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Medalha Chico Mendes | homenageados 1997

Com a Medalha Chico Mendes de Resistência, o Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro – GTNM/RJ homenageia pessoas físicas ou jurídicas, nacionais ou internacionais, por suas lutas na defesa dos direitos à vida e à liberdade e por uma sociedade plural, fraterna e sem torturas, reafirmando sua dignidade e sua memória. Essa homenagem, prevista em seu estatuto desde a sua fundação, em 1985, vem sendo cumprida desde 1989, anualmente, no dia 1º de abril ou em data próxima.

Maria Dolores Perez – a Lola recebendo a Medalha Chico Mendes de Resistência em 2007

 

> Homenageados 1997

A repressão desencadeada na América Latina nos anos seguintes à Segunda Grande Guerra era parte da política norte-americana de controle de zonas de influência. Regimes despóticos, antipopulares e sanguinários sucederam-se em diversos países das Américas. O continente americano viu-se, por décadas, a mercê de ditaduras genocidas que degradaram os direitos humanos a condições nunca antes imaginadas.

Às Forças Armadas desses países foi dado o papel de capataz da doutrina militar norte-americana, mormente após o triunfo da revolução cubana, quando o maniqueísmo ianque chegou ao paroxismo. A noção de segurança hemisférica engendrou os sistemas monstruosos dos atos de exceção, do seqüestro político, da tortura, do desaparecimento de pessoas. Favoreceu também a ação conjunta dos órgãos de repressão dos países do continente, permitindo autonomia e impunidade aos agentes, em todo lugar.

Brasileiros presos no Chile de Pinochet foram torturados, no Estádio Nacional, por policiais brasileiros. Vários de nossos irmãos latino-americanos seqüestrados, torturados e mortos no Brasil por policiais estrangeiros. Tal foi o caso de três cidadãos argentinos – Lorenzo Ismael Viñas, Mônica Susana Pinus de Binstock e Horacio Domingo Campiglia, desaparecidos no Brasil em 1980 e cujos nomes, por absurdo burocrático, não foram incluídos no projeto de reconhecimento, recém instituído pelo atual governo, que colocou na lei o ano de 1979 como limite.

Lorenzo Viñas tinha 25 anos quando desapareceu em Uruguaiana, nas mãos de oficiais brasileiros e argentinos, ao viajar para o Rio. Consta que foi executado pelo exército argentino em setembro de 1980.

Aos 14 anos Lorenzo era dirigente estudantil de uma escola de Buenos Aires. Depois integrou a Juventude Peronista, para desempenhar tarefas solidárias nas áreas pobres da Província. Participou da construção de ambulatórios, pavimentação de ruas, controle sanitário e alfabetização. Preso, aos 20 anos, propôs a criação de uma biblioteca de instrução política no cárcere. Mais tarde saiu do país, valendo-se de um recurso constitucional e logo regressa clandestinamente à Argentina, para continuar a militância. Lorenzo teve uma filha, com quem conviveu apenas 29 dias.

Mônica Susana Pinus de Binstock desapareceu no Rio de Janeiro, vindo do Panamá, num vôo da Varig. Tinha 27 anos. Deixou uma filha de 4 anos e um filho de dois. Havia ingressado na Juventude Peronista e estudado sociologia. Trabalhava e militava junto às mulheres dos bairros marginalizados da Província de Buenos Aires. Nos enfrentamentos com os militares, foi baleada, seqüestrada e torturada. Deixa a Argentina em 1979 e continua, do exterior, a luta contra a ditadura que envelhecia sua pátria.

Horacio Domingo Campiglia, militante peronista, viajava com Susana quando também desapareceu no aeroporto do Rio.

Irmão da Pátria Grande latino-americana, caídos nos combates travados nos dias de trevas e terror, seus filhos Maria Paula, Ana Vitória, Miguel Francisco e os Campiglia verão dias luminosos semeados por vossa bravura.

