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Eventos - 31 de janeiro de 2015

Tortura no Brasil ontem e hoje: homenagem da AJD ao Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro

André Augusto Salvador Bezerra

Presidente do Conselho Executivo da Associação Juízes para a Democracia (AJD). Mestre  e doutorando na Universidade de São Paulo (USP).

Falar de tortura no Brasil ontem e hoje é falar de incontáveis ações do Estado brasileiro contra inúmeras  pessoas,  em incontáveis lugares e em diversos anos. É falar de Stuart Angel, de Amarildo; é falar da Base Aérea do Galeão, da UPP da Rocinha. É falar do ano de 1971, do ano de 2013. É falar de 1964, de 2015.

É falar de uma persistente prática colonizadora do Estado brasileiro. E eu digo colonizadora porque torna seres humanos, objetos, instrumentos. Instrumentos de um projeto, que é um projeto econômico de expansão do capital, liderado pelas elites do capitalismo brasileiro aliado ao capitalismo globalizado: de ontem e de hoje.

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Tortura, portanto, é uma prática historicamente utilizada pelo Estado brasileiro objetivando a expansão do capital: seja o capital expandido pela política desenvolvimentista comandada pelos militares das décadas de 1960 e 1970, simbolizada por frases de efeito como “Brasil ame-o ou deixe-o” e por obras grandiosas ainda que ambientalmente discutíveis como a Transamazônica; seja o capital expandido pela política desenvolvimentista liderada pelo chamado presidencialismo de coalizão do nosso século 21,  igualmente simbolizada por frases de efeito como “Copa das Copas” e por obras grandiosas ainda que ambientalmente discutíveis como a Usina de Belo Monte.

Daí o professor de filosofia da Universidade de São Paulo, Paulo Arantes, que recentemente esteve da AJD,  afirmar categoricamente que, desde 1964, vivemos em um verdadeiro estado de exceção em nome de um projeto econômico. É um projeto,

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infelizmente, tão vitorioso que nos faz pensar que a ditadura é um problema de um passado distante.

Não há dúvida, ainda, de que se trata de projeto de expansão que não tem limites éticos: derruba-se um presidente visto como obstáculo aos negócios das elites como ocorreu com João Goulart em 1964;  matam-se índios que obstam o agronegócio (somente na ditadura, morreram quase 10 mil índios; no governo Dilma, morreram centenas); destrói-se a história de muitas cidades para dar lugar a empreendimentos imobiliários (mesmo que alguns desses empreendimentos sejam meros estádios de futebol) e prende-se e tortura-se aquele que, de alguma forma, ousa atrapalhar a chegada do capital a novos lugares.

Nessa prática reiterada tem-se a ordem exigida pelo capital acima das liberdades públicas.  A segurança dos contratos celebrados pelas elites do sistema acima da igualdade, da justiça social. Nada pode atrapalhar essa expansão, nem mesmo a democracia e os Direitos Humanos.

É preciso anotar, por outro lado, que se cuida de um projeto aparentemente contraditório. É que a expansão do capital se dá, conforme o discurso oficial, em nome da “modernização” do país. Todavia, tem como instrumento uma prática primitiva, medieval, como a tortura.

Daí se poder conectar esse permanente estado de exceção do Brasil (ou, como preferem outros, terrorismo de Estado) com aquilo que Boaventura  de Sousa Santos chama de promessas descumpridas da modernidade.

Lembra, a respeito, o mestre de Coimbra que a realidade vivida nos séculos 20 e 21 não deixa dúvida de que, nas chamadas sociedades modernas, a regulação prevalece sobre o sonho de emancipação do homem, um principais pilares do Iluminismo. Em outras palavras: a modernidade pensada através do Estado  todo-poderoso que pode tudo em nome da segurança, isto é o Leviatã de Hobbes,  impõe-se sobre a modernidade pensada pela participação cidadã da obra de Rousseau.

E tudo isso que eu falei foi para tentar deixar claro que os anos podem, de fato, mudar: anos 60, 70, 80, 90 e 2000. Mas a época é a mesma: a época da força imperando sobre a dignidade da pessoa humana.

Em que pese o aparente largo espaço de tempo, entre, por exemplo, 1964 e 2015, tem-se uma única dimensão temporal. Um único tempo.

E por falar em tempo de uma única dimensão,  peço licença para, a partir de agora e até o final da exposição, citar o filósofo o húngaro, radicado na Inglaterra, István Mészáros.

Na sua obra O Desafio e o Fardo do Tempo Histórico, Mészáros bem percebe que essa única dimensão do tempo é da essência, por assim dizer, dos interesses das elites dos grupos economicamente dominantes. Para a classe hegemônica, diz o filósofo, o tempo só pode ter uma única dimensão, que é o eterno presente. O passado, assim, significa a mera projeção pregressa e a cega justificação do presente estabelecido; o futuro, por sua vez, consiste apenas na extensão da “ordem natural” do aqui e agora.

E por que esse eterno presente é dos interesses dos grupos dominantes? Porque, em assim sendo,  não há outra alternativa senão a desse sistema sócio-econômico que vigora; esse sistema que, como falei, insere a ordem acima da emancipação, mesmo que isso se dê pela prática da tortura.

