A violência e os seus corolários

Joana d’Arc Fernandes Ferraz

O mapa da violência

Em março de 2010, foi divulgado o Mapa da Violência no Brasil. Este estudo, elaborado pelo sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz, informa que o Brasil teve, em dez anos, mais de 512 mil assassinatos. Os últimos dados compilados, referentes ao ano de 2007, dizem que 117 brasileiros são assassinados todos os dias.  Um jovem negro sofre um risco 130% maior de vir a ser assassinado do que um jovem branco.

Na Paraíba, por exemplo, o risco de morte violenta para jovens negros é 1.189% maior do que para os jovens brancos. No entanto, independente do estado, os dados apontam que a violência tem como alvo principal os jovens, porque essa faixa etária continua sendo a mais afetada pela violência em todo o País. Em boa parte dos Estados, o fenômeno se destaca nas estatísticas: diminuiu o número de mortes por homicídio entre jovens brancos e aumentou entre os jovens negros. 

No que se refere ao Rio de Janeiro e às grandes metrópoles, percebe-se uma diminuição dos homicídios de crianças e adolescentes (de zero a 15 anos) e um aumento de homicídios entre jovens (de 15 a 24 anos).  O número de homicídios de jovens, no total, “foi crescendo ao longo do tempo, passando de menos 30% do total no início da década de 80 para perto de 40% no início da década atual”. Assim, os dados apresentados nos levam a concluir que houve um crescimento quantitativo de homicídios entre 1997 e 2003. Este crescimento “foi praticamente contínuo, passando de 14,3 mil para 19,7 mil, o que representou um aumento de 38,3% em escassos seis anos”, conforme aponta o Mapa da Violência.

A questão afeta todas as políticas sociais, pois a incidência maior de assassinatos em áreas de vulnerabilidade social revela um enfraquecimento de políticas públicas nesta área. Segundo Waiselfisz, as políticas nacionais de segurança pública priorizam as áreas mais ricas das grandes cidades, onde efetivamente a violência parece ter diminuído.

Assim, percebe-se que os assassinatos têm um caráter territorial, porque ocorrem com maior frequência nos territórios negligenciados pelo Estado e sem infraestrutura, segundo Waiselfisz (2010, p. 61). Vemos pelos dados que, com sua taxa declarada de 12 homicídios de crianças e adolescentes para cada 100 mil, o Brasil posiciona-se no quinto lugar entre os 91 países listados. Devemos notar que a maior parte dos países, exatamente 52, apresenta taxas abaixo de 1 em 100 mil crianças e adolescentes vítimas de agressão intencional. Também devemos apontar que 7 dos 10 países com maior número de vítimas pertencem à América Latina.

O relatório de 2010 da Anistia Internacional

A ação violenta da polícia, principalmente contra moradores de favelas no Rio de Janeiro e em São Paulo, também foi mencionada pela Anistia Internacional, no relatório de 2010, que foi divulgado em março de 2010.

A diferença entre o discurso das autoridades e a ação dos policiais foi ressaltada por Tim Cahill, representante da Anistia Internacional: “Há um vácuo entre o entendimento das autoridades de implementar reformas, garantir direitos e a implementação verdadeira e concreta. Esse [entendimento das autoridades] é sempre contrariado por interesses econômicos e políticos. O que nós vemos é que existe um discurso para a reforma, mas a implementação não ocorre”.


A furadeira e o fuzil

Em maio, o assassinato de Hélio Barreira Ribeiro, 46 anos, trabalhador de supermercado e morador do Morro do Andaraí, atingido pelas costas por um tiro de fuzil, disparado por um soldado do Bope, corroboram as análises do Mapa da Violência e da Anistia Internacional.

A justificativa da PM para a morte de Hélio foi de que a furadeira que empunhava  foi "confundida" com uma submetralhadora, e porque ele teria feito "movimento brusco". As ações violentas do Bope têm sido frequentes nos locais onde são implantadas as UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora).

Décadas de descaso

Os dados estatísticos, a ação violenta da polícia e o descaso do poder público sobre a realidade de extermínio da população pobre no Brasil, que já ultrapassa décadas, parecem nos apontar que não há um interesse efetivo na solução dessa questão. O que tem havido, efetivamente, é a manutenção do discurso da EXCEÇÃO. Se, nas décadas de 80 e 90 do século passado, o discurso da exceção referia-se a uma ação particular de determinados policiais, hoje, o alvo do discurso da exceção são os traficantes. Se, na chacina de Vigário Geral, em 29 de agosto de 1993, o discurso do poder público era de que esta ação não fazia parte da prática da corporação policial. Hoje, o alvo do discurso da exceção centra-se na necessidade de exterminar o tráfico de drogas, justificando qualquer ação violenta da polícia. Funda-se um estado de violência cuja regra é a afirmação da exceção, pois o que está subentendido no discurso que legitima toda ação violenta da polícia é a ação altruísta do Estado, que age no sentido de por fim à “guerra” contra o tráfico de drogas. Assim, a função “eficaz” do Estado hoje está diretamente vinculada à sua capacidade de reprimir, de policiar e até mesmo de executar aqueles que por qualquer motivo estejam entre o “mundo legal” e o “mundo ilegal”. O “mundo ilegal” não é um mundo abstrato, o “mundo ilegal” localiza-se geograficamente nas favelas. Fazem parte deste mundo todos que estão fora de onde se gesta a produção capitalista, aqueles que estão fracamente, ou perifericamente localizados no sistema, os operários, os desempregados e os pobres. Loïc Wacquant (2003), ao se referir à polícia implantada nos EUA, a partir da década de 90, afirma que o estado caritativo foi, aos poucos, sendo substituído pelo estado disciplinar ou penal. Embora, no Brasil, não tenhamos sequer chegado, de fato, ao estado caritativo, passamos cruelmente, também na década de 90, ao estado penal. Como vemos, tanto nos EUA como no Brasil, a ação da polícia é diferenciada. Neste ponto, encontramos nas áreas pobres, principalmente nas favelas, uma policia que, na maioria dos casos, não pretende zelar pela segurança das pessoas. O que é bastante compatível com a posição que os agentes da lei assumem diante do morador da favela, ao acreditar que eles não são pessoas. Mas, sim, criminosos ou coniventes com o crime e com o tráfico de drogas.