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- 18 de julho de 2015

Sobre a criminalização do funk carioca

Nilo Batista

I

Um poder muito abelhudo

                                 As recentes revelações do agente (terceirizado) Edward Snowden sobre as interceptações ilegais de telecomunicações promovidas pelos Estados Unidos somente chocaram aqueles que ignoram o papel que o vigilantismo assumiu nos sistemas penais do capitalismo vídeo-financeiro transnacional. Ainda que o discurso legitimante dos sistemas penais procure centrar-se na pena justa (algum dia notar-se-á nesta expressão uma contraditio in adjecto), a vigilância é hoje a tarefa mais importante deles, a tarefa que se adapta “naturalmente” às fundamentações preventivas da pena.

Se hoje temos, com os insumos tecnológicos disponíveis e as crescentes restrições aos direitos da privacidade construídos no Estado de bem estar, um vigilantismo capilarizado que faria Bentham roer as unhas de inveja, é preciso registrar que o poder punitivo sempre foi um poder muito abelhudo.

Muito antes da psicanálise o poder punitivo interessou-se pelos pensamentos dos homens. Quando Dionísio ouviu o relato do sonho que o fiel Mársias tivera, no qual era o tirano degolado, respondeu não com uma interpretação e sim com a pena capital. Mais tarde, a construção judiciária do herege ou da bruxa não passou de desenfreada procura pelos pensamentos dos acusados, valendo-se ora da força ora da astúcia. Pelo método da força, a tortura foi muito eficiente em estimular os padecentes a revelar seus pensamentos, basta observar a elevadíssima correlação entre torturados e confessos. Pelo método da astúcia, encontramos um legítimo antecessor do “agente infiltrado” naquele velho amigo do herege, porém já “bem convertido”, introduzido em sua cela para, simulando ainda compartilhar as velhas idéias, dele extrair palavras pelas quais, do outro lado da porta, aguardava sedento o escrivão da santa inquisição.

Constituiu um avanço do penalismo ilustrado o princípio da lesividade, que ao interditar a criminalização de crenças e opiniões, além de condutas que não lesionem ninguém, praticamente colocaria a salvo dos sistemas penais os pensamentos dos homens. Na verdade, não só permaneceram a vigilância – exercida, às vezes, clandestinamente – e a tortura – nos Estados Unidos, autorizada e regulada para certas investigações após o 11 de setembro – como houve um deslocamento do problema para o nível das manifestações do pensamento. Sim, você pode pensar no que bem quiser; os perigos aguardam pelo momento em que você resolver manifestar seu pensamento. Dois grandes eixos criminalizantes atravessam aquele conjunto de crimes que Eduard Kern, num livro escrito há quase cem anos, denominou “delitos de expressão”: o eixo do obsceno (que ofenderia o pudor, os “bons costumes”) e o eixo da apologia (que ofenderia a ordem, a “paz pública”).

No Rio de Janeiro, esses dois eixos sempre confluíram na criminalização de manifestações artísticas – especialmente musicais – populares. O major Vidigal, no primeiro quartel do século XIX, e o primeiro chefe de polícia republicano, Sampaio Ferraz (notabilizado pelo ódio à capoeira), lançam sobre os batuques africanos um olhar que retém alguns componentes das fantasias nas quais os inquisidores viajavam perante a descrição de um sabá orgíaco por uma desventurada bruxa confessa. Mas ao lado do obsceno fulgura a insurgência à ordem, o mau exemplo, a incitação ao crime. Que o chefe de polícia figure no primeiro verso do primeiro samba gravado, o Pelo Telefone de Donga e Mauro de Almeida, é alarmante sintoma. No século XX, o samba sofreria perseguições similares às dos batuques nos anteriores. Durante a ditadura, não foram só os jornais que às vezes tinham que noticiar uma estrofe de Os Lusíadas para preencher o espaço da notícia censurada. Livros, montagens teatrais, filmes e músicas foram intensamente censurados, sob o pretexto dos dois velhos eixos, pudor e apologia. Artistas presos, artistas exilados, artistas tendo que exilar-se da própria identidade para ver sua obra autorizada a existir. Um jovem mestrando poderia fartar-se no tragicômico anedotário criado pelo sistema penal da ditadura para impedir a livre manifestação artística.

