Crime, Território e Política

O debate sobre as milícias ganhou as ruas do Rio. A principal razão do crescimento destes grupos no estado, com crescente força política nos legislativos estadual e municipais, é justamente a postura condescendente adotada por muitos dos que deveriam combatê-los. Em uma defesa ideológica totalmente inadequada, alegou-se que as milícias representavam um “mal menor” e que, diante da falta de policiamento e da precariedade da segurança pública, a ação desses grupos seria preferível ao poder dos traficantes. No entanto, a CPI das milícias concluiu que em 65% das comunidades que hoje estão sob o controle dos milicianos não havia antes atividade de tráfico de drogas. Em locais onde as milícias são menores, ainda sem braços políticos e com maior limitação econômica, o mercado ilegal de entorpecentes continua a existir.
As leis estabelecidas em lugares onde o Estado se mostra ausente não são votadas na Assembléia Legislativa. O “tribunal” que julga os conflitos ocorridos nesses espaços nada tem a ver com o judiciário. Isso vale tanto para as áreas dominadas pelas milícias quanto para aquelas em que facções criminosas controlam o varejo das drogas ilícitas. E esse complexo domínio de território envolve a vida de, aproximadamente, um terço da população do Rio de Janeiro, que fica muitas vezes sem ter a quem recorrer.
As milícias são compostas por agentes públicos que afirmam seu poder alegando serem representantes da lei. Reafirmam a figura do xerife, valorizando a ostentação da carteira funcional, do distintivo e da arma oficial. Mesmo em plena atividade criminosa, se apresentam como integrantes do Estado, tirando proveito de apelos morais como o fim das drogas, das badernas, dos assaltos e dos roubos. Em troca dessa suposta tranqüilidade impõem um preço. “Eu lhe protejo de mim mesmo”, ou seja, o meio de persuasão é a capacidade de terror que a própria milícia produz. Quem não aceita é vítima da barbárie.
O objetivo final é o lucro, obtido através de atividades ilícitas ocorridas no vácuo do poder público. Mas não se trata de um Estado paralelo, e sim de um Estado leiloado, que atende a interesses particulares. Uma vez controlada a região, as milícias passam a impor aos moradores um comércio de serviços ilegais, como gatonet, gás, água, transporte alternativo e “segurança” – sempre mediante cobranças de taxas. Em diversas regiões, também praticam a especulação imobiliária, arrecadando altos percentuais sobre a venda de imóveis pertencentes a moradores.
Dois indiciados por chefiar milícias na região de Jacarepaguá declararam à CPI que autoridades da segurança pública do governo estadual anterior fizeram campanha eleitoral em áreas reconhecidamente dominadas por esses grupos, e se elegeram parlamentares.
A CPI das milícias concluiu seus trabalhos vencendo a batalha pedagógica de entendimento do que elas representam para o Rio de Janeiro. Chefes milicianos começam a ser presos, a publicidade das ações contra esses grupos criminosos está nas ruas, braços econômicos começam a ser quebrados. Esse conjunto de avanços pode dar sustentação a proposições legislativas que criem instrumentos legais para reforçar a responsabilidade do Estado e da sociedade no enfrentamento as milícias.
É preciso discutir a relação entre Estado, governabilidade, território e soberania a fim de redefinir a concepção de segurança pública – uma tarefa que não pode mais ser tratada como caso de polícia. É caso de política!
Nas regiões pobres, o poder público se faz presente apenas por meio da repressão. Não há escolas, postos de saúde e políticas sociais para a juventude. A lógica da segurança pública é a da ditadura militar, da busca de inimigos, em uma reafirmação da lógica da guerra, na qual a meta é derrotar o inimigo. Esse cenário enfraquece o poder público e faz com que sua soberania seja limitada. A milícia é fruto dessa deformidade, claro sinal de um perigoso processo de privatização da segurança. Necessitamos, todos, de uma política de segurança calcada numa cultura de defesa dos direitos. Precisamos reafirmar a luta de classes na defesa da vida e da dignidade humana.

Marcelo Freixo
Deputado Estadual