Estado brasileiro anistia a tortura apesar da Constituição Federal e dos Acordos Internacionais

 

Por larga margem de votos, o Supremo Tribunal Federal decidiu que a Lei da Anistia de 1979 anistiou todos os crimes praticados por agentes do Estado, inclusive a tortura. A decisão responde a uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, apresentada pela Ordem dos Advogados do Brasil. A decisão é a interpretação dominante no Supremo e, como ele é a corte suprema do país, esta é a resposta do Judiciário a essa arguição.

Boa parte da população brasileira talvez desconheça a história do Supremo e se surpreenda com o absurdo da resposta: (1) considerar que a Lei de 1979 anistiou um crime não anistiável de acordo com constituição nacional, assim como por vários acordos internacionais assinados pelas autoridades brasileiras; (2) e, ao mesmo tempo, considerá-la uma lei ainda válida.

Uma análise dos argumentos que fundamentam os votos favoráveis a tal decisão seria muito longa, mas certamente ressaltaria o seu caráter espetacularmente absurdo. Vale, entretanto, destacar alguns deles. Para começar, o absurdo reside no fato jurídico maior de que a anistia à tortura não é, de forma alguma, mencionada no texto da lei em questão. Em se tratando de anistia a um crime como a tortura, um crime imprescritivo e de lesa-humanidade, esta referência deve ser explícita, mas isso não acontece.

Votos favoráveis procuraram amparar-se na idéia de que tal anistia estaria incluída na expressão “anistia a crimes políticos e conexos”. Desta maneira, estabeleceram um absurdo maior ainda. Tendo em vista que (1) o crime de tortura não é – nacional ou internacionalmente – reconhecido como crime político e (2) nem um dos critérios jurídicos de conexidade pode ser invocado no caso dos crimes capazes de serem enquadrados na Lei de Anistia de 1979.

Em defesa da decisão absurda, foi usado também um argumento mais do que infeliz. Os torturadores estariam cobertos pela Lei de Anistia de 1979, porque ela teria sido uma “anistia ampla, geral e irrestrita”.  De um lado, isso não é verdade porque a Lei de 1979 estabeleceu várias restrições à anistia. De outro lado, esta expressão foi o lema maior da campanha pela anistia dos que lutavam contra a ditadura, jamais a favor dos torturadores. A proposta dos movimentos sociais que lutava por uma anistia ampla, geral e irrestrita perdeu por cinco votos no Congresso Nacional à época. Ganhou a anistia proposta pela ditadura.

A nenhum magistrado do Supremo é dado o direito de ignorar esse fato. Em consequência, o uso totalmente distorcido desta expressão pode ser considerado mais do que um absurdo. Para os que lutaram contra a ditadura e por uma “anistia ampla, geral e irrestrita”, trata-se de um verdadeiro acinte, de um total desconhecimento histórico... 

Vale destacar ainda a fabulosa interpretação da Lei de Anistia como um acordo pela reconciliação nacional e pelo esquecimento dos tempos da ditadura. A qualificação mais adequada para este absurdo parece ser a de delírio. Quais teriam sido as partes desse acordo? Um acordo ditado pelo governo militar?

Mas este não é o aspecto mais importante deste elemento da decisão do Supremo. O mais incrivelmente absurdo é afirmar que esta Lei de Anistia – como qualquer lei de anistia – determinaria ou levaria ao esquecimento dos fatos que resultaram na anistia. A anistia não leva ao esquecimento. Ao contrário, a anistia marca para todo o sempre, na memória de toda a população, os fatos anistiados.

Por isso, um fantasma paira acima de todos os absurdos e do absurdo geral da decisão dos ministros do Supremo: um medo que não tem fim, por mais que façam os herdeiros e novos aliados da ditadura militar. Este medo explica a reação diante do resultado (em primeira instância) de uma Ação Declaratória responsabilizando o comandante do DOI-CODI de São Paulo, entre 1970 e 1974, o coronel do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra, pela tortura de três presos políticos: Criméia Alice Schimidt de Almeida, Maria Amélia de Almeida Teles e César Augusto Teles.

A reação teve início com manifestações públicas de solidariedade de militares ao coronel Ustra. Destaque para uma manifestação oficial: um comunicado da Secretaria do Exército (do Ministério da Defesa) exaltando os feitos do golpe militar de 1964 e dos governos militares que o seguiram. A única autoridade afetada por isso foi o então Ministro da Defesa, José Viegas Filho, que cometeu o “erro” de posicionar-se contra o comunicado.

Pouco mais tarde, em parecer emitido em recurso à mesma ação declaratória, o Advogado Geral da União, Antonio Dias Tófoli, defendeu que, em razão da Lei da Anistia, ninguém poderia sequer ser declarado responsável por torturas durante a ditadura militar; mesmo não criminalmente. E mais: como o responsável era funcionário público, deveria ser defendido pela União.

A nomeação do então Advogado Geral da União já havia sido objeto de certo espanto: o que havia de mais relevante em seu currículo jurídico era sua condição de advogado do partido do governo (PT) durante pleitos eleitorais. Mas o cargo é de confiança, diretamente ligado ao presidente da República, de quem, na prática, ele é o advogado maior. E ele foi nomeado pelo presidente.

E, assim, o jovem Dias Tófoli pode apresentar, em nome da União e do presidente, seu parecer: uma defesa ampla, geral e irrestrita dos militares declarados responsáveis por torturas. Pouco depois (tendo este parecer como peça principal de seu currículo jurídico), ele foi indicado pelo presidente da República para ministro do Supremo Tribunal Federal. Em um mesmo dia, sua indicação foi aceita pela Comissão de Justiça e pelo plenário do Senado.