Mas, como uns poucos se esmeram em ignorar, a ditadura acabou e o povo brasileiro, reunido em Assembleia Nacional Constituinte, decidiu que “a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição” (art. 220 CR). Temendo que essa cláusula não fosse suficientemente explícita, os representantes do povo declararam “livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença” (art. 5º, inc. IX CR). Para que não subsistisse a menor dúvida a respeito, inscreveu-se na Constituição uma proibição terminante: “é vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística” (art. 220, § 2º CR). Existem outros dispositivos redundantes (p. ex., art. 5º, inc. IV) a reafirmar esta liberdade de manifestação, como se nessa profusão de dispositivos não só rebentassem as manifestações recalcadas durante aqueles anos turvos mas também, na direção do futuro, se quisesse assegurar, do modo mais enfático possível, que a arte brasileira estava finalmente libertada da censura e devolvida aos artistas, ao público e à crítica.

É verdade que subsistiram dois “problemas”, para usar a expressão de José Afonso da Silva. O primeiro estaria nas “diversões e espetáculos públicos”, sobre os quais reservou-se ao governo uma intervenção restrita a 1º) informar ao público sua “natureza” (seu conteúdo); 2º) informar ao público a faixa etária para a qual não se recomendam; e 3º) determinar “locais e horários em que sua apresentação se mostre inadequada” (art. 220, § 3º, inc. I CR). O segundo problema teria a ver com programas veiculados no rádio e na televisão por concessionários desses serviços de comunicação que não observassem as balizas constitucionais, que prescrevem “finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas” e “promoção da cultura nacional e regional” (art. 221 CR). Mesmo quando tais balizas sejam cabalmente desconsideradas, nada de censura: o que o governo federal pode fazer é apenas classificar, “para efeito (meramente) indicativo”, tanto as diversões públicas quanto os programas de rádio e televisão (art. 21, inc. XVI CR). Nenhuma autoridade pode ter a pretensão de intervir na dramaturgia das novelas da Globo, de instaurar um inquérito para apurar se por detrás da trama não estaria uma incitação ao delito (numa delas, uma Delegada de polícia faculta às vítimas de um preso algemado ficarem sozinhas com ele alguns minutos para a desforra – isso não é tortura?) ou uma ofensa ao pudor. Como registrou Luís Roberto Barroso, com apoio no estudo magistral de Edilsom Pereira de Farias, “entende-se que as liberdades de informação e de expressão servem de fundamento para o exercício de outras liberdades, o que justifica uma posição de preferência – preferred position – em relação aos direitos fundamentais individualmente considerados”.

Perante a clareza dos dispositivos constitucionais, parecia evidente que nenhuma forma de expressão artística poderia ser criminalizada.

Pois no Rio de Janeiro do início do século XXI, as velhas perseguições aos batuques e ao samba encontraram no funk um novo alvo à altura da tradição: também uma arte popular, cultivada pelos estratos sociais mais pobres, irreverente e sensual. A asfixia da cultura funk também observa dois métodos, como a inquisição: a astúcia e a força. A astúcia consistiu em editar uma Resolução conjunta, de várias Secretarias de Estado, que formula tantas e tão dificultosas exigências para a realização de bailes funk que praticamente os inviabiliza. É inacreditável que essa Resolução ainda não tenha sido declarada inconstitucional por um Tribunal. A força manifestou-se nos diversos procedimentos policiais e judiciários que tentaram criminalizar alguns artistas, especialmente MC’s, do funk carioca.

 II

O processo criminal de hoje é a vergonha de amanhã

                                 Sempre que o poder punitivo colocou o sistema penal na posição de tutor das manifestações artísticas, o resultado foi um processo escandaloso que, passado algum tempo, envergonhava a justiça.

As Flores do Mal puseram Charles Baudelaire no banco dos réus, em 1856. Foi ele condenado à pena de multa, e o Tribunal Correcional de Paris ainda determinou a supressão de alguns poemas que desagradaram especialmente aos juízes; ainda bem que lhe foi concedida graça. Mas o tribunal gostou de meter-se em literatura, e no ano seguinte processou Gustave Flaubert pela publicação de Madame Bovary; ele seria absolvido por … prova insuficiente. Como a autoria do romance é inquestionável, a dúvida residia em tê-lo escrito apenas para excitar o erotismo no casamento burguês. Mas estará uma corte criminal habilitada a, examinando a obra de arte, concluir sobre a intencionalidade do artista, admitindo-se que ela exista sempre, mesmo longe de uma domesticada arte-de-tese?