Tudo isso que Mészáros fala é facilmente ilustrado pelos jornais que compramos nas bancas ou nos telejornais que assistimos em nossas casas.  Cito dois exemplos.

O primeiro exemplo é a atual crise do sistema capitalista global, intensificada a partir da quebra de um banco no ano de 2008 nos Estados Unidos da América. Trata-se de uma crise gerada pela desregulamentação da economia pelo Estado, que deixou essa tarefa para as leis do mercado. Ocorre que a mão invisível do mercado não conseguiu impedir o apetite dos grande bancos por mais lucro, levando, ao final, a uma quebradeira generalizada em todo o mundo. Qual a alternativa defendida por nove entre dez editoriais para a crise?  E qual a alternativa defendida por nove entre dez comentaristas econômicos? A alternativa de mais mercado, de mais desregulamentação.  Vale dizer: o presente é a desregulamentação; para o futuro, a desregulamentação. O presente é eternizado.

Outro exemplo, a violência urbana. Qual o caminho adotado pelo Estado brasileiro para a violência urbana? A repressão, tornando-nos o pais de terceira maior população carcerária do mundo, onde milhares morrem por ano em supostos confrontos com policiais e onde a tortura perdura como prática oficial. Qual a alternativa que os grupos dominantes, por intermédio da mídia, apresentam para a violência?  O endurecimento penal, mais punição. O presente é a repressão e, para o futuro, defende-se a punição!

Desconsidera-se o futuro; esquece-se o passado: a alternativa é o aqui e agora. Não há outra opção. É o eterno presente.

Mészáros percebe, então, que o sistema econômico dominante, com a sua índole expansionista apta a eliminar tudo e todos que se encontram em seu caminho, nega a História na sua própria visão de mundo. Afinal, a História pode apontar para uma perspectiva de critica e para a inviabilidade a longo prazo do sistema defendido pelas elites.

Daí a enorme repercussão – e apoio de grande parte da mídia – da obra do sociólogo norte-americano Francis Fukuyama publicada no final da década de 1980, após a Queda do Muro do Berlim. Afirmou, na ocasião, Fukuyama:  com o fim do muro, não há mais História;  é o fim da história! A História acabou!

Se não há História, não há alternativa histórica. O sistema econômico reinante, então, torna-se historicamente insuperável.

Mészáros, porém, vê uma luz no fim do túnel. Enxerga a possibilidade de superação do eterno presente pela luta de alguns ativistas e teóricos. E para alguns destes que lutam é que ele presta, logo no início de sua citada obra, uma homenagem. São ativistas e teóricos que, segundo ele, apesar de circunstâncias extremamente desfavoráveis, carregaram o fardo do tempo histórico aos últimos limites.

E o que é esse fardo do tempo histórico (que, como já disse, dá nome ao livro que cito)? É aceitar a responsabilidade de enfrentar  o tempo histórico, esse tempo que, como já falei, tem apenas uma única dimensão. É aceitar a responsabilidade de lutar por um novo tempo; por uma outra alternativa que não a da expansão do capital a todo o custo; é aceitar a responsabilidade de lutar por um outro caminho, por uma verdadeira mudança de época, para que saiamos do presente e ingressemos no futuro.

Na esteira das homenagens feitas por Mészáros a quem enfrenta o desafio do fardo do tempo, cito e, em nome da Associação Juízes para a Democracia, homenageio, o Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro.

Destaco aqui a luta pelo direito à memória e à verdade levadas a cabo arduamente pelo Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro. Trata-se de uma luta apta a permitir a construção coletiva de uma História, a História da ditadura civil-militar (ou empresarial-militar) pós 1964, articulando-a com a História do Brasil atual, aparentemente tão distante dos tempos ditatoriais, mas, a bem da verdade, tão próxima dele.

Nessa mesma luta encontra-se a luta contra o esquecimento. Os arbítrios praticados pelo Estado não podem ser esquecidos: apesar das elites atuarem em pró do esquecimento de tantos Stuart Angel – que o diga a Lei da Anistia. O não esquecimento pode transmitir à geração futura os reais efeitos do eterno presente baseado incondicionalmente na ordem.

E nesse apontamento para o futuro é que vejo que o Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro aceita o fardo do tempo histórico, para citar mais uma vez Mészáros. Apesar de todas as circunstâncias históricas desfavoráveis, o grupo luta para que saiamos do eterno presente; para que tenhamos um futuro.

A luta pela memória, pela verdade e pelo respeito aos Direitos Humanos é uma luta que torna possível uma mudança de época, um novo tempo. Um tempo em que o Estado brasileiro, enfim, supere sua tradição no tratamento da questão social como caso de policia, para se inserir como garantidor e efetivador dos direitos.

É um trabalho que inspira o dia a dia da Associação Juízes para a Democracia (AJD), entidade formada por juízes de todo o Brasil há mais de 20 anos,  e que tem como principal bandeira de luta, justamente, a efetivação dos direitos previstos em nossa Constituição e nos tratados internacionais subscritos pelo Brasil. Por isso, a homenagem da AJD ao Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro, no ano de 2014.

Parabéns a todos do grupo!

[1] Texto extraído da exposição realizada  na Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) em ato público de homenagem ao Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro promovida pela Associação Juízes para a Democracia (AJD) em 23 de janeiro de 2015.
 
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