Queiramos ou não, a Arguição sobre a Lei da Anistia encaixou-se perfeitamente neste contexto de reação a toda e qualquer iniciativa que coloque em questão a ditadura militar, mesmo que simplesmente através do simples esclarecimento (não criminal) de fatos e crimes hediondos. A não abertura de todos os arquivos da época da ditadura e esta decisão do Supremo são alguns dos eventos maiores que indicam a força da aliança entre os atuais dirigentes militares e o atual governo.

A decisão do Supremo e as ações e reações governamentais comprovam o poder e o medo das classes dirigentes, militar e civil. A importância deste medo e a força da defesa da ditadura militar pelos dirigentes civis podem ser avaliadas pelo fato de que as assessorias de imprensa de três dos atuais candidatos à Presidência da República – Dilma Rousseff, José Serra e Marina Silva – informaram que eles não fariam declarações sobre a Lei de Anistia, mas eram favoráveis à interpretação vitoriosa no Supremo. Ver sobre o assunto (http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u727048.shtml).

Até quando os dirigentes brasileiros esperam poder esconder a história do país, impedir a afirmação de outras memórias nacionais? Não pode haver dúvida entre essa posição do Estado e a generalização hoje da tortura no Brasil, entre presos e pobres em geral. Até quando, para isso, os principais dirigentes civis e militares do Brasil pretendem afrontar a constituição nacional? Até quando pretendem afrontar os acordos internacionais a favor dos direitos humanos e contra a tortura?




Juiz sugere ao STF ação penal contra Tuma

O juiz Ali Mazloum, titular da 7.ª Vara Criminal Federal em São Paulo, encaminhou no dia 26/06/2010, ao Supremo Tribunal Federal (STF) ofício de 12 páginas por meio do qual sustenta a necessidade de abertura de ação penal contra o senador Romeu Tuma (PTB-SP) por suposto crime de ocultação de cadáver do morto político Flávio Carvalho Molina.

Capturado, torturado e assassinado há 38 anos por agentes do Destacamento de Operações de Informações/Centro de Operações de Defesa Interna (Doi-Codi), o guerrilheiro teve a certidão de óbito expedida com nome falso. Para Mazloum, Tuma sabia do caso.

O juiz rejeitou manifestação do Ministério Público Federal que no dia 11 propôs arquivamento do inquérito 5988/2008, instaurado pela Polícia Federal com base em representação dos procuradores da República Eugênia Augusta Gonzaga Fávero e Marlon Alberto Weichert.

Ao pedir arquivamento, a procuradora Cristiane Bacha Ganzian Casagrande, que atua perante a 7.ª Vara Federal, destacou "a ocorrência da prescrição punitiva estatal e a ausência de elementos suficientes para fundamentar a acusação dos delitos em exame".

Mas o juiz considera que o crime de ocultação de cadáver não está ao alcance da Lei de Anistia e não prescreveu. Para ele, a Justiça tem tempo hábil para impor punição ao senador que, no auge do regime de exceção, comandava o Departamento Estadual de Ordem Política e Social (Dops). É a primeira vez que a Justiça Federal adota essa interpretação para decidir sobre casos atribuídos à ditadura.

No expediente ao STF, o juiz anexou um ofício datado de 7 de agosto de 1978, assinado por Tuma na condição de chefe do Dops. Endereçado à 2.ª Auditoria Militar da Marinha, Tuma comunicou ao juiz auditor Carlos Augusto Cardoso de Moraes Rego sobre "certidão de óbito expedida em nome de Álvaro Lopes Peralta, nome falso de Flávio Carvalho Molina, que usava ainda os codinomes Fernando, André e Armando". Para Mazloum, o ofício 245/78, subscrito por Tuma, comprova que o senador sabia que Molina, dado como desaparecido, estava morto.


Restos mortais

Integrante do Movimento de Libertação Popular (Molipo), dissidência da Ação de Libertação Nacional (ALN), Molina foi preso em novembro de 1971. Mas somente em 2005, por meio de exames periciais, o corpo foi identificado. Após uma busca que se arrastou por décadas, a família o localizou em meio a 1.500 ossadas, depositadas em vala comum do cemitério Dom Bosco, em Perus.

Os restos mortais do guerrilheiro somente foram sepultados no Rio, em 2005. "A consumação do crime de ocultação de cadáver cessou com a identificação da vítima e seu sepultamento em lugar definitivo, fato que seu deu em 2005", afirma.

Mazloum considera que a ocultação ficou caracterizada e que esse tipo de delito não pode ser enquadrado na Lei de Anistia. "O crime de ocultação de cadáver não sofreu interrupção", diz. Ele ampara sua decisão em jurisprudências de tribunais superiores. "Trata-se de crime permanente que subsiste até o instante em que o corpo é descoberto, pois ocultar é esconder, sendo irrelevante o tempo em que o cadáver estava escondido."

Para o juiz, "os fatos investigados amoldam-se perfeitamente à hipótese constitucional da imprescritibilidade estabelecida pela Constituição de 1988". A prescrição, se aplicada ao caso, ocorreria apenas em 2013.

O juiz assevera que as autoridades conheciam a verdadeira identidade do morto "Sabiam que não se tratava de Álvaro, mas sim de Flávio. Torna-se imperioso concluir que o crime de ocultação de cadáver, por sua natureza permanente, teve início em novembro de 1971. Eclodiu por motivos político-ideológicos, foi praticado por grupos armados, que agiram em afronta à ordem constitucional." No ofício, Mazloum anota que a competência para apuração dos fatos é da Justiça Federal porque o crime de ocultação de cadáver não é previsto no Código Penal Militar.

TORTURA É CRIME INAFIANÇÁVEL!



Do texto de Fausto Macedo
 O Estado de S.Paulo (27/05/10)