LITERATURA

Um tempo para não esquecer: 1964-1985

Autor: Rubim Santos Leão de Aquino
Editora: Achiamé

A história oficial que nos tem sido apresentada passa pelo crivo dos “vencedores”, pela imposição de uma verdade dos acontecimentos considerados neutros, objetivos, assépticos e invariáveis. O que queremos afirmar – e o que nosso querido Aquino aqui neste livro vem nos lembrar – é que a esta história oficial há que se agregar outras, muitas outras.

Este nosso antigo e sempre companheiro de lutas, nesta competente pesquisa que vem sendo realizada há mais de 20 anos, aponta para estas outras histórias. Histórias que poucos sabem; histórias que vêm sendo silenciadas; histórias sobre o terrorismo de Estado que se abateu sobre nosso país em um passado recente e que, ainda hoje, produzem efeitos.

Histórias de “um tempo para não esquecer” onde, de forma didática, nos vão sendo apresentados acontecimentos que mostram como a tortura e seus mais variados métodos foram institucionalizados em nosso país. Como através da famigerada “Escola das Américas” produziram-se agentes confiáveis aos regimes de terror que se implantaram, nos anos de 1960 e 1970, em grande parte de nossa América Latina. Histórias que nos mostram como, após o golpe civil-militar de 1964, foi sendo implementado e fortalecido um cruel e eficiente sistema nacional de informações e contra-informações.

Aquino, de forma crua e visceral, vai descortinando alguns dos 212 centros oficiais e clandestinos de tortura e morte criados, em especial, após o “golpe dentro do golpe”, o AI-5, de 13 de dezembro de 1968 que implantou a grande noite em nosso país. Além de listar estes principais centros institucionalizados de terror, vai dando nome aos envolvidos direta e indiretamente com o funcionamento de tais centros. Da mesma forma, nos traz alguns centros secundários – Clínica Morumbi (Paraná), Batalhão Paissandu (Ilha das Flores/RJ), dentre outros e seus responsáveis. E, pasmem, Aquino nos aponta vários centros clandestinos de tortura e morte e alguns de seus algozes. Espalhados por todo o Brasil e pouquíssimo conhecidos, passam diante de nossos olhos o Cenimar de São Conrado (RJ), a Casa de Itapevi (SP), a Casa dos Horrores (Fortaleza), a Fazenda 31 de março (SP), a Casa Azul (Marabá, no Pará), a Casa da Morte (Petrópolis, no RJ), a Fazendinha (Alagoinhas, na Bahia), dentre outros.

Corajoso e com informações inéditas, este livro traz também, pela primeira vez, uma listagem de cerca de 500 pessoas envolvidas direta e indiretamente com o gigantesco aparato de repressão que se formou em nosso país. Dela fazem parte também alguns médicos legistas que, apoiando e respaldando o terrorismo de Estado, corroboraram com seus atestados de necropsia e óbito as mentirosas versões da ditadura sobre as mortes dos opositores políticos: em tiroteio, atropelamento ou por suicídio. Alguns outros médicos apontados neste livro, como Amílcar Lobo, davam “assistência técnica” aos torturadores: “atendiam” os presos políticos antes, durante e depois das sessões de tortura para “acompanhar” a resistência de cada um deles.

Por fim, nesta gigantesca pesquisa há um capítulo sobre os civis e militares agraciados com a mais alta Comenda do Exército brasileiro, a Medalha do Pacificador que, à época da ditadura civil-militar, era particularmente endereçada a muitos daqueles que fielmente serviram ao regime de terror.

Livro necessário e indispensável para que possamos saber um pouco mais sobre tão terrível período e os efeitos que hoje vem provocando na sociedade brasileira. Livro que vai na contramão da história oficial e que é um alerta contra as mais variadas formas de tortura, tão banalizadas e, mesmo, aplaudidas por vários segmentos sociais nos dias de hoje. Livro que é um brado contra a ignominiosa prática da tortura também defendida por alguns como um “mal menor” e, por vezes, necessário.

Livro, portanto, que não fortalece o dogma da punição, mas nos alerta sobre o silêncio e a produção do esquecimento tão habilmente fabricados pela história oficial e por todos os governos civis após 1985 em nosso país.

