Entrevista

Entrevistado: Sílvio Gonçalves Bahiana, servidor público federal, funcionário da Biblioteca Nacional (BN).
Local: Sede do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro (GTNM-RJ)
Data: 09/06/2010
Entrevistador: Rafael Maul, pelo GTNM-RJ




GTNM-RJ: Sílvio, a luta que você tem feito na Biblioteca Nacional (BN) parece ser de grande importância para todos nós, então vamos tentar entendê-la um pouco. Há quanto tempo você é servidor público?

Sílvio: Eu entrei no serviço públçico federal através da Empresa Brasileira de Filmes no ano de 1982, e de lá para cá venho passando pelo Conselho Nacional de Cinema, Fundação Pró-Memória, pouco tempo no IBPC, depos que a Pró-Memória foi extinta pelo Collor, e logo depois fomos transferidos por decreto para a BN.

GTNM-RJ: Na BN, você está há quanto tempo?

Sílvio: Desde 1991, são 19 anos.

GTNM-RJ: Fale um pouco sobre a BN. A importância da BN para a memória do país, para a história do país.

Sílvio: A Fundação Biblioteca Nacional, que é um órgão federal ligado ao Ministério da Cultura, além de ser aquele prédio maravilhoso na av. Rio Branco, tem o objetivo de preservar para as gerações futuras toda a produção literária do país. É importante diferenciar um pouquinho a função da BN para uma Biblioteca comum. A biblioteca comum é aquela em que você vai, lê o livro, ou pega emprestado. A Fundação Biblioteca Nacional (FBN) tem como objetivo primário a preservação do livro, ou seja, ela não empresta, os livros só podem ser lidos no salão de leitura, pois o objetivo é preservar as obras para pesquisas especializadas. Isso para que daqui a 200, 300, 500 anos a gente ainda tenha materializados em nossas mãos os livros de Machado de Assis, e outras produções literárias, assim como teses, monografias, periódicos – todos os jornais, todo o acervo do Diário Oficial – que por acaso está no prédio anexo da Rodrigues Alves exposto à maresia e poeira. De qualquer maneira, a BN, enfim, é um órgão federal responsável pela guarda da nossa memória.

GTNM-RJ: Dentro da BN, então, funciona o Escritório de Direitos Autorais (EDA), que é o setor em que se deu o estopim de toda essa luta que você está levando hoje. Explique um pouco o que é o EDA e, dentro da filosofia e da função do funcionário público, como é que você procurou trabalhar no EDA.

Sílvio: O EDA existe enquanto setor de atendimento social desde 1899, quando foi feito o primeiro registro literário. Ele tem uma função cartorial, é um cartório, que existe para proteger o direito de autoria da produção literária no país, ou seja, todo mundo que escreve um livro, um poema, uma letra de música, uma tese, uma monografia, se quiser, se tiver a preocupação de assegurar o direito de criação daquela obra para que não haja plágio, para que não haja uma cópia indevida em qualquer tempo, ele tem no EDA um órgão para que este registro seja feito e, a partir de então, este serve de base para qualquer litígio sobre esta obra. É interessante falar que o EDA não tem a função de julgar se houve plágio ou não, ele vai apenas apresentar diante de um litígio legal, que um cidadão X fez o registro daquela obra na data tal, e que o outro cidadão não fez, ou fez numa data posterior. Uma outra importância, também, é que cada vez que você registra uma coisa lá, você tem que deixar um ou dois exemplares da obra. Dois exemplares no caso de obras publicadas, sendo que um exemplar vai para o acervo da BN, e outro fica no EDA, que tem um acervo à parte.

Eu fui lotado lá desde 1993. O processo de informatização do EDA durou três anos. Eu informatizei a sede e também algumas representações (o EDA também tem representações estaduais). Então veio uma primeira crise, e saí do EDA, indo para outro setor. Algum tempo depois eu voltei. Então ocorreu uma segunda crise, séria, porque envolveu um projeto de cerca de 6 milhões de reais, que no início dos anos 2000 estava sobrevoando a BN. Era um projeto para que sistemas de dados fossem substituídos. E tenho quase certeza que este valor foi pago para uma empresa ligada a conhecidos do presidente da casa. Diante dessa crise fui afastado. No final da gestão do Pedro Correia do Lago (presidente da BN nomeado no início do governo Lula, e que era um renomado comerciante internacional de obras raras), houve o caso do desaparecimento de 100 fotografias durante uma greve em 2005, que até hoje não está esclarecido. O Pedro Correia do Lago, por ter sido processado pela MPF, no final de 2005 foi afastado da BN, e no lugar dele entrou o Muniz Sodré, professor, sociólogo renomado na área acadêmica. Com essa mudança, e com todos nós otimistas, uma vez que nos mobilizamos para que o Pedro Coreia do Lago fosse afastado, demos as boas vindas ao Muniz Sodré.