A indigência, a fome, a carência de abrigo, saúde e educação, a violência, a prostituição infantil são faces do múltiplo rosto da pobreza. São chagas que se alastram velozmente por terras incontáveis do terceiro mundo. As estatísticas são macabras: em 1960, os paises do Norte eram 20 vezes mais ricos que os do Sul. Em 1980, já eram 46 vezes mais. O último informe da ONU, datado de 1996, sobre a distribuição da riqueza, registra que as 358 pessoas mais ricas do mundo têm ingresso anual equivalente ao de 45% da população mundial, ou seja, ao de 2 bilhões e 300 milhões de seres humanos.

Isso prova que a distância entre ricos e pobres vem aumentando nas últimas décadas, precisamente quando se fala, com entusiasmo sobre a globalização da economia e as virtudes da inserção no mercado mundial.

É hora de escrever o obituário do capitalismo global. No Brasil, as condições de vida da população pobre, são intolerável e espantosamente cruel o sistema que as preserva.

Pela construção de uma nação livre, justa e soberana, ergue-se o Centro de Direitos Humanos e Memória Popular. Fundado em dezembro de 1986, o Centro surgiu das experiências e ações da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de Natal, tendo como objetivo promover, defender e difundir os direitos humanos, lutar pela implantação de políticas que respeitem o direito à vida, defender uma educação comunitária que dê ao povo a consciência de sua cidadania. O Centro de Direitos Humanos e Memória Popular desenvolve ações no campo da formulação de políticas públicas de justiça e segurança, e produz pesquisas e informações por meio de banco de dados sobre violência. Atua intensamente nas áreas da educação e da cultura, especialmente na comunidade do bairro popular da Cidade da Esperança, em Natal.

Essa homenagem ao Centro ganha especial importância no momento de pesar vivido pela instituição, pelo assassinato de seu advogado Francisco Gilson Nogueira de Carvalho, arrebatado do nosso convívio, aos 32 anos, deixando seu exemplo profundo de defesa da vida e combate à impunidade.

Ao Centro de Direitos Humanos e Memória Popular, a Medalha Chico Mendes de Resistência.

Há trinta anos, em um dia de outubro, a imprensa brasileira noticiava: “o comando das Forças Armadas bolivianas anunciou, ontem, oficialmente, a identificação pelas impressões digitais do cadáver de Ernesto “Che” Guevara entre os 7 guerrilheiros mortos em uma batalha domingo último contra forças governamentais, próximo de Vallegrande”. Dentre os jornais americanos, o mais eufórico comunicava que o “Che” não havia deixado o poder em Cuba para entrar na clandestinidade, mas para entra r7 palmos debaixo da terra. Por que “Che” Guevara ameaçava o imperialismo? Que poderes tinham o homem e o mita para desconcertar as engrenagens da maior potência militar do mundo e fazê-la reorientar seus vastos recursos na direção da guerra contra o povo? Que força ou magia empolgava, a ponto de inquietar também o mandarinato comunista, tanto nos frios gabinetes moscovitas quanto nas distantes cidadelas maoístas?

Morto, o “Che” passou a terrorizá-los ainda mais.

Quando Fidel Castro, no início de 1967, nas comemorações do 8º aniversário da revolução cubana, depois de exaltar nomes de chefes da guerrilha da Guatemala, Colômbia e da Venezuela, manda “uma mensagem especial e calorosa que vem do mais profundo de nós mesmo, desta ternura nascida no calor de nossas lutas, em qualquer que seja o lugar do mundo onde se encontre, ao comandante “Che” Guevara e a seus companheiros”, Fidel não estava mentindo. Estava o “Che” na Bolívia, entre floresta e montanha, organizando a luta de morte contra o imperialismo. Che criava outros vietnames e sabia que estava em jogo a vitória ou a morte. Guevara foi um homem de fé, como poucos revolucionários. Acreditava no homem, na força e na vontade humana, no povo. Para ele, a causa de Washington é uma causa perdida, por mais tecnologia e dinheiro que engendrem para subjugar os povos. À época, Ho Chi Min e o povo vietnamita comprovavam suas esperanças.

“Che” encarnou o otimismo revolucionário, o anti-burocrata, o desbravador do caminho próprio.