Peter Pal Pelbart em seu livro “Vida Capital: ensaios sobre biopolítica” (2003) nos fala sobre como algumas vidas, em nome de outras vidas, podem e devem ser manipuladas, descartadas, monitoradas, encarceradas, exterminadas; podem ter seus chamados direitos suspensos e, mesmo, eliminados. Diz ele: “A questão não é como se pôde cometer crimes tão hediondos contra seres humanos, mas por quais dispositivos jurídicos e políticos seres humanos puderam ser privados de seus direitos e prerrogativas a ponto de que qualquer ato cometido contra eles deixar de aparecer como delituoso”.

Esta pesquisa nos remete a essas problematizações: pensar o mundo que hoje habitamos e como enfraquecer as forças que nos constrangem e que cada vez mais estão presentes também em nós. Para isto, pensamos ser fundamental conhecer um pouco de nossa história, de nossas resistências tão estigmatizadas, criminalizadas e, mesmo, negadas.

(Resumo do Prefácio “Lembra, lembrar, lembrar...” de Cecília Coimbra para o referido livro)

Lançamento durante a entrega da 22ª Medalha Chico Mendes de Resistência



Apesar de vocês – Oposição à ditadura brasileira nos Estados Unidos, 1964-1985

Autor: James N. Green
Tradução: S. Duarte

A paixão pelo Brasil transparece desde as primeiras linhas de Apesar de vocês, livro com que o norte-americano James N. Green apresenta o resultado de décadas de pesquisa. O rigor metodológico e a monumental documentação reunida não o impedem de realizar um engajado tributo às pessoas que, muitas vezes movidas pelo puro sentimento de solidariedade, combateram nos Estados Unidos as atrocidades da ditadura militar brasileira.

Analisando as relações Brasil-Estados Unidos entre as décadas de 1960 e 1970, o autor adota como marco inicial a gênese do golpe de 1964, claramente estimulado pela diplomacia norte-americana e legitimada em tempo recorde pelo presidente Lyndon Johnson. Green demonstra que as progressivas limitações às liberdades individuais no Brasil geraram veementes protestos nos meios universitários, religiosos, políticos e artísticos dos Estados Unidos.

Apesar de vocês se detém, com especial atenção, sobre a rede de denúncias que, intensificada com o recrudescimento da repressão no Brasil, conseguiu levar até o Congresso norte-americano a discussão sobre a continuidade da ajuda militar e financeira à ditadura, lançando as bases do movimento internacional pela defesa dos direitos humanos.



Livro avalia o triste legado da ditadura militar na vida brasileira

O que resta da ditadura: a exceção brasileira

Autores: Edson Teles e Vladimir Safatle
Editora: Boitempo Editorial

A obra O que resta da ditadura: a exceção brasileira, organizada por Edson Teles e Vladimir Safatle, reúne uma série de ensaios que esquadrinham o legado deixado pelo regime militar na estrutura jurídica, nas práticas políticas, na literatura, na violência institucionalizada e em outras esferas da vida social brasileira. 

 “Quem controla o passado, controla o futuro”. A frase de 1984, que serve de epígrafe a este livro, indica claramente o tamanho do que está em jogo quando a questão é elaborar o passado. Todos conhecemos a temática clássica das sociedades destinadas a repetir o que são incapazes de elaborar; sociedades que já definem de antemão seu futuro a partir do momento que fazem de tudo para agir como se nada soubessem a respeito do que se acumulou às suas costas. A história é implacável na quantidade de exemplos de estruturas sociais que se desagregam exatamente por lutar compulsivamente para esquecer as raízes dos fracassos que atormentam o presente.”

“... apresentamos aqui um conjunto de artigos que procuram avaliar múltiplos aspectos deste legado da ditadura. A perenidade institucional e jurídica dos aparatos econômicos e securitários criados na ditadura militar são analisados. Da mesma forma, a aberração brasileira em relação ao direito internacional sobre crimes contra a humanidade é aqui discutida, juntamente com o trauma social resultante da anulação do direito à memória. Há ainda artigos que visam analisar o legado político da ditadura, assim como as tentativas de deslegitimar o direito à violência contra um Estado ditatorial ilegal. Avaliações históricas sobre a maneira como as Forças Armadas relacionaram-se com o problema da anistia e reflexões sobre a literatura diante do dever à memória completam o quadro.”

“... A história, no entanto, tem maneiras cruéis de ensinar o verdadeiro tamanho das batalhas.”



