O resgate da memória no espaço
Juliana de Oliveira Carlos

Em julho desse ano foi lançado na Argentina o livro Memorias en la ciudad – señales del terrorismo de Estado en Buenos Aires. Na capa, a foto de uma senhora (com seu pañuelo) que observa o Rio da Prata. O rio se transformou, nos últimos anos, em local para recordar os desaparecidos políticos, muitos do quais foram nele jogados para “eliminar seus corpos, suas identidades e seus projetos políticos”. Atrás dessa bonita capa se encontra um bonito projeto político: oferecer ao leitor uma série de caminhos para habitar e percorrer a cidade de Buenos Aires de modo reflexivo. Para isso a equipe responsável pelo livro se propôs a resgatar a historicidade dos caminhos cotidianos, recolher os vestígios do terrorismo de Estado em Buenos Aires e destacar a história suprimida de cada lugar de onde a última ditadura militar condensou seus núcleos de disseminação do terror, com o objetivo de que esses lugares sejam uma ocasião para a memória.

Memorias en la ciudad é fruto do esforço da equipe que compõe o projeto Memoria Abierta, uma ação coordenada de entidades de defesa dos direitos humanos da Argentina, criada em 2000 com o objetivo de trabalhar por uma memória social que incida na cultura política nacional, contribuindo para a consolidação da convivência democrática de forma a prevenir o autoritarismo em todas as suas formas.

A obra está dividida em 9 setores que agrupam 48 bairros da cidade. Em cada setor há um mapa no qual se assinala a localização exata dos espaços de habitação ou atividade política de militantes, locais de sequestros, centros clandestinos de detenção e também formas de homenagem que foram criadas em reconhecimento à luta de grupos e pessoas (iniciativas que aconteceram com mais frequência nos últimos dez anos), como monumentos, esculturas, placas, murais, nomes de auditórios, salas, praças, ruas, centros culturais, centros de saúde etc.

Essas homenagens, quer provenham de familiares ou companheiros de militância das vítimas ou de organizações da sociedade civil, coincidem em um propósito: colocar na esfera pública e de maneira destacada um dispositivo que permita evocar as pessoas desaparecidas ou assassinadas para além do tempo em que seus promotores possam exercitar ou assegurar essa lembrança. Para além da homenagem em si mesma e do reconhecimento da dignidade das vítimas, o que está em questão é a capacidade potencial de atuar como suporte e como propagadores de memória coletiva.

Trata-se, portanto, de uma construção da memória coletiva, uma construção política que, como o próprio texto de introdução do livro ressalta, é perpassada de disputas por seus significados. Afinal, “El recuerdo y La necesidad de expresar en forma abierta y visible lo que las vidas de las personas evocadas significaron en un tiempo histórico cercano refieren a un debate de sentidos políticos que es significativo para el presente y por lo mismo está atravesado por el conflicto”.

A nós fica essa bonita lição sobre as seleções e os usos da memória coletiva. Encarar e preservar a memória de um passado dolorido e da luta significa impedir que os caminhos até agora percorridos sejam sistematicamente apagados, significa tomar posse de uma história que nos pertence para elaborar, a partir dela, o futuro que queremos. Essa tarefa passa, necessariamente, pela defesa de valores de respeito aos direitos humanos e pela exposição e reafirmação do nosso “NUNCA MAIS”.

 


Que Acontece nas Prisões Italianas?

Carlos Alberto Lungarzo
Anistia Internacional (USA)

Se Cesare Battisti fosse finalmente extraditado, ele seria destinado, com certeza, a uma prisão de alta segurança pelo resto de sua vida. A cínica condição colocada por alguns dos juízes que votaram em favor da extradição, lembrando orgulhosamente que as tradições brasileiras não permitem recolher um prisioneiro por mais de 30 anos, será, para as autoridades italianas, algo menos que papel higiênico de baixa qualidade. O ex ministro Mastella, o ministro La Russa e outros, já disseram aos familiares de supostas vítimas do condenado que “aquele palhaço passará a vida toda na cárcere”.

Isto pode ser uma questão puramente formal, porque, se tudo desse errado, na pior das alternativas (que eu não ouso nem pensar neste momento), Battisti teria a têmpera de não dar aos abutres daqui o prazer de entregá-lo vivo nem aos urubus da lá o prazer de caçá-lo. De qualquer maneira, é importante que todos saibam como são as condições de um preso na Itália atual.