O revolucionário vive de olhos postos na história, e para ele a história é campo para a ação. No auge de suas forças ou combalido pela asma que lhe esfrangalhava os pulmões, no comando de exércitos vencedores ou no posto de ministro, nas terras sofridas das Américas ou no continente negro, nas circunstâncias mais diversas, o herói boliviano mostrou ao mundo que o homem novo se faz através da ação revolucionária.

No mundo pós-Guevara, o imperialismo anda capenga, tem pernas bambas, recorre à retórica liberal e despacha vendedores mundo afora para corromper políticos e fundar a religião do consumo. Os donos do império sabem que outros Guevaras virão e sabem que o “Che” morto mantém ardente no coração dos povos a paixão pela liberdade.

Em 1975, respirava-se no Brasil o ar pestilento do regime imposto em 1964. No dia 31 de outubro, juntamente com dom Paulo Evaristo Arns e o rabino Henry Sobel, um pastor alto e sereno celebrou o “culto proibido”, em memória a Wladimir Herzog. Dois anos depois, ajudava a formar o Movimento de Justiça e Libertação que reuniu vinte entidades laicas de São Paulo e promoveu uma assembléia gigante no santuário da Penha, onde foi orador. Estimulou a publicação pela Folha de São Paulo, em março de 1978, de uma lista de 23 desaparecidos políticos. A partir de 1979, por convite de dom Paulo e designação – sem precedentes – na Igreja Presbiteriana, passou a dedicar-se inteiramente à defesa dos Direitos Humanos na arquidiocese de São Paulo, quando já estava germinando o “projeto Brasil Nunca Mais”, a mais completa denúncia das violações dos Direitos Humanos no Brasil, a partir de 1964.

Foi membro fundador da Pastoral de Consolação e Solidariedade do Conselho Latino-Americano das Igrejas e presidente do Serviço de Justiça e Paz na América-Latina. Por suas atividades no campo dos Direitos Humanos, a cidade de São Paulo o homenageou em 1985. Belo Horizonte outorgou-lhe cidadania honorária, em 1986. Em 1993, recebeu, no Espírito Santo, o título de cidadão vitoriense. Duas universidades nos Estados Unidos deram-lhe doutorado honoris causa.

Esse pastor, educador e expoente nas questões de relações ecumênicas e Direitos Humanos é Jaime Wright. Sua trajetória humana tem o fulgor dos astros. Filho de ousados missionários americanos, teve atuação marcante, como jovem pastor, na Bahia, ao denunciar a corrupção fiscal. Transferido para São Paulo, escreve artigos denunciando as violações de Direitos Humanos no país. Em 1973, perde seu querido irmão, Paulo, assassinado sob tortura pela repressão militar.

Jaime Wright ajudou a organizar, no Rio e em São Paulo, a estrutura de apoio aos refugiados políticos vindo de outros países da América-Latina. Foi um dos fundadores do Comitê de Defesa dos Direitos Humanos nos Países do Cone Sul.. Tornou-se membro da Comissão Arquidiocesana da Pastoral dos Direitos Humanos e Marginalizados e ajudou a criar o Centro Santo Dias de Direitos Humanos, da mesma arquidiocese.

Nomeado pela Presidência da República, é membro do Comitê de Julgamento do Prêmio Nacional de Direitos Humanos.

Na vida exemplar de pastores como Jaime Wright, na Igreja Libertária, rente aos pobres, ressurge, com vigor, a mensagem cristã e a esperança de que, enfim, as pessoas serão reconhecidas na legitimidade do seu valor e mistério.

João Luiz de Moraes nasceu em janeiro de 1923, foi o quinto dos oito filhos de um dos primeiros médicos de Jacarepaguá. Aos sete anos, é órfão de mãe. Ainda adolescente, entusiasma-se pela vida militar; faz Escola Preparatória de Cadetes em Porto Alegre, e a Academia Militar das Agulhas Negras. Durante a 2ª Guerra Mundial, serviu na Bahia, onde cooperou na organização da Força Expedicionária Brasileira.

Aos 23 anos, casou-se com Cléa Corrêa Lopes, sua admirável companheira durante quase 50 anos. No Rio Grande do Sul, para onde foi transferido, nasce Sônia Maria, sua primeira filha, cujo destino político veio transformar para sempre a vida de Cléa e João Moraes.