A podridão das ditaduras militares na América do Sul

Operação Condor – O Sequestro dos Uruguaios

Autor: Luis Claudio Cunha
Editora: L&PM Editores


Luis Cláudio Cunha além de jornalista e repórter é exímio literato. Seu livro prende a atenção o tempo todo, ao mesmo tempo que “nós” conhecedores das torturas e suplícios perpetrados pelos militares nas prisões dos Doi-Codis, da Oban e dos DEOPS do Tiradentes e de tantos outros, sabemos que tudo foi real e verdadeiramente cruel.

Parece, aos olhos dos leigos, que foram histórias inventadas, mas a realidade é outra. São verdadeiros filmes de terror que mostram bem claramente o sadismo e os crimes dos militares. Deve ter sido muito difícil escrever tal livro já que nós, às vezes, somos obrigados a parar a leitura tal o horror e dor que nos causam.

Ele fala com detalhes do sequestro de Lílian Celibati e Luiz Universindo Diaz entregues aos algozes uruguaios por militares e policiais brasileiros no RGS.

Fala da Operação Condor, o abutre cujos olhos e garras nos intimidam. Muito sangue, lágrimas e dor são narrados. Muitas mortes e desaparecimentos sob os olhos do abutre que parece que ri, mas que nos amedronta. Qualquer pessoa que queira fazer pesquisa, conhecer a história das ditaduras militares na América Latina e saber toda a crueldade dos militares no poder, tem uma fonte rica em detalhes e muito bem escrita.

“Tudo aquilo aconteceu tempos atrás no sul do continente
É necessário lembrar para resgatar o sentido correto das ações
É preciso contar para recuperar o sentido das palavras
Lembrar e contar
Em nome da dignidade
Por causa da liberdade”.



Resistência atrás das grades

Autor: Maurice Politi
Editora: Editorial Plena

Existem livros e músicas que jamais podem deixar de ser conhecidos por todos os que amam a literatura, a música, as artes. Nós, militantes políticos, não podemos desconhecer livros e documentos sobre a ditadura militar no Brasil e no mundo.

Entre muitos livros, citaremos o de Maurice Politi A Resistência atrás das grades. Condenado a dez anos de reclusão, primeiro no estado de São Paulo, passou por oito presídios sofrendo toda sorte de repressão e tortura. A desfaçatez e o cinismo não fizeram esmorecer a sua luta e a de seus companheiros.

Sua luta começou muito cedo, politizado pelo movimento estudantil. Comoestrangeiro, Politi era sempreameaçado de expatriação e, consequentemente, de expulsão. Ficou triste por ter que deixar o país que havia escolhido para ser sua Pátria. Voltou ao Brasil em 1979, beneficiado pela Lei de Anistia, quando recebeu sua nacionalidade brasileira. Por contingência de trabalho foi enviado para o Peru, México, Armênia e Argentina. Esses dois exílios, um forçado, outro pelo sucesso em seu trabalho, o impediram de conviver com os companheiros. Muitos traumas, dúvidas, interrogações. Para Politi, a publicação desse diário é uma forma de compensar muita falta e omissão. Entretanto, não concordamos com isto. Felizmente, várias pessoas o incentivaram a publicar esse diário que é para nós um alento e uma tristeza ao mesmo tempo, ao tomarmos conhecimento desses fatos dos anos de chumbo.

Fato marcante no livro mostra como a greve de fome chegou até as redações de jornais internacionais: “Prisioneiros em greve de fome podem morrer logo”. Os militares tiveram que convocar a imprensa para explicar o movimento que estava sendo oficialmente ignorado. É preciso compreender a nossa posição de resistência às arbitrariedades, à nossa dignidade revolucionária.



Rio de Cantos 1000 - Fotografando e exaltando a cidade carioca

Autor: Custódio Coimbra
Editora: Réptil Editora



O repórter fotográfico Custódio Coimbra que trabalha em O Globo há 20 anos reuniu em livro e em exposição as belas fotos que fez da cidade. Para ele, a cidade do Rio de Janeiro faz o carioca ser diferente: “A vista do horizonte faz do carioca um ser mais aberto, mais livre”. Custódio faz parte do cotidiano do carioca em suas muitas primeiras páginas de O Globo, nos últimos dez anos, registrando o cotidiano carioca com olhar “improvável”. Talvez por isso, seja conhecido, entre outras coisas, como um dos maiores exaltadores da cidade do Rio na fotografia. Seus cliques estão no imaginário carioca.

