Plano Nacional de Direitos Humanos – PNDH-3
O Recuo do Planalto

Cecília Coimbra*

O PNDH-3 foi alterado por novo decreto presidencial. As forças políticas conservadoras que sempre determinam as decisões do Estado brasileiro venceram mais uma vez. O Decreto 7.037, de 21 de dezembro de 2009, que já não atendia a muitos anseios apresentados pelo movimento social por mais justiça e respeito aos direitos humanos, ficou ainda pior. As diretrizes e ações do Programa que foram criticadas pelos ruralistas, militares, pela Igreja Católica, ou pelos chefes da mídia foram modificadas ou revogadas. Esta é uma regressão histórica, um profundo equívoco político e mais um ponto negativo para o governo do país.  

O governo do presidente Lula, diante das pressões de setores conservadores e retrógrados, recua em nome da conciliação. Se é para conciliar, por que não atender também aos apelos da outra parte da sociedade? Conciliar não é capitular para o inimigo avançar. Acreditamos que mesmo grande parte dos liberais não concorda com tamanha capitulação. Esta escolha unilateral parece também uma opção eleitoreira. Afinal, mexer com interesses de grupos poderosos pode custar caro à eleição de 2010 e aos acordos firmados.

Milhares de cidadãs e cidadãos brasileiros e organizações da sociedade que participaram da elaboração do 3º Plano Nacional de Direitos Humanos – PNDH-3, e que se colocaram rapidamente em sua defesa foram ludibriados. Os interesses de poucos – muito poderosos – foram colocados acima dos interesses da maioria – pouco poderosa – que com certeza fez um enorme esforço para estudar, discutir, locomover-se para reuniões e conferências. Acreditaram que o processo participativo de construção do Programa seria suficiente para garantir que os direitos humanos de todas e todos se mantivessem acima dos interesses de poucos.

Segundo muitas opiniões, a decisão do governo federal pode ser legal, mas está longe de ser legítima: venceram as idéias daqueles que entendem que o Brasil deve continuar a ser um país de privilégios, desigual, racista, homofóbico e sexista; onde mulheres que praticam o aborto são criminalizadas e morrem por falta de atendimento; onde camponeses são mortos na luta pelo direito à terra; onde a orientação sexual é definidora se uma pessoa terá direito a construir uma família ou não; onde a diversidade religiosa do país é oprimida; onde o monopólio dos meios de comunicação dita as regras e viola direitos humanos em horário nobre como se tudo não passasse de uma peça de ficção.

A isto tudo, o Grupo Tortura Nunca Mais/RJ acrescenta a questão da Comissão Nacional da Verdade que, com uma série de reformulações, tornou-se, em realidade, uma grande mis-en-scène midiática, transformando-se em uma Comissão da Mentira. Esta última versão do PNDH-3, aprovada em 12 de maio de 2010, pelo Decreto 7.177, apresenta uma série de modificações.

No eixo orientador VI referente ao Direito à memória e à verdade, em especial nas duas últimas Diretrizes, há mudanças que mostram um profundo desprezo por nossa história, em nome de acordos, da conciliação nacional e da governabilidade.

Na Diretriz 23 “Reconhecimento da Memória e da Verdade como Direito Humano da Cidadania e do Dever do Estado” não houve modificação. Cabe, entretanto, apontar seu caráter antidemocrático e de negação à participação social. Desde o projeto inicial de 2009, propunha-se a criação de um grupo de trabalho para elaborar o projeto de lei que instituirá a Comissão Nacional da Verdade. Dentre os 06 membros que formam este grupo de trabalho, 05 são autoridades governamentais e somente 01 “representante da sociedade civil”, escolhido por uma dessas autoridades.