De rara fibra, o 1º Tenente Moraes, enfrenta desde cedo, as incoerências do mundo militar: ao denunciar, verbalmente e por escrito, irregularidades no quartel onde servia, é punido e impedido de ter, a partir daí, qualquer promoção por merecimento.

Em 1950 nasce sua segunda filha, Ângela Maria. Em 1956 cria, no Rio de Janeiro, um curso de admissão e, em 1963, pede transferência para reserva, sendo promovido, por antiguidade, a tenente-coronel. Com Cléa, dedica-se inteiramente ao ensino, por 16 anos.

Em 1969 Sônia e seu marido, Studart Angel Jones, engajados na luta contra a ditadura, passam à clandestinidade. Ao saber da prisão e tortura de estudantes e de quem se insurgia contra o regime de exceção no Brasil, João Moraes se revolta e passa a questionar seus companheiros de farda.

Como se estreitasse o cerco e vendo-se impedida de sair do esconderijo, Sônia concorda em deixar o país. Moraes prepara sua saída e a leva ao Paraguai onde, a poucos quilômetros de Assunção, sofre grave acidente da carro. Moraes se recupera, mas uma interminável tragédia logo o golpearia: em 1971, Stuart é assassinado, vítima de bárbaras torturas na Base Aérea do Galeão. Em 1973, Sônia decide voltar ao Brasil, para reintegrar-se à luta armada, mas é presa em São Paulo. Por notícia oficial, publicada nos jornais, o Governo informa que Sônia e Antônio Carlos Bicalho Lana foram feridos em tiroteio e morreram a caminho do hospital. Neste dia, Moraes começa a infatigável busca dos restos mortais de Sônia, defrontando-se com as dificuldades urdidas pelos que queriam manter em segredo sua morte sob tortura.

Moraes não arrefece a apuração dos fatos. Descobre que a filha fora enterrada com nome falso e como indigente, no cemitério de Perus. Manda exumar o corpo, ao qual dá sepultura, no Rio, mas constata, dois anos depois, que tinha sido enganado, pois o corpo não era de sua filha, mas somente em 1991 consegue a identificação final.

Depois de 18 anos de dor e tenacidades, Moraes derrota a mentira oficial. Imbatíveis, ele e Cléa trazem para o Rio a urna com os restos mortais da filha, para sepultá-la no Cemitério Jardim da Saudade.

Em 1985, Moraes começa a participar do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro, do qual viria ser presidente, de 1990 a 1992. Não perde oportunidade de denunciar publicamente os crimes do regime militar e o assassinato de Sônia. Em reunião na ABI, em março de 1989, protesta ao Ministro da Justiça, dizendo-se um torturado permanente por não ter, até então, encontrado o corpo de Sônia.

Moraes faleceu em novembro de 1995. Três meses depois, a Comissão Especial de Desaparecidos Políticos reconheceu que Sônia foi morta em instalação policial do Governo.

Caráter e vontade de ferro, riso de sol a pino, são lembranças que deixou no coração de quem mereceu sua generosa amizade.

Sobre os assassinos de Sônia Maria e sobre os seus cúmplices abjetos, fica, com o peso de um monumento grandioso, seu exemplo de coragem, independência de espírito e incorruptível amor à verdade.

Joel Vasconcelos Santos dói preso no Rio de Janeiro, em março de 1971, quando a polícia o surpreendeu com pacotes de documentos e panfletos contra a ditadura militar. Tinha 21 anos de idade e militava na União da Juventude Patriótica, do Partido Comunista do Brasil.

Com um companheiro, Joel foi algemado, levado para a PM e logo para a Polícia do Exército, para ser perversamente torturado. Aos apelos de Elza Joana, sua mãe, os agentes da PE e os oficiais do Ministério do Exército respondiam com evasivas sobre o seu paradeiro. Elza escreveu cartas às autoridades da Igreja, parlamentares, jornalistas e até ao ditador Médici.

O comandante de I Exército prometeu esclarecer os fatos, mas nada fez de concreto. Há mais de 25 anos, Joel é desaparecido.