Até 24 de abril poderemos ver as belezas e também as tristezas desta “cidade maravilhosa”, na Galeria Tempo, à Av. Atlântica 1782, Loja E. Copacabana. Através de suas lentes, Custódio consegue clicar no momento exato, registrando as excentricidades da natureza e das pessoas. Dezoito das 113 imagens do livro Rio de Cantos 1000, estão expostas.

 



Cesare Battisti relata memórias autobiográficas em novo livro

Ser Bambu (1951-1964)

Um homem em fuga permanente, com rotina e próximo destino incertos. Medo, solidão e insegurança são sentimentos comuns em sua atormentada saga, e, assim, a escrita surge como um bálsamo para os seus fantasmas interiores. Com o tempo à sua disposição, deposita no papel seus pensamentos, ideias e a esperança de um dia voltar a ser um homem livre.

“Sempre fui fascinado pelo bambu. É impressionante a quantidade de coisas que dá para fazer com ele. O que eu mais gostava era, antes que ele fosse convertido em casas ou bazucas, de vagar entre os caules nodosos e fortes, mais altos que o céu e mais espertos que o vento, que mesmo com suas violentas rajadas ainda não dera jeito de quebrá-lo. Pobre vento, por possante e forte que seja, para o bambu não passa de música. Ele aproveita suas rajadas para se enfeitar como em dia de festa.”

O autor

Nascido em 1954 em Sermoneta, Itália, Cesare Battisti envolveu-se desde cedo com os ideais marxistas. Filho de pai comunista e mãe católica, iniciou sua militância pela extrema esquerda em 1968. Vinte anos depois, foi condenado à prisão perpétua pela justiça de Milão. Em 1990, partiu para a França, onde o então governo vigente, Miterrand evitou sua extradição – a proteção francesa lhe permitiu viver ali por quinze anos, durante os quais iniciou sua trajetória literária. Com o fim do governo Miterrand, a França decretou sua extradição. Em 2007, Battisti, fugiu novamente e foi preso no Rio de Janeiro. Atualmente detido em Brasília, aguarda decisão do governo sobre sua situação. Além de Ser bambu, Battisti escreveu também Minha fuga sem fim, publicado pela Martins Martins Fontes em 2008.

De Felipe Augusto dos Santos Ribe




Virgílio Gomes da Silva – De Retirante a Guerrilheiro

Autores: Edileuza Pimenta e Edson Teixeira
Editora: Plen

O livro conta em detalhes a história de Virgílio Gomes da Silva, menino pobre, retirante do Sertão que tinha na mente a importância política, a liderança sindical e a militância partidária (filiou-se ao PCB) que poderiam transformar o mundo. Afastou-se do PCB em virtude de sua política não ofensiva contra a ditadura militar. A cisão levou-o a ligar-se a Carlos Marighella.

No sequestro do embaixador americano, Virgilio teve ação atuante e uma forte liderança. Foi preso e barbaramente torturado. Na página 23, vê-se a imagem transfigurada de Virgílio após várias sessões de tortura, afogamento e cadeira de dragão.

É preciso que não esqueçamos de sua figura, muitas vezes esquecida pelos companheiros. Foi preso, barbaramente torturado e condenado à morte pela ditadura. Deu a vida pela liberdade. Foi, sem dúvida, um guerrilheiro revolucionário. É importante conhecer Virgilio: sua luta, suas vicissitudes e, por fim, sua morte por tortura e seu desaparecimento.

 


Trilogia sobre a Soja

Geografias da Soja – BR-163 – Fronteiras em Mutação
Geografias da Soja II – A Territorialidade do Capital
Geografias da Soja III – Novas Fronteiras da Técnica no Vale do Araguaia

Estes três livros sobre a cultura da soja no Brasil é um trabalho primoroso de Júlia Adão Bernardes e outros professores de Geografia da Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ. Seguindo uma linha dialética entre espaço e técnica, implantada por Milton Santos, descreve a chegada da soja nos cerrados brasileiros, estados nordestinos e Tocantins a partir dos anos 70, a transformação das terras de índios e camponeses e a afirmação do capitalismo agroindustrial nestas regiões com o aumento da concentração de riquezas e de mobilidade social.