Na Diretriz 24 “Preservação da Memória Histórica e Construção Pública da Verdade” há duas graves mudanças que se referem às ações programáticas. A primeira, a letra “c – identificar e sinalizar locais públicos que serviram à repressão ditatorial, bem como locais onde foram ocultados corpos e restos mortais de perseguidos políticos” é substituída pela seguinte redação: “identificar e tornar pública as estruturas, os locais, as instituições e as circunstâncias relacionados à prática de violações de direitos humanos, suas eventuais ramificações nos diversos aparelhos estatais e na sociedade, bem como promover com base no acesso às informações, os meios e recursos necessários para a localização e identificação de corpos e restos mortais de desaparecidos políticos”. Ou seja, de uma linguagem clara e direta e se referindo ao período de repressão ditatorial, o novo texto floreia, parece ampliar a ação, mas sutil e perversamente retira o termo “repressão política”, substituindo-o por “prática de violações de direitos humanos”. Da mesma forma a identificação dos mortos e desaparecidos ocorrerá somente “com base no acesso às informações”.

A segunda mudança refere-se à letra “f – desenvolver programas e ações educativas, inclusive a produção de material didático pedagógico para ser utilizado pelos sistemas de educação básica e superior sobre o regime de 1964 – 1985 e sobre a resistência popular à repressão”. Este texto foi substituído por: “desenvolver programas e ações educativas, inclusive a produção de material didático-pedagógico para ser utilizado pelos sistemas de educação básica e superior sobre as graves violações de direitos humanos ocorridos no período fixado no artigo 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição de 1988”. Ou seja, substitui-se “regime de 1964-1985 e resistência popular à repressão” por “graves violações de direitos humanos no período de 18 de setembro de 1946 até a data da promulgação da Constituição (1988)”. Isto é o que está contido no art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição. O regime ditatorial de 1964 a 1985 fica totalmente diluído, nada se refere a ele; da mesma forma se escamoteia a responsabilidade do Estado brasileiro nos sequestros, prisões ilegais, torturas, assassinatos e ocultação de corpos. Esta mesma mudança verifica-se na Diretriz 25 “Modernização da Legislação Relacionada com Promoção do Direito à Memória e à Verdade, fortalecendo a Democracia”, em suas ações programáticas da letra d. Uma outra modificação ocorreu na letra “c – propor legislação de abrangência nacional proibindo que logradouros, atos e próprios nacionais e prédios públicos recebam nomes de pessoas que praticaram crimes de lesa-humanidade, bem como determinar a alteração de nomes que já tenham sido atribuídos” que passou a ter a seguinte redação: “fomentar, debater e divulgar informações no sentido de que logradouros, atos e próprios nacionais ou prédios públicos não recebam nomes de pessoas identificadas reconhecidamente como torturadores”. Ou seja, anula-se a proposta de “uma legislação nacional”, substituindo-a por “debates e divulgação de informações”. Da mesma forma, suaviza-se e limita-se os violadores de direitos humanos de “pessoas que praticaram crimes de lesa-humanidade” para “pessoas identificadas reconhecidamente como torturadores”. Mais uma vez o Estado brasileiro, mandante número um desses crimes contra a humanidade, fica de fora. A última parte desta letra c é retirada; ou seja, a determinação de alterar nomes de ruas, logradouros e prédios públicos etc., que indiquem nomes de pessoas comprometidas com a ditadura, é anulada. Longa luta de algumas entidades de direitos humanos como o GTNM/RJ para se dar nomes a ruas, escolas, creches etc., de companheiros mortos e desaparecidos políticos e retirar os nomes de membros do aparato de repressão que já existem em vários logradouros públicos.

Não ignoramos que a memória é um campo de lutas e que estas modificações no PNDH-3 com relação à Comissão da Verdade está fortalecendo uma certa história oficial, pois em momento algum se refere à ditadura civil-militar e a seu período histórico (1964-1985). Ela, simplesmente, desaparece.

Fortalece-se, com isso, a história única e verdadeira e as diferentes e múltiplas memórias daquele período de terror continuam em parte desconhecidas e, mesmo, demonizadas.

É como afirma Paulo Arantes: “Acresce que, além de abrandada, a ditadura começa também a encolher”. (“O que Resta da Ditadura”).

* Presidente do GTNM/RJ