O caso italiano pode ser ilustrativo para nós.

Durante a vigência do código Zannardelli (1889-1930) prevalecia o modelo de tutela moral das obras de arte. Um acórdão da Cassação, de 1926, afirmava que “a arte deve tender a purificar o ambiente, deve civilizar (ingentilire) e não emporcalhar (insozzare) os costumes”. Valer-se da expressão “purificar o ambiente” em 1926… Outro acórdão, do ano anterior e do tribunal de Milão, recomendava para o assunto um perigoso contubérnio pré-ilustrado: “moral e direito nessa matéria se encontram e se integram alternadamente”. Não surpreende que escritores tão diferentes como Filippo Tommaso Marinetti – que despertou controvérsias entre os protagonistas de nossa Semana de Arte Moderna – e Dino Segre, vulgo Pitigrilli, como se diria em linguagem policial, tenham sido processados por ultraje ao pudor, respectivamente pelos livros Mafarka, o Futurista e O Cinto de Castidade.

O código Rocco de 1930, o código fascista, logo após a definição do crime de escritos e objetos obscenos “segundo o comum sentimento”, surpreendentemente recortou de modo incisivo o tipo legal: “não se considera obscena a obra de arte ou a obra de ciência”, criminalizando apenas sua venda para menores de dezoito anos, e ainda assim ressalvada a venda por motivos acadêmicos (art. 529 CP italiano). Os autores peninsulares atribuem tal recorte à influência do pensamento de Benedetto Croce, para quem “a consciência estética não precisa tomar emprestado da consciência moral o sentimento do pudor, porque o tem em si mesma”.

Ocorre que a lei mudou, porém não mudaram os tribunais. A despeito da fórmula legislativa, que cristalinamente subtraia à apreciação judicial obras artísticas (e também científicas), os velhos paradigmas jurisprudenciais se mantiveram intactos. A chave para desativar o comando legal estava em desqualificar a obra de arte como tal. Em 1934, a Cassação dava o roteiro: “uma obra de arte vera e propria não pode nunca apresentar as características da obscenidade. Quando se observa que uma publicação é obscena, pelo fato de ofender o pudor, com isso e por isso se exclui que seja obra de arte”. Esta indigente petição de princípio atribui ao Judiciário a tarefa de identificar a obra de arte, e para fazê-lo ele deve recorrer ao mais vulgar e conservador moralismo: se o juiz sente (tudo isso se passa muito mais no plano dos sentimentos do que em categorizações jurídicas) ofensa ao pudor, então não se trata de arte e podemos condenar à vontade. A doutrina conservadora, enamorada do fascismo, logo desenvolveu o mote: Maggiore inverteu a máxima “a arte não é nunca obscena”, diretamente dedutível do artigo 529 do código Rocco, por outra (“o obsceno não é nunca arte”) que sintetizava a estratégia jurisprudencial para trair a lei, e para Manzini o legislador teria “concedido um salvo-conduto à pornografia”.

Os frutos desse obscurantismo podem ser apreciados na submissão ao escrutínio judicial dos seguintes filmes: A Bela da Tarde (Milão, 1967), Teorema (Veneza, 1969), Decameron (Trento, 1971), Contos de Canterbury (Bolonha, 1973) e Último Tango em Paris (Bolonha, 1974).

Tudo isso na vigência de uma lei que proclamara: “não se considera obscena a obra de arte”! Realmente, nesse tema o processo escandaloso de outrem constitui hoje uma vergonha para o Judiciário em geral e para o juiz obscurantista que o protagonizou em especial.

Pois as claras e reiteradas declarações de nossa Constituição sobre a liberdade de expressão artística são mais pujantes e inequívocas do que a lei italiana, e, situadas na Constituição, invalidam toda iniciativa de lei ou de regulamentos que as contestem ou limitem seu amplo e libertário horizonte de aplicação.