Ampla pesquisa coletiva, sobremaneira crítica, dá nova interpretação da globalização no campo, frente à velocidade dos avanços tecnológicos que se encontram com as demandas e lutas sociais. Mostra o avanço do agronegócio sem esconder as perdas sociais.                                                                                                                                               

“As concepções da Guerrilha do Araguaia, no início dos anos 70, que se propunha a disseminar a idéia da revolução armada a partir do campo e a posterior construção de um Estado socialista, entravam em conflito com as visões da Teologia da Libertação. Entretanto, ambas objetivavam eliminar as graves tensões e injustiças na região, e os confrontos para impedir o massacre dos mais fracos resultaram em operações militares que deixaram marcas e traumas inesquecíveis. Conforme assinala Martins (1982), o capital não se expande sem levar o germen da destruição.”

José Bertholdo Brandão Filho
Geografias da Soja III. (p. 129)







Poesia

É ainda madrugada De Chico Mendes a Silveira

Para Chico Mendes e Sebastião Silveira

 

É ainda de madrugada:
cílios umedecidos
ainda lutam para abrir,
os pés pisam o chão,
as folhas secas.
A lamparina
ilumina o caminho,
as mãos vão riscando
troncos
sangrando.
Não para matar:
transfusão da vida,
sangue branco tornando vermelho.
Ameaçadas,
pessoas fortes como os troncos
se movimentam
balas nos peitos,
tombam corpos
caídos na terra:
sangue vermelho vai tornar-se
branco.
Mais troncos nascerão.

É ainda madrugada,
os ossos gelados rangem
na coluna calejada
que se levanta.
Os pés se calçam
de sapatos duros
pisam o chão
desafiam o concreto
em palácios de cimento
e aço
óleo, pano, fogo e ferro,
o corpo
tornando-se bagaço
levanta-se,
e só tomba para ensinar
outros corpos a levantar

É ainda madrugada,
a pouca água toca a pele
acorda o corpo com seu choque
térmico.
Os pés na sandália
encontram a terra
mais uma vez
sereno gelando
dentro dos ossos
peso nos olhos
mãos de madeira
reviram a terra
milho, soja, cana
leite, carne, ovos
reviram a terra
que não é nossa.
Os pés firmes enraízam
só tombam para mostrar
que o mundo pode ser de todos

É ainda madrugada.
os pés se vestem
mãos se armam
miram no alvo da noite
que insiste em cair
sobre seus ombros
a certeza da vida
rasga com mais insistência
esse mundo de morte.
Os pés furtivos ganham a rua
buscando o mundo,
outro mundo.
Só tombam depois
de outras mãos boas de mira
terem nascido.

É ainda madrugada,
de corpo aberto,
vestido de força,
prepara-se para abrir a porta,
os pés nos tênis
tomam rumos.
Mãos embrulhadas em papéis
se preparam
para ouvir e falar
mais mentiras que verdades.
A madeira da cadeira
pesa
as tintas dos papéis
pesam
os pés permanecem bem
firmes.
Ouvidos e bocas continuam
se relacionando,
não se calam,
e só tombam com a possibilidade
de construírem mais verdades
que mentiras.

É ainda madrugada:
pés de chinelo
saem às ruas
desgovernados,
não têm para onde ir,
seu espaço dado
no mundo
é o caminho sem rumo
pintado com o sangue
respingado dos corpos
de tantos filhos, filhas
mães e pais.
Na certeza de que este
não é o caminho que quer,
pés de chinelo só tombam
quando outras mãos de pedra
continuarem
a construir o rumo do caminho.

É ainda de madrugada:
pés de botas
pisam convés e quartéis,
olhos feitos para mirar
para o próprio peito,
recusam.
Bocas e mãos miram
os dedos que se apontam
contra eles:
chibatas, choques,
água, fogo e prego,
e os pés de chumbo só tombam
quando mais um tijolo
é tirado do castelo.

É ainda madrugada,
e todos os olhos se preparam
para enfrentar o dia,
mas na rua ainda é noite.
Os olhos se esforçam em acreditar
que podem se acostumar
sem traumas
com a claridade,
enquanto os braços se esticam
prontos a rasgar
a lona que encobre a noite,
pois é ainda madrugada.

 

Rafael Maul, 2009