Ao final de 2007 eu, por conviver durante muito tempo com profundas disfunções no EDA, procurei a diretora e, então, decidimos que seria criada uma gerência administrativa, dividindo assim as responsabilidades, para as quais até então só tinha uma pessoa que, no início, era o  senhor João Wilington, que já se aposentou, e que tinha como braço direito Jaury Nepomuceno de Oliveira. Este, na saída do João, assumiu a responsabilidade total do EDA, gerencial e jurídica. Conhecendo o EDA desde 1993, eu não aguentava mais conviver com tantas disfunções e desmandos. Havia uma desorganização profunda e várias irregularidades evidentes, crônicas, que nunca eram atacadas pela gerência. A gerência administrativa iria, portanto, cuidar do aspecto cartorial do escritório. Dos fluxos de trabalho, da organização do trabalho dos setores, dos subsetores.

Depois de algumas conversações, por não haver um outro nome, eu acabei colocando o meu nome como passível para assumir a gerência. Assumi em dezembro de 2008 essa gerência administrativa, de forma totalmente voluntária, sem ganhar um centavo a mais para isso, acreditando que com o meu trabaçlho, com o meu esforço, eu iria conseguir reorganizar o EDA (ou melhor organizar, porque eu nunca vi o EDA organizado) e, acima de tudo, moralizar e melhorar o atendimento. Procurava também formar uma equipe boa, não apenas no sentido de trabalho, mas uma equipe politicamente boa, de servidores públicos conscientes de seus deveres, obrigações e da beleza que é a missão de um servidor público. Com esse objetivo, eu tinha também a intenção de que daqui a dois ou três anos se tornasse possível lutar para que o EDA passasse a existir. Por mais absurdo que possa parecer, o EDA não existe estruturalmente, oficialmente, apesar de ter 111 anos de idade. Ele existe como uma frase do programa de finalísticas da BN, mas não como uma estrutura formalizada. Isso cria uma série de problemas, e deixa tudo ao bel-prazer dos gestores.

GTNM-RJ: Então, o que foi que causou a perseguição e fez com que você se visse obrigado a iniciar essa luta?

Silviio: Em 2006 entrou uma leva de servidores na BN, e uma pessoa especialmente me chamou a atenção: a servidora chamada Regina Santiago. Nos tornamos amigos e fizemos inclusive um trabalho de mobilização com os servidores da cultura, tentando preparar a categoria para os movimentos que iriam despontar em 2007. Quando eu assumi a gerência, em dezembro de 2008, estava atuando como representante sindical, e ela topou trabalhar comigo como subgerente. Nos seis meses que ficamos na gerência, fizemos um trabalho muito significativo e bonito de organização dos trabalhos do EDA. Para vocês terem uma idéia, nunca tinha havido uma ordem primária, básica; uma orientaão administrativa de que todo documento que chegasse no EDA fosse protocolado. Mais importante é dizer que fizemos grandes conquistas no sentido de moralizar os trabalhos do escritório, isto é: criar normas de atendimento; respeitar as filas e atender em ordem cronológica; não escrever com caneta em cima do documento de ninguém; os funcionários deviam cumprir suas obrigações em horários determinados. Enfim, basicamente organizar e moralizar, o que estava sendo feito com grande avanço durante os seis meses.