 III

Seletividade na criminalização por apologia

                                 O delito de apologia de crime ou criminoso (art. 287 CP) é recente, remontando ao código Zanardelli (1889). Códigos penais de cariz liberal, como – à parte o escravismo, porém esta contradição é nosso pecado original nacional – o código imperial brasileiro de 1830 o ignoraram. Provém, portanto, tal criminalização de tempos nos quais prevalecia o entendimento de que o crime seria algo natural, tal como Garofalo propusera em 1885, e não um construto político. Se o legislador apenas “reconhece” a conduta “naturalmente” punível, recolhendo-a no texto da lei, temos um procedimento sacerdotal. Mas se o legislador cria a conduta punível, temos um procedimento político. No primeiro caso, duvidar da “revelação” legislativa assume ares sacrílegos; no segundo caso, todo cidadão dispõe do direito de duvidar da conveniência e até da moralidade da criação legislativa.

O velho argumento liberal é irrespondível: se a manifestação do sujeito tem o sentido e a idoneidade para concretamente inculcar ou incentivar a resolução delitiva de outrem, estamos diante de alguém que responderá pelo crime praticado na qualidade de partícipe (instigador). Fora daí, estaremos punindo a mera manifestação do pensamento, espoliando a pessoa em sua autonomia moral. Por isso, Fragoso registrou que “vários autores duvidam da oportunidade da incriminação”. A partir dos dispositivos constitucionais já visitados, seria cabível proclamar-se a inconstitucionalidade do crime de apologia mesmo executado através de um discurso raciocinado e persuasivo; mas a obra de arte já está constitucionalmente isenta da censura punitiva posterior. É lícito marchar pelas ruas da cidade gritando que a lei sobre drogas ilícitas incorpora a política criminal de uma potência estrangeira, que produziu um genocídio na região andina e nas periferias urbanas de nosso continente, que não apenas fracassou no tratamento dos problemas que pretendia resolver (comércio e consumo) como criou vários outros (homicídios, corrupção etc).

Ainda que não fosse assim, é tão seletiva a criminalização por apologia que não pode deixar de questioná-la eticamente. Nenhum operador do sistema penal pode sentir-se confortável quando sabe que de mil “apologias” praticadas num mês apenas uma será objeto de processo e julgamento.

Exempla docent. No dia 16 de janeiro de 2013, no programa de televisão Cidade Alerta, da rede SBT, o jornalista Rogério Forcolen narrava o roubo de um carro. O ladrão, que aparentemente não sabia dirigir bem, fora preso imediatamente após assumir a direção do carro roubado, já que ao arrancar colidiu com outros dois veículos. Uma repórter – certamente autorizada pela polícia – o entrevistava. Ele estava algemado com as mãos para trás na mala de um carro que parecia da polícia. Transcrevamos a entrevista, realizada sem uma advertência sobre seu direito de “permanecer calado” (art. 5º, inc. LXIII CR):

Repórter – Porque você fez isso?

Preso – Por falta de opção.

Repórter – Você agiu sozinho?

Preso – Sozinho, estava sozinho e a pé.

Repórter – Onde você conseguiu a arma?

Preso – Comprei quando eu cheguei aqui essa arma.

Repórter – Você chegou aqui quando?

Preso – Três mês.

Repórter – Quanto você pagou pela arma?

Preso – Cento e cinquenta.

Repórter – Você fez outros assaltos com ela?

Preso – O primeiro foi esse aí… eu rodei com ela”.

Alguma coisa, e não foi o baixo nível da entrevista, irritou muito o âncora do programa. Rogério Forcolen, procurando imitar a voz do preso (“cento e cinquenta…”), põe as mãos para trás, como se ele próprio estivesse algemado, simula um tapa e diz

R. Forcolen: Dá uma vontade de dar uma sacudida num cara desses. Meu Deus do Céu, cara, eu tenho uma pregada com a direita, rapaz… Mas eu não posso fazer isso (…) justiça com as próprias mãos. (…) É porque é técnica né? O coronel sabe, não que o coronel tenha sido um homem violento (…) mas o coronel sabe, tem uma técnica, não é força, é técnica, é botar o cara para sentar de mão aberta.”

Segue-se um discurso entremeado com a expressão “mas dá uma vontade…”, que culmina assim:

R. Forcolen: Mas depois que ele tá ali algemado não dá uma vontade? Vamos falar só da vontade, no pensamento, não dá uma vontade? Não é? Dá!”