Prisão Perpétua

O nome ergástolo, que é dado na Itália à punição por reclusão até o fim da vida, não foi adotado por acaso. É o mesmo nome que usaram os medievais, quando a língua oficial da nobreza era o latim, que por sua vez tirou esta palavra do grego: “ergástolo” quer dizer trabalho forçado, que era o castigo ao qual estavam submetidos, até pouco tempo atrás, os presos por vida. Note-se que na Itália é frequente usar nomes medievais e não modernos para os fatos relativos à vida prisional: a própria prisão é chamada “galere” inclusive em linguagem culta, não apenas como gíria, em homenagem aos tempos em que os presos morriam remando nos barcos (galere) sob as chicotadas dos mestres. Esta homenagem à Idade Média nas prisões italianas poderia ser apenas um anacronismo de linguagem, mas não é: pelo contrário, é um sintoma de que o sentimento em relação com os internos é o mesmo, e de que as condições sob as quais vivem são quase iguais. De fato, são um pouco menos horríveis porque um choque elétrico é menos doloroso e mais reversível que um esquartejamento.

Não é verdade que a condenação por vida repugne os sentimentos humanitários unicamente nos países mais avançados. Inclusive sociedades com longa tradição de violência e intolerância têm abolido esta macabra filha doentia da pena de morte. É verdade que países laicos humanistas, com extremo liberalismo e naturalismo, como Noruega, a máxima pena por qualquer crime não pode passar de 21 anos. No entanto, mesmo em estados que foram muito diferentes, e praticaram até épocas recentes grandes genocídios, como a Croácia, a Espanha e a Servia, os movimentos humanitários conseguiram colocar as penas de prisão por baixo de um limite de 30 ou ainda 25 anos, como em Portugal.

As autoridades italianas costumam dizer que a prisão por vida é apenas “virtual”, porque um prisioneiro que tenha cumprido 26 anos de prisão com boa conduta pode ganhar a liberdade. Mas, isso é falso. Existe uma eventualidade de que isso aconteça, mas os próprios advogados de prisioneiros desconhecem casos concretos em que tenha sido aplicado este benefício, e apenas podem dizer que ouviram falar. De maneira nenhuma consiste numa regra, e segundo os boatos, as duas ou três vezes em que esta cláusula foi aplicada, foram necessários complexos trâmites e enormes esperas, desde que, obviamente, os casos de liberação aos 26 anos tenham realmente existido.

Por exemplo, Antonino Marano, internado na Cárcere dell'Ucciardone, em Palermo, Sicília, já cumpriu 43 anos de prisão sem qualquer esperança de ver-se livre algum dia. Casos que excedem os 30 anos são muito comuns, e estão relatados numa carta que os condenados à prisão perpétua enviaram a Lula depois da outorga de refúgio a Battisti.

O Regime 41-bis

Itália é muito diferente do resto dos países formalmente democráticos no tratamento do crime político. Em todos esses estados, o crime político (mesmo que sua definição ofereça sempre algumas dificuldades sutis) é aquele que se faz por alguma convicção e não por interesse pessoal e, portanto, é tratado com certa e maior gentileza que o crime comum. Até no Brasil, com sua tradição de barões, militares e escravocratas, o crime político merece algum trato diferencial, como se deriva da lei 9474/97, tão debatida nestes dias.

Na Itália é exatamente o contrário. Os mafiosos, salvo quando perdem a amizade com as autoridades, podem sair livres logo. Para um ladrão comum é mais difícil. Já um preso político pode passar anos num sistema brutal pelo mesmo crime.

O regime 41-bis tomou seu nome do artigo 41-bis do Ato Administrativo Prisional 354 (AAP354), que permite aplicar pelo Ministro de Justiça ou do Interior uma forma de disciplina prisional que deixaria maravilhado a Meister Eymerich, o famoso inquisidor alemão do século 15. Antes de exagerar em nossa indignação, pensemos, porém, que uma selvagem e sádica forma de prisão semelhante ao 41-bis se aplica no Brasil com o nome de Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), que foi calorosamente defendida pelo crítico advogado Thomas Bastos (o primeiro Ministro de Justiça do presidente Lula) e resistiu a todas as críticas de organizações de Direitos Humanos.