Até que, em 25/05/2009, eu e Regina estávamos voltando do prédio anexo da Rodrigues Alves e fomos surpreendidos pela nossa secretária, Jaqueline Barata, nos avisando que um telefonema vindo do gabinete da presidência da BN (ou seja, do Muniz Sodré) ordenava que uma pessoa das relações do presidente fosse recebida no escritório, e que o documento fosse deferido e registrado imediatamente. O documento a ser registrado era o roteiro "Roberto Marinho – Os Caminhos do Poder", de autoria de Rosane Braga. Esta chegou ao ambiente do EDA por volta das 16:30h, enquanto o horário de atendimento do público era até às 16h. Quando ela chegou, eu me apresentei e disse, com toda a educação do mundo, que ela estava chegando em um horário incorreto. Ela respondeu dizendo que era amiga do Muniz Sodré e que, portanto, pertencia a uma minoria, e deveria ter uma atenção especial de nossa parte. Eu respondi, já abrindo uma exceção, que eu receberia o documento, mas que este só seria protocolado no dia seguinte, no primeiro horário, e que ele entraria na fila normal de atendimento. Ela mais uma vez retrucou, dizendo que entendia que ela pertencia a uma minoria, com um sorriso de canto de boca, saiu se despedindo, pedindo: “Vê o que vocês podem fazer por mim. Eu sou amiga do presidente, hein.” Meia hora depois, recebi um telefone do chefe jurídico, Jaury Nepomuceno de Oliveira, bastante nervoso, dizendo que eu estava fazendo por onde derrubá-lo. Que eu estaria desobedecendo a uma ordem dele, uma vez que o telefonema dado à secretária tinha sido dele, por ordem do Muniz Sodré. Eu disse que não estava tentando derrubar ninguém, que aquela função era de minha responsabilidade, e que eu estava defendendo o tratamento igualitário ao cidadão. A partir daí, a relação passou a ser de grande atrito, sem chegar a nenhum ponto comum. Jaury então afirmou que iria mandar fazer o registro imediatamente, tendo feito isso.

Dois dias depois, junto com a colega e subgerente administrativa Regina Santiago, oficializei o ocorrido à direção que está hierarquicamente acima do EDA. A diretora Liana Gomes Amadeo, assim que soube, veio muito nervosa do gabinete do Muniz Sodré e convocou uma reunião comigo e Regina. Eu, já sabendo como as coisas aconteciam, liguei meu MP3 e fui para reunião. O áudio da reunião está todo anexado ao processo do MPF. Nela nós fomos informados, sem sermos sequer consultados sobre o ocorrido, que em reunião com Muniz Sodré com a secretaria executiva Célia Portela, a coordenadora administrativa Tânia Pacheco e o já citado Jaury, a direção da casa estava ordenando a extinção da gerência administrativa do EDA. Isso pela desobediência dos dois em relação à “cadeia alimentar” de poder da BN, uma vez que o presidente da casa não teria que obedecer a regra nenhuma. Dois dias depois, eu e Regina fomos afastados do setor. A Regina voltou para o seu setor de origem, e eu me mantenho afastado em uma situação de limbo profissional, sofrendo assédio moral, desde junho de 2009.

Em julho dei entrada em uma representação no Ministério da Cultura, relatando o ocorrido e nomeando o presidente Muniz Sodré, o Jaury Nepomuceno e Liana Amadeo. O MinC devolveu a competência de averiguação e resolução do problema para o próprio acusado Muniz Sodré. Eu repudiei esse encaminhamento, juntamento com um representante legal, e o MinC encaminhou o processo para a Corregedoria Setorial dos Ministérios da Cultura e dos Esportes, em agosto de 2009. Esta deu uma resposta apenas em março de 2010, após a notificação do MPF recebida por Muniz Sodré, mandando instaurar uma sindicância de caráter exclusivamente investigativo, e não punitivo. Parece óbvia a orientação no âmbito do MinC de não dar encaminhamento à questão nesse ano eleitoral, deixando que caia no esquecimento.

Eu tenho, desde então, buscado uma série de entidades e de parlamentares, mas tem sido muito difícil por sofrer um processo de isolamento muito grande junto aos meus colegas, servidores públicos federais. O Chico Alencar tem dado um apoio esporádico. A Associação dos Servidores da FUNARTE e a Associação dos Servidores do Arquivo Nacional fizeram cartas para o Ministério repudiando o que vem acontecendo. O fato é que estamos aqui hoje, no GTNM-RJ, para tentar o envolvimento de uma entidade que cuida do não silenciamento, do não calar, do não submeter pela via da não existência.

GTNM-RJ: Nós acreditamos que essa luta tem realmente tudo a ver com a nossa. Uma das nossas princiapis lutas é pela abertura dos arquivos. Você poderia falar como compreende a luta por que está passando em relação a uma mais ampla pela questão dos Direitos Humanos na construção da história no nosso país e do mundo?