Baiano de Nazaré, menino inquieto e contestador, foi coroinha de Igreja e aos onze anos já trabalhava como aprendiz de sapateiro, para ajudar em casa. Na Bahia, sua mãe lidera o movimento do Sindicato dos Ferroviários. Para as reuniões sindicais, Elza levava todos os filhos. Assim começava, de calças curtas, seu conhecimento do mundo do trabalho, sua iniciação política.

Veio para o Rio em 1960 e em 1966 conseguia trazer a família. Foi Presidente da Associação Secundaristas. Estudava contabilidade.

Artesão orgulhoso dos sapatos que produzia, bom redator, passou a dirigir e a publica material contra o regime de 64, que o Partido distribuía. Esse, o Joel, sapateiro e panfletista, amante do futebol e da contabilidade, brasileiro e mulato, teva a vida ceifada pela tirania contra a qual lutou com bravura.

Já não contamos com seu coração generoso e suas mãos que sabiam dar ao couro uma função humana. Já não vemos seus olhos brilhantes de valentia e esperança. Nossa luta pela justiça é permanente, através de vitórias, revezes e perdas irreparáveis. Adeus, companheiro Joel.

Certa vez, Jorge Luis Borges disse que Deus é a máxima criação da literatura fantástica. Leonardo Boff dedicou-se, desde menino, com radical coerência, a demonstrar que o mundo é prenhe de graça divina, e que a Igreja, sua casa na terra, não sairá da esclerose que a imobiliza senão através da opção pelos pobres e oprimidos.

Ao entregar a Medalha Chico Mendes de Resistência a Leonardo Boff, homenageamos o notável teólogo brasileiro comprometido com o avanço popular rumo à justiça e à fraternidade. A história de Leonardo Boff está marcada pela defesa dos Direitos Humanos como cerne de sua missão evangelizadora. Aos 10 anos, entrou para o seminário, em Petrópolis. Mais tarde, foi ordenado sacerdote franciscano e continuou seus estudos na Bélgica, Inglaterra e Alemanha. Por 22 anos, foi professor de teologia em Petrópolis, enquanto ajudava a formular a teologia da libertação, que toma como fundamento a dignidade do ser humano. Escreveu mais de 50 obras e participou de uma sistematização da fé a partir de uma perspectiva libertária.

Reagindo ao recrudescimento da repressão policial-militar dos anos setenta, promoveu, em 1972, um seminário nacional sobre Direitos Humanos, apoiou a criação de Centros de Defesa dos Direitos Humanos em várias cidades brasileiras, animou a fundação do Movimento Nacional de Direitos Humanos em Petrópolis.

Em 1984, por firmeza na defesa de suas posições, mesmo no interior da Igreja, sofreu processo doutrinário junto ao Vaticano, especialmente devido ao livro “Igreja: Carisma e Poder”. Foi destituído de suas funções de teólogo e escritor, e punido por tempo indeterminado de silêncio “obsequioso”, que foi, afinal, suspenso depois de 11 meses. “O poder doutrinal, diz ele, é cruel e sem piedade, seu fim é o enquadramento da inteligência teológica”. Boff diz “ter suportado a maledicência daqueles setores sociais que encontram no cristianismo tradicional um aliado na manutenção de seus privilégios, a pretexto da ordem”.

Em 1992, deixou o ministério institucional de padre, desligou-se da ordem franciscana e assumiu cátedra de ética na Universidade do estado do Rio de Janeiro.

Laureado muitas vezes no Brasil e no exterior, mente iluminada pelo sol de Assis, fiel ao espírito franciscano, Leonardo continua na conscientização da dignidade e dos direitos dos seres vivos e das gerações futuras. A luta dos Sem Terra, expressão mais profunda da vida política brasileira, sempre contou com seu apoio.

Bravo Frei Leonardo, sentimo-nos fortalecidos ao contar com sua força e sua fé na organização do nosso povo, na luta pela vigência plena dos Direitos Humanos, na construção da sociedade brasileira livre e solidária.

Lyda Monteiro da Silva completava 43 anos de serviços na OAB quando foi morta pelo terrorismo de Estado, no próprio local de trabalho, em 27 de agosto de 1980.