Talvez seja justo dizer que este RDD é mais parecido ao americano e, na prática, menos brutal que o italiano, e se aplica com menos frequência. O AAP354 foi publicado no 26 de julho de 1975, uma época em que as Brigadas Vermelhas já eram ativas, mas ainda não tinham cometido os atos tipicamente terroristas de 1978, já sobre uma nova liderança da que sempre se supôs que tinha sido infiltrada pela polícia.

Nessa data, a primeira fase das BV estava quase acabada, pois seus principais núcleos tinham sido desmontados, e ainda não tinha surgido Prima Linea (o que aconteceria no ano seguinte), que foi novo pesadelo da repressão. O grande terrorismo (os stragi) produzido pelo operativo Gladio já existia desde 1969. Não é necessário dizer que o 41-bis não visava punir este tipo de terrorismo, pois seus realizadores não foram nem mesmo submetidos à justiça comum, salvo, nos últimos anos, alguns poucos que foram judicialmente poupados (salvo Vincenzo Vinciguerra, um terrorista fascista que assassinou três policiais e ganhou o ódio da corporação).

Outro detalhe interessante é que desde 1975 até 1992, um período relativamente longo, nunca as autoridades italianas se interessaram por aplicar este sistema à Máfia. Só em junho desse ano, quando foi assassinado o juiz Giovanni Falcone, o establishment entendeu que as sociedades criminosas tinham saído de sua habitual função histórica de ser parte complementar do sistema, e o sistema prisional do 41-bis foi aplicado a eles.

Portanto, quando o sistema foi inventado, em 1975, o objetivo não era combater nem a máfia, nem o terrorismo fascista, mesmo que fosse parcialmente. O sistema estava dedicado exclusivamente aos grupos revolucionários e aos movimentos sociais, que no ano de 1974 tinham estado enormemente ativos.

É fácil descrever o sistema 41-bis. Ele mantém o preso numa cela estreita, na qual pode ser sempre vigiado desde fora, sem absolutamente nenhum direito de praticar qualquer forma de recreação, atividade cultural, comunicar-se com outras pessoas mesmo por carta, telefone ou qualquer outro meio. Seu único “privilégio” é receber alimentação, atenção médica (se o prisioneiro morrer logo acaba a diversão de juízes, policiais e carcereiros), e uma visita por mês que pode variar de 10 a 30 minutos, através de um intercomunicador e vários painéis de vidro, de um familiar de primeiro grau.

Seria ridículo dizer que este sistema é desumano, porque animal nenhum vive nessas condições. O sistema é infrabiológico, um invento de mentes sádicas e maniqueístas que reproduzem as torturas medievais.

Repúdio ao 41-bis

Em Novembro de 2007, a Corte Européia de Direitos Humanos condenou a Itália pelas condições brutais de prisão sob o sistema 41-bis. Este fato é notável, pois sendo a Itália principal base da NATO, os organismos europeus tendem a preservá-la de críticas. Por unanimidade, a corte decidiu que o 41-bis violava os artigos 6 e 8 de Convenção Européia dos DH (o direito a ter um julgamento limpo e o direito à vida familiar e privada). Entretanto, a condenação não fala em torturas. Pela data da manifestação da Corte é quase certo que a Itália estaria executando ações de tortura proxy em benefício da “guerra ao terror”, e o organismo europeu evitou levantar problemas políticos.

Entretanto, mesmo nos Estados Unidos, onde o tratamento aos imigrantes ilegais é muito duro, alguns juízes das barras (equivalentes da OAB) de Califórnia e Texas se recusaram a entregar à Itália criminosos de alta periculosidade. Uma juíza de Los Angeles, que firma com a sigla D. D. Sitgraves, considerou que o tratamento do sistema 41-bis é uma forma sistemática e contínua de tortura.

Tortura

Em tempos recentes, a tortura tem sido associada com personalidades patológicas, e especialmente com sujeitos afetados por transtornos sexuais. No documentário experimental La Torture feito por um grupo de jovens franceses em 1972, para resumir informações sobre os torturadores de Argélia, se destaca este aspecto: O torturador é quase sempre místico, identifica o sexo com a maldade, e sua forma mais comum de relacionamento sexual é o estupro, pois isso lhe permite satisfazer-se fingindo de está “punindo” a sexualidade. O fato encontrou confirmação em algumas poucas pesquisas que puderam fazer-se com os torturadores da ditadura argentina. A personalidade do moderno torturador é compatível com a do torturador inquisitorial: seu maior objeto de ódio são pessoas fracas, mulheres, crianças, gays e membros de outras raças.