Sílvio: Pois é, meu pai era servidor público federal. Eu entrei no serviço público através de uma empresa de economia mista (EMBRAFILMES), com parte de capital privado. Eu não entendo muito o que é privado, pois acredito que o mundo é de todos nós. Dizem, por exemplo, que o BRADESCO é um banco privado, mas ele é formado pelo dinheiro de milhões de correntistas. Mas tudo bem, vamos utilizar a diferenciação do público e do privado. Meu pai morreu quando eu tinha 19 anos, e eu comecei a trabalhar por necessidade da minha família. Nos primeiros quatro anos eu era muito novo e não tinha muita noção, era peladeiro de aterro, e não sabia do universo onde eu tinha entrado. Mas pouco depois, comecei a ter a noção de que eu não tinha arranjado um emprego, um trabalho no sentido que todo mundo entende. Eu tinha entrado em uma coisa que é muito mais característica de uma missão; uma missão em relação a todos. O servidor público federal é moralmente e por lei o guardião da cosia pública. Infelizmente, a categoria dos servidores públicos de uma forma geral parece desconhecer isso. Desconhecer, mas não por nunca terem lido a lei, que determina que o servidor tem o dever de denunciar e enfrentar toda e qualquer improbidadde administrativa da qual ele tomar conhecimento. A estabilidade, tão atacada, existe para dar a possibilidade para este servidor de enfrentar principalmente os gestores, com seus ataques politiqueiros ao patrimônio público, em todas as áreas.

Se, na questão da abertura dos arquivos não for garantido, dentro do Arquivo Nacional, o exercício pleno dos direitos e deveres do servidor público, o esclarecimento dos fatos ocorridos no passado podem ficar prejudicados. Os arquivos do período da ditadura são patrimônio da sociedade, e por isso devem ser abertos. Como é possível a gente discutir se a sociedade deve ter ou não acesso a sua própria história? Só a discussão já tem em si um sentido de impunidade. Parte dessa sociedade que tem uma mentalidade que dominou, e que talvez continue dominando, faz uma força enorme para que essa história continue escondida dos própios brasileiros. Dentro dessa briga existe uma figura importantíssima chamada servidor público federal, que tem por dever, por lei e moralmente, a função de defender a coisa pública, não para o gestor público, mas sim para o cidadão, para a sociedade. Tanto na questão da abertura dos arquivos, quanto no que aconteceu na BN, na utilização da coisa pública com interesses privados – independentemente do valor finaceiro que estiver envolvido – na sua essência, é um ataque ao que é de todos, portanto, nós não podemos admitir isso.

Eu, como pessoa e como cidadão, não admito isso. Tenho uma função de ser guardião da coisa pública, como servidor público federal, portanto, não admito isso. E mesmo que de forma totalmente solitária, eu irei até o fim com isso. A improbidade acontecida no EDA em maio de 2009 não ficará impune, enquanto eu estiver pensante. Seria muito importantte que cada servidor público pensasse e agisse dessa forma. Seria também muito importante que cada cidadão pensasse assim, pois se criou uma mentalidade de que o servidor público é uma pessoa relapsa, preguiçosa, um marajá, melhor trocá-lo pela iniciativa privada. Se qualquer cidadão investigasse o que é a tal da iniciativa privada veria como é ruim, e como é prejudicial, com consequências ruins. Veria também que todas as mazelas que vivemos vêm dos interesses particulares vividos nas suas diversas vias, como na invasão da mentalidade privada na área pública, na invasão dos interesses particulares, corporativos, no que é de todos. Nós que queremos um mundo diferente, que queremos uma sociedade diferente, temos que brigar, e temos que gritar bem alto para o restante da população brasileira que uma coisa tem que ser preservada para que uma sociedade exista: o bem comum, o que é de todos, patrimônio público, serviços, acervos, documentos, construções. Sem um serviço público decente não haverá um país decente. Sem um servidor público decente não haverá um serviço público decente. O servidor público tem que se fazer respeitar, e cada cidadão tem que entender a importância do servidor público e do coletivo, saber que faz parte de uma sociedade.

Eu faço muita força para que os arquivos sejam ensolarados. Eles precisam ser ensolarados porque uma coisa que precisa existir no mundo, e vamos começar pelo nosso país – que já está bastante difícil – é uma coisa chamada justiça.