Daí ao fecho de ouro:

R. Forcolen: Mas um vagabundo desses, como diz o coronel Amêndola, no ato legal se a polícia chegar (simula uma arma com as mãos) a gente torce para que ele tente dar um tiro no policial, a gente torce, né? Pá, pá, pá (imita disparos) e acabou, né?”

Essa apologia da tortura e do extermínio – que, como observou Carlos Bruce Batista, está no centro do filme Tropa de Elite – ocorre diariamente nesses programas parasitários do cotidiano policial, e o Ministério Público faz bem em desconhecê-los, desde que o motivo da distração seja a convicção da inconstitucionalidade do delito de apologia. Na verdade, as estultices de um âncora policizado estão garantidas pela Constituição. O absurdo é a polícia expor à mídia suspeitos e indiciados, sem base em qualquer autorização legal e com violação de inúmeros dispositivos constitucionais, da presunção de inocência (art. 5º, inc. LVII CR) à inviolabilidade da imagem da pessoa (art. 5º, inc. X CR).

Se porventura o Ministério Público não considera inconstitucional o crime de apologia, poderemos concluir que nenhum membro do parquet jamais ligou sua televisão à tardinha, em qualquer dos canais da TV aberta. Aquele que o fizesse encontraria muita apologia e muito abuso de autoridade.

Como se compatibiliza com a idéia de justiça distributiva uma criminalização que só alcança alguns poucos, embora a mesma conduta seja praticada por muitos?

 IV

Rumo aos “permitidões”?!

                                 O poder punitivo daquilo que poderíamos chamar de “capitalismo comunicativo” tem no vigilantismo uma característica central. Tecnologicamente muito mais abelhudo e invasivo do que seus predecessores, e fundado em concepções preventivas que invariavelmente buscam antecipar o momento da intervenção punitiva, transportando-o da exterior ofensa ao bem jurídico alheio para meros atos preparatórios ou resultados fictícios de perigo presumido, o poder punitivo hoje recicla e amplia seu velho interesse pelos pensamentos dos homens. Uma atualização do positivismo biológico lombrosiano reside na versão criminológica das chamadas neurociências: se o crime está predisposto nos neurônios, teremos que infiltrar alguns guardas tarja-preta, como os do BOPE, lá dentro.

O interesse pelas letras dos “proibidões” depõe muito eloquentemente sobre os baixos teores de nossa democracia representativa, onde os velhos preconceitos das oligarquias conseguem até neutralizar comandos constitucionais tão inequívocos como aqueles que transcrevemos. Conhecer as múltiplas visões que permeiam o imaginário funk poderia ser uma tarefa da área de cultura que contribuiria para a formatação de políticas públicas, não um pretexto para criminalizar artistas pobres, só porque seus personagens são infratores dessa fracassada e estúpida lei sobre drogas ilícitas, são ao fim e ao cabo consequências humanas do proibicionismo.

Os jovens MC’s das favelas cariocas, criminalizados por cantarem algum “proibidão”, encontram-se em singular posição: podem cantar sua aldeia desde que omitam personagens que nela realmente viveram sua (geralmente curta) vida e episódios que nela, ou a partir dela, realmente aconteceram. Como compatibilizar essa interdição com as amplas franquias que a Constituição deferiu à criação artística?

Aqui o risco estaria em repetir a fórmula do mau exemplo italiano: arrogar-se o juiz o poder de determinar se a manifestação artística criminalizada constitui ou não obra de arte. Antes de mais nada, a formação jurídica não outorga a nenhum bacharel em direito tal habilitação. Socorrer-se o juiz de um perito – um crítico, um professor de estética etc – só pioraria as coisas. Em dada ocasião, Hegel mencionou uma “certa repugnância” que os estudiosos da poesia experimentaram sempre que pretenderam formular uma definição de poesia ou descrever o que é poético. Não é um encargo do Judiciário atrelar ou extrair das invenções humanas o rótulo de obra de arte; ao contrário, constitui relevantíssima tarefa, que só o Judiciário pode eficazmente cumprir, a proteção da criação artística contra toda sorte de censura, constrangimento ou manipulação de qualquer autoridade. Talvez aqui a única saída digna para nós, juristas, seria empregar o mesmo critério que começa a prevalecer no reconhecimento da etnia antropocentricamente fundamentado: é negro quem se sente e se declara negro, e é arte toda obra cujo autor pretendeu que fosse arte. Fora dessa solução simples espreitam-nos na pior hipótese o discurso nazista sobre “arte degenerada” (e as duras criminalizações dele decorrentes) ou na melhor hipótese as tediosas camponesas gordas do “realismo socialista”.