Apesar disso, mesmo nos países católicos como França, Espanha e Portugal, a tortura tem sido colocada no código penal. Na Europa, em diversas datas, a tortura foi considerada crime específico (independente de lesões, morte ou estupro), nos pequenos estados balcânicos, na Áustria, Bélgica, Dinamarca, Estônia, Islândia, Letônia, Eslovênia, Eslováquia, todos os países escandinavos, a totalidade do Reino Unido, Holanda, Polônia, Alemanha, Suíça, Suécia, Hungria e Turquia. Também nos pequenos estados como Luxemburgo.

A Itália, como todos os países europeus assinou a convenção de Estrasburgo de 1987 sobre prevenção da tortura. Entretanto, ao ser um dos poucos países da região que não a considera crime, punir diretamente os torturadores não é possível.

Em 2008, os lugares onde se comprovaram mais frequentes atos de tortura aplicados contra detentos provisórios (pessoas detidas por falta de documentos, vadiagem ou pequenos furtos) são Gênova, Turim, Treviso, Velletri, Florença, Forli, Frosinone (a prisão onde esteve Battisti), Lecce, Livorno, Milano, Padua e Peruggia.

Raramente se relatou o uso de instrumentos especiais de tortura. Em geral, os tormentos aplicados são afogamento, chutes, pancadas e impactos com objetos quaisquer (panelas, garrafas etc.) Os casos que conduzem à morte são investigados. Atualmente não há, porém, nenhum incriminado.

Segundo o informativo, “Horizontes restritos”, mesmo entre os que não estão sujeitos ao sistema 41-bis, o índice de suicídios é alto. De janeiro de 2000 a março de 2009, houve 501 suicídios entre internos de todo o país. Não se sabe que proporção corresponde a presos políticos.

Aproveito para agradecer a Susanna Marietti, da Sociedade Italiana Antígone, por seu assessoramento na redação desta matéria.



Das trevas à luz: verdade e justiça no Uruguai

Patricia Silveira Rivero*

Uruguai viveu o seu período de terror e escuridão promovido pelos militares e civis que o apoiaram desde 1971, quando foi declarado o golpe de Estado, até 1983, ano em que se inicia a transição para a democracia. Durante esses anos o país foi governado por uma feroz ditadura militar responsável pela morte, encarceramento e desaparecimento de um grande número de uruguaios pertencentes a diferentes movimentos sociais e sindicais, assim como aos partidos democráticos e de esquerda. Os crimes de Estado foram justificados por razões políticas da mesma forma que os casos de genocídios foram por motivos religiosos ou étnicos.

No total foram mais de 6 mil presos políticos, o que determinou que Uruguai fosse o país com maior proporção de presos e presas políticas do mundo em relação ao número de habitantes. Além da prisão massiva e prolongada, a tortura foi o método aplicado de forma generalizada nos casos de encarceramento político: choques elétricos, afogamento, pau de arara, chutes, abusos sexuais, simulações de fuzilamento e aplicação de drogas foram algumas das técnicas de tortura aplicadas.     

Segundo dados da Comissão para a Paz, foram registrados 172 presos desaparecidos (132 homens e 40 mulheres sendo três menores de idade). Entre estes não são contabilizados os 31 corpos não identificados que apareceram nas praias uruguaias entre 1975 e 1979. Existiu cinco casos de cidadãos argentinos detidos no Uruguai e desaparecidos na República Argentina, como 129 uruguaios que desapareceram naquele país. Nove teriam desaparecido no Chile, um na Bolívia e um na Colômbia, confirmando as dimensões regionais das operações repressivas. No caso dos desaparecidos, investigações posteriores apontam que houve detenções simultâneas e traslados grupais clandestinos entre países, alguns destes acabando nos chamados “voos da morte” nos quais os prisioneiros eram jogados de aviões ao mar. Estas operações eram ordenadas pelo Comando Geral da Força Aérea por solicitação do Serviço de Informação e Defesa (SID).