À época, a OAB e seu Conselho Federal, então sediado no Rio, enfrentavam corajosamente a ditadura militar, nomes ilustres da advocacia brasileira constituíam o Conselho.

Na OAB, Lyda havia começado a trabalhar aos 16 anos de idade. Contava que sua mãe lhe dera 400 réis para a barca de Niterói e uns trocados para almoçar...

Foi assassinada quando se preparava para requerer licencia prêmio e a aposentadoria, sempre adiada por seu amor à Instituição. Autodidata, atualizava-se constantemente nos assuntos relativos ao seu ofício. Lyda era sensível, bem humorada e de memória prodigiosa. Foi o braço direito da Presidência e dos Conselheiros da Ordem. Era a memória de quarenta anos de serviço. Gostava de presentear os amigos com pequenos textos, ora alegres, ora comoventes. Gostava de música, acreditava em Deus, amava as flores, era gentil e querida por todos. Seus 25 anos no cargo foram celebrados no Conselho Federal, ocasião em que Prado Kelly, que o presidia, afirmou:

“São os Conselheiros, por minha voz, que vêm dizer-lhe o quanto se mostram reconhecidos pelo seu meritório esforço e são ao mesmo tempo os seus colegas de trabalho que lhe auguram outro quarto de século fazendo preces a Deus para que não lhe falte saúde, capaz de resistir aos agravos do tempo, nem a fé nos destinos da Ordem, a confiança em sua missão, altamente representada, em todos os tempos, na vida nacional”.

Muito mais, infinitamente mais do que um quarto de século, Lyda deu a OAB sua vida. Morreu nos lodos subterrâneos da ditadura, como qualquer um de nós poderia ter morrido, porque ninguém está inteiramente imune quando impera a impunidade e o crime.

No Brasil, vivíamos o fatal encadeamento dos fatos: bombas, agressões a juristas, prisões ilegais, tortura, atentado contra a OAB e a morte da mais graduada funcionária de seus quadros.

O avanço da impunidade desorganizava a sociedade e tentava trazer das trevas os espectros do regime militar, sedentos de poder e de sangue. Lyda não morreu em vão. A brava Ordem dos Advogados, ao se desdobrar na construção de um país novo e vivo, ao somar sua força à dos que lutam pela soberania popular, eleva o nome de Lyda Monteiro à nobre altura de uma bandeira fiel.

No Brasil, o campo é cenário de um crime repetido: pistoleiros a mando do latifúndio e acumpliciados com a polícia matam trabalhadores e gente emprenhada na defesa dos direitos humanos, como sindicalistas, religiosos, advogados e outros. Aos crimes, segue-se o alarido da imprensa e a comoção da opinião pública, juntam-se provas incriminatórias e o véu do tempo logo se ocupa de encobrir os processos e liberar os culpados. Esses, os mandantes, os donos das terras, ficam para sempre impunes, pois não há vontade real de punir.

Na madrugada de 9 de agosto de 1995, 600 famílias de camponeses sem terra, acampados na Fazenda Santa Elina, em Corumbiara, em Rondônia, foram atacadas ferozmente por tropas da PM reforçadas por bandos de jagunços. Durante 3 horas, os agressores cercaram os trabalhadores com luzes de holofotes e sobre eles dispararam suas metralhadoras e bombas de gás lacrimogêneo. Do fundo dessa noite medonha, homens, mulheres e crianças, entre o sono e o terror, caíam feridos mortalmente ou tratavam de resistir por meio de suas ferramentas e espingardas de caça.

Às primeiras barras do dia, gente fardada e encapuzada, e jagunços invadiram o acampamento a atirar à queima-roupa e a mutilar os indefesos com moto-serras. Dentre os mortos, estava a pequena Vanessa, na ternura de seus 7 anos. Levados para um campo de futebol, mais de 400 camponeses foram torturados frente a suas mulheres e filhos. Muitos foram obrigados a comer o próprio sangue, misturado à terra.

Como de costume, o comandante da PM foi demitido e o Ministro da Agricultura gaguejou frases de fé na justiça. Como de praxe, o INCRA protelou medidas efetivas de assentamento e acampamentos, foi fundado o Movimento Camponês Corumbiara, nascido do drama de Santa Elina.

