A pena faz-de-conta

A transição da ditadura militar à “redemocratização” instalou entre nós um paradoxo. Durante a “abertura” havia uma confluência dos movimentos sociais e dos partidos políticos progressistas contra a truculência e o autoritarismo do regime militar. Leonel Brizola elegeu-se um pouco nessa perspectiva. Naquele momento, em nossa agenda, denunciávamos e condenávamos as múltiplas atrocidades policiais do regime, da tortura às execuções sumárias, passando pelos desaparecimentos, pelas detenções arbitrárias, pelas restrições à concessão de habeas corpus, pela publica confessio (quem não se lembra dos “arrependidos”?) e por tantas outras dolorosas liturgias punitivas. Os desejos libertários daquela conjuntura, contudo, passaram a ser sistematicamente neutralizados por uma campanha que, de sua fase inicial – na ingenuidade do uso alternativo do poder punitivo – até ao mais recente modelo – quantas velocidades merece o novo inimigo? – teve sempre como proposta uma insistente demanda por mais pena.

Paralelamente, a implantação do empreendimento neoliberal ia produzindo seus desastrosos efeitos sociais. Nossos medos, disseminados intensamente pela mídia, construíam outras pontes para os velhos medos. Fábricas fechavam suas portas; penitenciárias eram paroxisticamente inauguradas. O governo da cidade neoliberal precisa de doses crescentes de poder punitivo, e já não apenas para o controle da massa marginalizada pelo próprio modelo econômico; agora já existe uma indústria do controle do crime com interesses diretos em políticas criminais e em teorias, criminológicas ou jurídicas, que enlacem à estabilidade (criminalização da pobreza; teorias legitimantes da pena etc) a produtividade (inexorabilidade das execuções; penas muito longas ou, melhor ainda, indeterminadas etc) de seus negócios.

As milícias estão para essa indústria como os vendedores de morro para as drogas lícitas dos grandes laboratórios. A pena é essencialmente imposição de sofrimento; ainda que dotado de certo sentido jurídico, o essencial é aquele “fazer sofrer” do qual Nietzsche falava. Entre os velhos medos escravistas, a prevenção se chamava vigilância. Mas caberia reeditar os preconceitos contra o lumpesinato no capitalismo sem trabalho? A demanda por pena não conhece limites, já que a pena é sempre um dispositivo reprodutor de sofrimento (ao sofrimento na vítima se acresce o sofrimento no culpado). Estamos caminhando, à razão de um aumento anual em torno de 10%, para 500.000 presos. Um espetáculo novo ingressou nos programas da televisão: a prisão de ricaços ou de políticos (a combinação eleva a audiência). Como diria Pavarini, para cada ricaço preso, mil jovens pobres encarcerados, mas a prova está feita: o sistema é igualitário, e não seletivo.

Na contramão dos desejos libertários – alguns dos quais inscritos nessa Constituição que soprou as velinhas dos 20 com o rosto marcado por cirurgias plásticas – a demanda por pena legitima o vigilantismo big-brother do sistema penal neoliberal. Aí está o paradoxo. As execuções sumárias, as balas perdidas, a tortura, os desaparecimentos, as detenções arbitrárias, tudo continua acontecendo, porém agora já não despertam indignação. Ao contrário, todas as restrições possíveis à concessão de habeas corpus, tal como abertamente fazia o AI-5, são saudadas pela mídia. A delação teve invertido seu estatuto ético. No direito penal, que se refundou modernamente como contenção do poder punitivo absolutista que está na alma do Estado de polícia, contribuições teóricas pretendem inverter sua função, pondo-o a serviço da dinamização do poder punitivo (e, portanto, do solapamento do Estado de direito).

A proibição é mercantilizável, e o capital vídeo-financeiro percebeu-o e explorou-o mais que qualquer outro. Também no âmbito das ciências sociais, muitas contribuições trataram de conferir governamentabilidade ao sistema penal. Emoções punitivas ressurgiram intensamente após o final da ditadura e foram incorporadas por diversos movimentos sociais e partidos políticos, mesmo progressistas. Todas as revoluções ocorreram contra agências do sistema penal; todos os golpes de estado tiveram a colaboração de agências do sistema penal. Mas de repente a pena invadiu os nichos da despolitização pós-moderna, da ecologia ao feminismo.

Assistíamos, e ainda estamos assistindo, ao maior encarceramento da história da humanidade, incorporando novos ingredientes (como a legitimação da negatividade preventiva, outorgando-se à neutralização do condenado um valor funcional) e assumindo novas formas (como o campo dos imigrantes ilegais). Talvez por isso seja tão importante a infinita sobrevida do positivismo criminológico no senso comum entusiasticamente difundido pela mídia. Faz de conta que tudo isso não é político. Faz de conta que aumentar uma pena influencia a realidade, além da simples expansão no sofrimento do mundo. Faz de conta que todas as tiranias não foram construídas e que todas as opressões não foram sustentadas com a pena.

Nilo Batista
Professor titular de direito penal da Universidade Federal do Rio de Janeiro
e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Presidente do Instituto Carioca de Criminologia