Segundo estudiosos dos direitos humanos, houve diversas modalidades de delitos de lesa humanidade cometidos neste período em Uruguai: 1) presos desaparecidos, relacionados àqueles que foram previamente detidos pela força ou mediante sequestro por agentes estatais não identificados e que os levaram a centros clandestinos de reclusão; 2) assassinados desaparecidos, que não foram detidos, mas executados em via pública e depois tiveram seus corpos desaparecidos; 3) corpos não identificados aparecidos nas praias uruguaias, em que o ocultamento dos corpos acontece no mar; 4) desaparecidos temporários, que eram levados como prisioneiros, perdendo-se toda referência em relação a seu destino, até que apareciam em algum estabelecimento penal legal. Houve em todos esses casos omissão de delito e negação do crime por parte do Estado. Até hoje, foram registrados no Uruguai oito prisões clandestinas e sete oficiais, mas muitas outras também na Argentina e no Chile. Dos 26 casos em que há informações de que foram presos e desapareceram posteriormente, até agora só foi possível encontrar os restos de três pessoas no Uruguai, isto durante as investigações levadas adiante pelo governo do Presidente Tabaré Vasquez, entre 2004 e 2009. Na Argentina, dos 126 casos, encontraram-se os restos mortais de 15 pessoas, seis delas repatriadas e sepultadas recentemente no Uruguai. Passados mais de 35 anos do golpe de Estado, ainda existe impunidade.    

A impunidade destes crimes no Uruguai se deve, do ponto de vista político, aos acordos realizados na saída do período ditatorial que culminam na aprovação da Lei 15.848 de 22 de dezembro de 1986, lei também chamada pomposamente de Pretensão Punitiva do Estado. Esse acordo político e a isenção de qualquer responsabilidade penal dos funcionários militares e policiais são expressos no seu Art. 1°. “Se reconhece que, como consequência da lógica dos fatos originados pelo acordo realizado entre partidos políticos e as Forças Armadas, em agosto de 1984, e aos efeitos de concluir a transição para a plena vigência da ordem constitucional, tem caducado o exercício da pretensão punitiva do Estado a respeito dos delitos cometidos até 1° de março de 1985 pelos funcionários militares e policiais, equiparados e assimilados, por móveis políticos ou em ocasião do cumprimento de suas funções e em ocasião de ações ordenadas pelos comandos que atuaram durante o período de fato.”

O Art. 4° da mesma lei subordina abertamente as decisões do Poder Judiciário às do Poder Executivo, violando as disposições constitucionais. Este expõe que “Sem prejuízo do disposto nos artigos precedentes, o juiz da causa remeterá ao Poder Executivo testemunhos das denúncias apresentadas até a data de promulgação da presente lei referentes às atuações relativas a pessoas pressupostamente detidas em operações militares ou policiais e desaparecidas, assim como de menores pressupostamente sequestrados em similares condições.

O Poder Executivo disporá de imediato das investigações destinadas ao esclarecimento destes fatos. O Poder Executivo dentro do prazo de cento e vinte dias a partir da comunicação judicial da denúncia dará conta aos denunciantes do resultado destas investigações e colocará para o seu conhecimento a informação “recolhida”.

Pouco mais de dois anos depois de aprovada a lei, no dia 16 de abril de 1989, foi realizado um Referendo como recurso para sua revogação. Para esse Referendum era necessário obter as assinaturas de 25% dos registrados no colégio eleitoral.  Foram conseguidas graças à mobilização popular, apesar do medo que produzia na população a presença dos militares e a recente saída do período ditatorial, além de todas as dificuldades que isto significava.

Porém, os votos pela revogação da lei na época chegaram a 42,5 não alcançando a maioria absoluta que requeria a votação. Naquela oportunidade afirmou-se que imperou o medo à ameaça que ainda representavam as Forças Armadas na vida política do país.

Vinte anos depois, sob condições totalmente diferentes, juntaram-se as assinaturas, desta vez de 10% do eleitorado, para realizar um plebiscito de reforma constitucional que permitisse a anulação da lei de caducidade. Diferente da revogaç ão, a anulação da lei significava que os casos que já tinham sido absolvidos pela justiça anterior ou pelo poder executivo de governos democráticos anteriores aos do Dr. Tabaré Vasquez, pudessem ser julgadas novamente. Além disto, se por um lado, já não imperava o medo à ditadura nem ao poder das Forças Armadas, por outro, o clima político de mobilização sobre esse tema era bem menos efervescente que na época do Referendum de 1989. Apesar de se haver obtido e até ultrapassado as assinaturas necessárias para chegar ao plebiscito, não se conseguiu chegar à sua aprovação.