Agora, na Comarca de Corumbiara, no processo referente ao crime, criaram-se condições para transformar o caso em novo massacre, dessa vez judiciário, de quatro das vítimas, ora apontadas como líderes da invasão e responsáveis diretos, não só pela morte de 2 milicianos, como pelo massacre dos seus próprios companheiros. Adelino Ramos, Cícero Pereira Leite Neto, Claudemir Gilberto Ramos e José Fernando da Silva são os acusados na torpe denunciatória engendrada pela Justiça de Rondônia.

Podemos esperar que a farsa se complete com a intimidação do Conselho de Sentença por parte dos senhores da terra.

O homem do campo quer terra e trabalho. Quer a reforma que lhe trará recursos necessários à produção agrícola. A reforma agrária interessa ao campo e à cidade. Só não interessa ao latifúndio e aos governos que o servem. Dentre os camponeses de Corumbiara, um poeta disse: “todos sonham o mesmo sonho: um novo dia, a terra, o lar”.

Saudamos o novo dia, a terra, a justiça no campo. Nossa solidariedade ao 4 companheiros de Corumbiara. Salve o MCC!

No Brasil, cerca da metade dos desaparecidos políticos conhecidos foram seqüestrados e mortos na região do Araguaia, onde se desenrolou um movimento guerrilheiro entre 1972 e 1974. Ali, atuaram 69 militantes do Partido Comunista do Brasil e cerca de 20 camponeses que integraram ao movimento. Seu objetivo era desencadear uma guerra popular prolongada, inspirada nas campanhas de Mão, na China, e na vitória dos vietcongs.

Os militantes escolheram o sul do Pará, onde a mata é mais espessa, há grandes redes de rios e os conflitos agrários se eternizam. Mal haviam chegado, quando as forças armadas os descobriram e deslocaram para o Araguaia milhares de soldados, incluindo tropas de vários estados, as Polícias Militares do Pará, Goiás e do Maranhão, aviões e armas modernas. Passaram, então, as forças governamentais a prender centenas de camponeses suspeitos de ligações com o movimento insurgente, sucederam-se os combates e as prisões dos militantes. Estes, uma vez capturados, eram diabolicamente torturados, mortos e enterrados nas bordas das matas e dos rios.

Passam vinte e quatro anos sem que as famílias dos desaparecidos do Araguaia tenham notícias de seus parentes. Para quem torturou e matou seres humanos indefesos, e para quem mandou torturar e matar, nada melhor que o esquecimento de seus crimes.

Contrariando esta fria expectativa e rompendo o silêncio de cinza sobre parte da história brasileira, surge na imprensa, no ano passado, o trabalho de cinco jornalistas – Adriana Barsotti, Amauri Ribeiro, Cid Benjamin, Aziz Filho e Consuelo Dieguez – com importantes consequências políticas. Pela primeira vez, um jornal brasileiro de grande circulação evidenciou a guerrilha do Araguaia e os crimes contra os Direitos Humanos ali praticados. A partir desta reportagem, representantes das famílias dos desaparecidos visitaram as áreas indicadas, dando início aos trabalhos de preservação dos locais e às exumações dos corpos encontrados. Também a partir desses trabalhos, cresceu o grupo de parlamentares, familiares de desaparecidos políticos e até militares da reserva, com a opinião de que o Exército só se livrará do estigma dos “anos de chumbo” ao abrir seus arquivos e rever criticamente o passado.

Na organização das anotações feitas pelos militares na repressão à guerrilha, confrontando-as com o que já havia sido escrito sobre o tema, incluindo publicações clandestinas, nas entrevistas com participantes e testemunhas dos eventos, na busca de novas fontes de dados, na reconstituição criteriosa da guerrilha, sob a ótica dos moradores da região, no mapeamento dos cemitérios secretos, os jornalistas Amauri Ribeiro, Adriana Barsotti, Cid Benjamin, Aziz Filho e Consuelo Dieguez prestam um inestimável serviço à memória e à edificação moral de nosso país.

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