Tortura Ampla, Geral e Irrestrita

O movimento pela anistia lutou por uma anistia ampla, geral e irrestrita. Essa anistia não saiu. A Lei da Anistia, de 1979, foi o resultado de muita luta e também de negociações, no quadro definido pela chamada “democracia relativa” do governo do General Geisel e prosseguida pelo seu herdeiro, General Figueiredo. Foi uma anistia restrita: por exemplo, ela não concedeu vários de seus benefícios a militares que se opuseram ao golpe de 1964 e, depois, à ditadura militar.
O caráter restrito da Anistia de 1979 evidentemente nada tem a ver com a não anistia da tortura, mas a tortura não foi anistiada. A tortura era amplamente (não tanto quanto hoje, mas amplamente também) praticada nas delegacias e prisões do Estado; ou em outros locais, sob o comando de agentes do Estado, mesmo quando financiada por recursos privados. Os que se opunham à ditadura militar, os que lutavam pela anistia ampla, geral e irrestrita denunciavam (como hoje denunciamos) a prática da tortura.
A Lei de 1979 foi adotada ainda sob regime militar, mas não anistiou a tortura. O governo e o congresso, ainda em tempo de ditadura militar, não fizeram isso por respeito às normas internacionais? Por algum resquício de sentimento ético ou moral? Por puro oportunismo? Pela ilusão de que seriam necessários alguns séculos para que a prática da tortura durante a ditadura militar fosse diretamente questionada? Podemos discutir isso, mas impossível discutir seriamente, com argumentos jurídicos ou políticos, se a Lei da Anistia anistiou ou não a tortura.
Após a promulgação da Lei da Anistia, ideólogos, simples funcionários da ditadura militar e oportunistas de outros matizes lançaram a idéia de que a tortura estaria anistiada com a inclusão, na Lei, da anistia a “crimes políticos e conexos”. A alegação é simplesmente ridícula, dado que a tortura não é, juridicamente, em parte nenhuma deste planeta, considerada crime político; e, nem por brincadeira, seria aceitável que a tortura estivesse indicada numa lei como “crime conexo”.
Além disso, se por um milagre do demônio, aparecesse na Lei da Anistia de 1979 um artigo que anistiasse a tortura, esta lei seria ilegal, não teria valor. Não teria valor, inclusive, para o período sobre o qual esta lei se refere, porque, segundo as normas internacionais (acordos assinados pelo governo brasileiro) e a própria constituição do Brasil (ou o que é assim chamado) a tortura é um crime de caráter imprescritível e que não pode ser anistiado.
Do ponto de vista estritamente jurídico, parece tudo uma horrorosa brincadeira, um trote cruel. Infelizmente, isso combina com o atual governo. Um dos atuais ministros conta em seu imbatível currículo ter sido o “líder da bancada do governo” no Supremo Tribunal Federal (o título lhe foi atribuído pelo ilustre jornalista e Medalha Chico Mendes Jânio de Freitas). Ao mesmo tempo, outros ministros resolveram perguntar ao Supremo se a Lei de 1979 anistiou os torturadores. O Supremo? E se o Supremo responder como respondeu à argüição de inconstitucionalidade do Plano Collor: a Lei de 1979 pode não ter anistiado a tortura, mas esse entendimento é indispensável à governabilidade.
E tem o famoso parecer da Advocacia Geral da União sobre a defesa, pela União, do Coronel Brilhante Ustra. O coronel foi declarado torturador, na Justiça, por uma Ação Declaratória. E o presidente da República? Inacreditável! Ele diz que não tem parecer sobre a questão porque a questão está na Justiça. E está mesmo, mas a Justiça lhe pediu – na forma devida – o seu parecer, o parecer do presidente da República: isto é, pediu o parecer da Advocacia Geral da União. E este parecer foi dado: defesa ampla, geral e irrestrita dos torturadores, sob o argumento de que eles eram (como são os de agora) funcionários da União, agindo em defesa do Estado. Um detalhe: de acordo com o parecer do advogado do presidente, abrir arquivos que possam comprometer estes funcionários estaria fora de questão.
Em conclusão, considerando

  1. a prática atual nas delegacias, prisões, quartéis e cantos escuros em todos os cantos,
  2. as conclusões dos relatórios das Nações Unidas e da Anistia Internacional sobre maus tratos, tortura e execuções sumárias no Brasil,
  3. as posições e pareceres governamentais recentemente proferidos sobre estas questões e
  4. a não abertura dos arquivos (e levantamento dos arquivos destruídos) que podem esclarecer estas questões,

não há como negar: o atual governo não toma nenhuma providência eficaz contra a tortura hoje e não tem nem respeito pelos que foram torturados durante a ditadura militar.

Sergio Silva
Professor da UNICAMP

TORTURA NO EXÉRCITO

No início de novembro deste ano de 2008, o jornal “O Globo” publicou matéria sobre um adolescente que procurou a polícia para dar queixa de ter sido torturado por militares. O adolescente declarou ter sido flagrado pelos militares após ter pulado o muro de um quartel da Vila Militar do Exército, em Realengo, Rio de Janeiro, e estar fumando maconha. O jornal apresenta foto das costas do adolescente. A foto parece indicar graves queimaduras. Há pouco tempo, a Mídia noticiou que outros militares teriam entregado vários jovens a uma quadrilha de traficantes. Os militares declararam que esperavam que a quadrilha “desse apenas uma lição” aos jovens que os haviam desacatado. Os jovens foram torturados até a morte.

Essas notícias aparecem de vez em quando, A Mídia não indica nenhum acompanhamento sistemático das violências praticadas por policiais e militares. Também não se conhece nenhum acompanhamento semelhante e minimamente eficaz feito por qualquer autoridade governamental. Os únicos resultados conhecidos são os dos relatórios de organizações internacionais públicas ou privadas. Neles, o Brasil aparece entre os campeões mundiais de execuções sumárias e tortura. A maioria da população brasileira não lê estes relatórios, mas sabe o que acontece: os maus tratos, a tortura e as execuções sumárias generalizadas. Enquanto a população brasileira não tomar partido contra a tortura, os torturadores serão protegidos e a tortura continuará.