Em 25 de outubro do presente ano de 2009, junto com as eleições nacionais foi realizado o plebiscito, que chegou a um resultado de aproximadamente 48% de votos a favor da anulação e 52% pela não anulação da lei de caducidade. Portanto, uma vez mais nas urnas e mediante o exercício de um dos mecanismos da democracia direta, perdia-se a possibilidade de acabar com a impunidade dos militares que cometeram crimes atrozes na época da ditadura em Uruguai.

No entanto, nesses vinte anos entre o referendum e o plebiscito, muitos coisas aconteceram. Durante os governos anteriores ao governo de esquerda do Dr. Tabaré Vasquez foi aplicado o artigo 4º da lei para absolver sistematicamente os militares incriminados. No entanto, a partir do governo do Dr. Tabaré Vasquez, primeiro governo de esquerda de Uruguai, foi decidida a não aplicabilidade da lei para diversos casos, dando início a um período de julgamento de alguns militares que encabeçaram o processo de terrorismo de Estado no país, dentre eles do ex-ditador Gregório Alvarez, último militar a comandar a ditadura. No mesmo mês de outubro em que foram realizadas as eleições e o plebiscito, Alvarez foi levado à prisão. Também iniciou-se as investigações sobre o paradeiro dos corpos dos desaparecidos, com o encontro de três corpos antes mencionados, e as escavações que indicaram os lugares onde se localizam alguns dos cemitérios clandestinos.

Na mesma semana em que foi realizado o plebiscito, a Suprema Corte de Justiça resolveu declarar a lei da caducidade anticonstitucional no caso específico que estava sendo julgado, que era o da morte da militante comunista Nibia Sabalsagaray, permitindo que se continue as indagações neste caso e levantando um importante precedente para outros casos. Dois argumentos são fundamentais para justificar a inconstitucionalidade: o fato de que a lei trata os militares como um grupo especial que fica isento de responsabilização pelos crimes, a partir de um pacto político realizado entre duas forças que impedem a aplicação de artigos da Constituição como os referidos à soberania da Nação e das leis, que não podem ficar subordinadas a nenhum acordo político circunstancial. O outro fato é de que a lei de caducidade no seu Art. 4º está violando o Art. 233 da Constituição que estabelece que o Poder Judicial seja exercido pela Suprema Corte de Justiça e demais órgãos judiciais, excluindo expressamente o Poder Executivo e Legislativo destas funções. Portanto, a soberania do judiciário estaria sendo violada de duas formas: uma, subordinando a lei a um acordo político, outra, subordinando a decisão sobre os casos que irão a julgamento à autoridade de outros poderes que não o judiciário.

Daqui em diante, ainda há a percorrer um longo caminho que permita a continuidade das políticas em prol dos direitos humanos que neste caso significa o andamento das investigações e o julgamento dos responsáveis pelos crimes cometidos durante o período ditatorial. Para avançar nesse trajeto será necessária a continuidade dos movimentos sociais envolvidos, como o Grupo de Familiares de Detidos e Desaparecidos, a Comissão para a Paz, o Serviço de Paz e Justiça e outros e da sociedade como um todo através do conjunto de movimentos sociais e sindicais e de partidos políticos democráticos, assim como o aprofundamento dos mecanismos democráticos das instituições de justiça e de decisão no país.

A nova vitória eleitoral do partido de esquerda Frente Ampla coloca uma esperança na continuidade das investigações e julgamentos dos casos particulares, pois a maioria parlamentar desta força pode vir a contribuir para a mudança de leis que se opõem de forma flagrante aos princípios constitucionais. O caminho que possa abrir e iluminar o período escuro no qual mergulhou o país, até alcançar VERDADE e JUSTIÇA ainda está por vir.


1- Código Penal de la República Oriental del Uruguay, Edicoes Fundación de Cultura Universitaria, 1999.

*Professora do Núcleo de Pesquisa em Direitos Humanos – NEPP-DH/UFRJ

* Agradeço a pesquisa jornalística realizada pelo Dr. Daniel Debellis. Este artigo está baseado em matérias publicadas no semanário Brecha (Montevidéu, Uruguai), da autoria de Álvaro Rico intitulada “Represión y exterminio de uruguayos em la dictadura” (Brecha, 9 de outubro de 2009), de Agustín Ferrari intitulada “1989-2009, “Dos referendos en la mira” (Brecha, 16 de outubro de 2009) e de Walter Pernas intitulada “Histórico fallo de la SCJ contra la impunidad” (Brecha, 22 de outubro de 2009).