Mais
2) Frei Betto – dominicano, escritor
3) Carlos Vereza - ator
4) João das Neves - teatrólogo
5) Sérgio Waismann - cineasta
6) Cléa Moraes – mães de Sônia Angel, desaparecida política

5ª MESA – 01/11/85 – Plenária de encerramento
nnnnnnnnnnnnnnn nnExibição do filme Em Nome da Lei de Segurança Nacional, de Renato Tapajós

1) Margarida Genevois – Comissão Justiça e Paz, Cúria Metrop. De São Paulo
2) Rosalina Santa Cruz – prof. PUC, irmã de Fernando Santa Cruz, desaparecido político.

Apesar das lutas, embates e afirmações que vem travando o GTNM/RJ, a história dos “vencedores” ainda predomina no cenário brasileiro. Muito se tem escrito acerca deste trágico período que marcou profundamente a sociedade através do terrorismo de Estado e produziu variados modos de subjetivação, ainda em curso nos dias atuais.

Dentre as múltiplas frentes de trabalho do GTNM/RJ, além da afirmação de novas memórias, procurou-se pesquisar alguns desaparecidos políticos enterrados como indigentes. No Rio de Janeiro em maio de 1991, o GTNM/RJ iniciou uma pesquisa nos arquivos de três instituições, no Instituto Médico Legal, no Instituto de Criminalística e na Santa Casa de Misericórdia, e denunciou publicamente a existência de valas clandestinas onde teriam sido enterrados presos políticos: no Cemitério de Ricardo de Albuquerque, no de Cacuia, no de Santa Cruz, todos na periferia do Rio de Janeiro. No primeiro, foram localizados 14 militantes políticos, sendo dois deles desaparecidos. Nos outros dois cemitérios, dois militantes foram enterrados como indigentes. Em setembro do mesmo ano foi iniciado o trabalho de exumação de cerca de 2100 ossadas encontradas na vala clandestina de Ricardo de Albuquerque, trabalho que contou com o apoio voluntário de dois médicos legistas, indicados pelo Conselho Regional de Medicina, e uma antropóloga da Universidade Estadual do Rio de Janeiro , sob supervisão da Equipe Argentina de Antropologia Forense. Estes médicos, portanto, não eram funcionários do estado do Rio de Janeiro, cujos governantes não se comprometeram nesta investigação. Por motivos de total falta de condições e recursos este trabalho de organização e catalogação de ossadas foi suspenso em 1993.

Entretanto, o GTNM/RJ não esmoreceu em sua luta para a identificação. Ao longo dos anos tem pressionado os sucessivos governos para que assumam o compromisso histórico de esclarecimento utilizando as tecnologias que possam identificar estes desaparecidos.  Além disso, tem como proposta a construção de um Memorial no lugar da vala de Ricardo de Albuquerque para guardar estas ossadas, divulgar os dados sobre os desaparecidos e homenagear àqueles que foram atingidos pela violência da ditadura.

Desta maneira, o GTNM/RJ entende a importância deste processo de esclarecimento das mortes e desaparecimentos. O processo de exumações e de identificações compõe necessariamente uma política de resgate da memória, de reparação. Faz parte, definitivamente, de um panorama de ações que os sucessivos governos em nosso país têm evitado enfrentar. Ao não enfrentar esta questão, o Estado realimenta o esquecimento e favorece o incremento crescente da violência e tortura, agora, dirigidas aos pobres e aos movimentos sociais. Desconhecimento do ocorrido no passado recente, violência e tortura, criminalização dos movimentos sociais fazem parte da dinâmica do modelo neoliberal implantado hoje no mundo, modulação do capitalismo que se utiliza do medo e da insegurança para fazer funcionar o controle sobre os modos de viver no contemporâneo.  E, por isso mesmo, hoje, a abertura dos arquivos, o esclarecimento sobre o que ocorreu, a localização do paradeiro e identificação dos desaparecidos, bem como dos responsáveis por estes crimes, fazem parte imprescindível da agenda dos movimentos de direitos humanos para uma sociedade sem torturas e sem desaparecimentos.

Assim, há vinte e cinco anos buscamos visibilizar uma história que sistematicamente vem sendo negada, ocultada, silenciada: a violência das forças conservadoras diante da experiência das lutas pela afirmação da vida travadas durante a ditadura civil-militar e a conexão destas lutas com as atuais voltadas também para a afirmação de diferentes e singulares modos de viver, agir, pensar, perceber e sentir.

Lutar pelos direitos humanos tem, portanto, significado para nós,um constante desafio: não apenas denunciar as violações ocorridas ontem e hoje exigindo respostas, porém suscitar uma análise crítica das forças de um pensamento que, encarcerado em verdades a priori, impede o pensar-criar produzindo assim assujeitamentos.

Tem sido nosso propósito dar relevo às invenções de outros modos ativos de existência onde a possibilidade de transformação e criação, onde as formas coletivas e solidárias de cooperação possam se atualizar e ganhar intensidade.



* O cel. Jacarandá não permaneceu no posto e seria posteriormente reformado, mas o cel. Halfed Filho continua no cargo até o momento em que este texto está sendo redigido, embora não compareça mais às reuniões do Conselho Estadual de Justiça, Segurança Pública e Direitos Humanos.

** AO CONSELHO DE JUSTIÇA, SEGURANÇA PÚBLICA E DIREITOS HUMANOS: Nós, diretamente atingidos pela repressão política e pela tortura, na década de 70, e demais pessoas e entidades que lutam pela defesa dos Direitos Humanos, vimos protestar contra a presença do coronel José Halfed Filho, do Corpo de Bombeiros, neste Conselho, até que esteja devidamente esclarecida a sua participação, ou não, no esquema repressivo. Consideramos indispensável a abertura de processo que esclareça os fatos.
Expressamos ainda nossa solidariedade ao advogado Modesto da Silveira – membro do Conselho e incansável defensor dos Direitos Humanos – que exige a não participação do coronel José Halfed Filho nas reuniões do CJSPDH até que as denúncias sejam apuradas.
Solicitamos que o Conselho rediscuta o assunto em pauta e tome as decisões acima mencionadas. (seguem-se as assinaturas).

Os médicos legistas Dr. Gilson  Souza Lima e Maria Cristina Meneses, e a professora Nancy Vieira colaboraram na catalogação das ossadas e arcadas dentárias, sob a supervisão da Equipe Argentina de Antropologia Forense, nas pessoas do Dr. Luiz Fondebrider, Mercedes Doretti e Silvana Turner.