Muitas letras de “proibidões” são ásperas e chocantes, capazes sem dúvida de “épater le bourgeois”. Mas quantas e quantas vezes, no ondulado percurso das tendências e dos estilos, uma vanguarda artística não recebeu esses mesmos epítetos?

O Judiciário brasileiro está devendo à sociedade civil um posicionamento firme em defesa da liberdade de expressão artística, e a criminalização do funk lhe oferece essa oportunidade. Quando este dia chegar, acabou-se o “proibidão”, não pela falta dos poetas populares mas pelo término da inconstitucional perseguição policial. Todo MC poderá então tranquilamente celebrar, em seus “permitidões”, personagens e episódios da favela em que nasceu.

Bibliografia (por ordem de entrada em cena)

Plutarco, Vidas Paralelas, trad. G.C. Cardoso, S. Paulo, 1992, ed. Paumape, v. V, pp. 203 ss.(Dion, nº 9); Eymerich, Nicolau e Peña, Francisco, Le Manuel des Inquisiteurs, trad. L. Sala-Molins, Paris, 1973, ed. Mouton, p. 133; Kern, Eduard, Los Delitos de Expresión, trad. C.Finzi, B. Aires, 1967, ed. Depalma; Holloway, Thomas H., Polícia no Rio de Janeiro, trad. F.C. Azevedo, Rio, 1997, ed. FGV; Neder, Gizlene et al., A Polícia na Corte e no Distrito Federal – 1831 a 1931, Rio, 1981, ed. PUC/RJ (série Estudos PUC, nº 3); Silva, José Afonso da, Curso de Direito Constitucional Positivo, S. Paulo, 1989, ed. RT, pp. 226 ss.; Barroso, Luís Roberto, Liberdade de Expressão versus direitos da personalidade, em Temas de Direito Constitucional, Rio, 2005, ed. Renovar, pp. 79 ss. (trecho citado: pp. 105-106); Pereira de Farias, Edilsom, Colisão de Direitos, P. Alegre, 1996, ed. Fabris; Mazzanti, Manlio, L’Osceno e il Diritto Penale, Milão, 1962, ed. Giuffrè (esp. pp. 110 ss; sobre Croce, p. 105); Spirito, Daniela, Proffili Storico-dommatici della Problematica Arte-Osceno, Nápoles, 1981, ed. Jovene (para os acórdãos transcritos, pp. 14 ss e 49; para a influência de Croce, p. 42); Galeffi, Romano, A Autonomia da Arte na Estética de Benedetto Croce, Coimbra, 1966, ed. Atlântida (a citação de Croce na p. 118); Maggiore, Giuseppe, Derecho Penal, trad. J.J.O. Torres, Bogotá, 1972, ed. Temis, v. IV, p. 111; Manzini, Vicenzo, Trattato di Diritto Penale Italiano, Turim, 1951, ed. UTET, v. VII, p. 428; Garofalo, Rafael, Criminologia, Turim, 1885, ed. Fr. Bocca (para a definição do “delito natural”, pp. 30 ss); Fragoso, Heleno, Lições de Direito Penal, P.E., Rio, 1988, ed. Forense, v. II, p. 291; SBT, programa Cidade Alerta, 16.01.2013, parte 1 (duração 1 h, 21 m, 36 s), ICC; Batista, Carlos Bruce, Uma história do Proibidão, em Tamborzão: Olhares sobre a Criminalização do Funk; Hegel, G. W.F., Esthétique – La Poesie, Paris, 1965, ed. Aubier-Montaigne, v. I, p. 27.

Ficha catalográfica: Sobre a criminalização do funk carioca in Tamborzão: olhares sobre a criminalização do funk/Adriana Facina …[et al]. Criminologia de cordel 2, Rio de Janeiro, ed. Revan, 2013.

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