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- 11 de agosto de 2014

Grupo Tortura Nunca Mais/RJ: origens, compromissos, lutas e ações políticas

Victória Lavínia Grabois[1] e

Maysa Pinto Machado[2]

 (…) Reparei, também, como as famílias das vítimas, e os que lhes acompanham realizam uma resistência forte e pacífica contra o abuso de poder e contra a impunidade.  Desde o choque de violência e a dor da perda eles insistem, e vão, continuar insistindo na memória.  E esta memória se levanta ao lado de quaisquer resultados jurídicos e continua falando e denunciando (…) (Ann Schneider, Faculdade de História da Universidade de Chicago – estagiária do GTNM/RJ)

 Introdução

O Grupo Tortura Nunca Mais/RJ (GTNM/RJ) foi fundado em abril de 1985, por iniciativa de ex-presos políticos que viveram situações de clandestinidade, tortura e prisão durante a ditadura civil-militar; por familiares de mortos e desaparecidos políticos e por militantes dos direitos humanos.

O GTNM/RJ através de ações em defesa da vida, pela paz, contra quaisquer tipos de tortura, tornou-se uma referência importante no cenário nacional e internacional.

O regime ditatorial contribuiu de forma decisiva para a anulação e deterioração de valores éticos, dos fatos históricos e de sua preservação. Nossa entidade ao longo dos anos constituiu-se, em um centro de referência sobre a memória do período da ditadura civil-militar.

Desta maneira, ao assumir claro compromisso na luta contra as graves violações dos direitos humanos; pelo esclarecimento das circunstâncias de morte e desaparecimento de militantes políticos; pela memória histórica daquele período; pela indicação de afastamento imediato dos ocupantes de cargos públicos envolvidos com a tortura; pela formação de uma postura ética em relação aos fatos históricos passados e atuais, possibilitou ao GTNM/RJ formar um acervo documental e imagético, específico do período e aberto à consulta pública.

O Grupo Tortura Nunca Mais/RJ é uma entidade inserida no movimento social do Rio de Janeiro. Desde sua criação, um dos nossos compromissos é preservar a autonomia e independência, que se expressam em nossas ações e por não mantermos vínculos de dependência de qualquer natureza, com órgãos governamentais, partidos políticos; não aceitando, portanto, possíveis cooptações políticas.

Estamos convencidos de que estas são condições indispensáveis na luta contra o esquecimento e o silenciamento dos crimes, de ontem e de hoje, em nosso país.

 Ações do GTNM/RJ

Várias conquistas, ao longo destes mais de 28 anos, foram alcançadas com denúncias e ações políticas junto aos órgãos do Estado, a outras entidades e à sociedade em geral.

A responsabilização de agentes do Estado por ações de violência, decorrentes das denúncias às instâncias públicas competentes, resultaram no afastamento de seus cargos ou no indiciamento judicial. Nos estados do Rio de Janeiro e de São Paulo, em 1991, por denúncia do Grupo Tortura Nunca Mais/RJ, médicos que emitiram laudos falsos colaborando com as práticas de tortura durante a ditadura tiveram seus registros cassados, sendo impedidos de exercer suas atividades profissionais, conforme determinações dos Conselhos de Medicina. O caso mais conhecido foi o do médico-psicanalista Amilcar Lobo, assessor de torturas, cassado em 1988. O GTNM/RJ contribuiu decisivamente com depoimentos de vários companheiros que comprovaram o trabalho perverso executado por esse “profissional de saúde” no Doi-Codi/RJ.

Continuamos, sistematicamente, enviando denúncias às autoridades constituídas do país, quando ocorrem nomeações de torturadores para cargos públicos e, principalmente, para os cargos de confiança.

 Medalha Chico Mendes de Resistência

Homenagem criada em 1989, quando em 31 de março, alguns oficiais do Exército homenagearam com a mais alta comenda daquela arma, a Medalha do Pacificador, vários civis e militares que participaram ativamente da repressão. Como resposta, o Grupo Tortura Nunca Mais/RJ criou uma Medalha para os resistentes, no sentido de afirmar outros embates, outros personagens, outras memórias. O primeiro evento ocorreu em junho de 1989 e vem sendo entregue, anualmente, no dia 1º de abril.

Com a Medalha Chico Mendes de Resistência, o Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro homenageia pessoas físicas ou jurídicas, nacionais ou internacionais, por suas lutas na defesa dos direitos à vida e à liberdade e por uma sociedade plural, fraterna e sem torturas, reafirmando sua dignidade e sua memória.

Em 2009,  quando  comemoramos 20 anos da outorga da Medalha, editamos um livro reunindo resumos biográficos dos homenageados e textos sobre suas trajetórias de vida, escritos por convidados.

 Projeto Clínico

Desde 1991, o GTNM/RJ desenvolve o pioneiro Projeto Clínico Tortura Nunca Mais. A ausência de uma política pública para o atendimento específico aos atingidos pela violência do Estado brasileiro, durante o período ditatorial, motivou a realização desse projeto que desenvolve atividades de assistência clínico-médico-psicológica, reabilitação física e social.

Posteriormente, em 2000, surgiu o Projeto de Apoio Jurídico, gratuito voltado para o mesmo público que, por falta de recursos financeiros, foi terminado em 2010.

Ambos foram financiados pelo Fundo das Nações Unidas para as Vítimas da Tortura. (UNVFVT/OHCHR – United Nations Voluntary Fund For Victims of Torture.) O GTNM/RJ recebeu, também, apoio da Comissão Europeia, da Anistia Internacional Sueca e da Fundação dinamarquesa OAK.

No combate à erradicação e luta contra a tortura, na data de 26 de junho – Dia Internacional de Luta contra a Tortura, criado pelas Nações Unidas – realizamos, anualmente, seminários, oficinas e exposições referentes ao tema.

 Memorial Ricardo de Albuquerque

Em maio de 1991, com apoio do então governo do estado do Rio do Janeiro, o Grupo Tortura Nunca Mais/RJ iniciou pesquisas no Instituto Médico Legal, no Instituto de Criminalística Carlos Éboli e na Santa Casa de Misericórdia. A documentação oficial mostrou a existência de três cemitérios no Rio de Janeiro que, ao final dos anos 60 e durante toda a década de 70, receberam mortos enterrados como indigentes, em diferentes épocas: Ricardo Albuquerque (entre 1971 e janeiro de 1974), Cacuia e Santa Cruz.

Segundo documentos encontrados nos três estabelecimentos pesquisados, pelo menos 14 militantes políticos foram sepultados, em Ricardo de Albuquerque, numa vala clandestina.

Cerca de 2100 ossadas foram retiradas desta vala clandestina com o apoio de dois médicos legistas, indicados pelo Conselho Regional de Medicina do estado do Rio de Janeiro/CREMERJ, Drs. Gilson Souza Lima e Maria Cristina Menezes, e da professora Nancy Vieira, antropóloga da Universidade do Estado do Rio de Janeiro/UERJ. De início, as ossadas recuperadas foram guardadas no IML de Campo Grande, sendo posteriormente transferidas para o Hospital Geral de Bonsucesso, entidade indicada pelo CREMERJ e que oferecia local adequado para a catalogação dos ossos do crânio e arcadas dentárias. Esse trabalho foi executado sob a supervisão da Equipe Argentina de Antropologia Forense, nas pessoas dos Drs. Luiz Fondebrider, Mercedes Doretti e Silvana Turner que estiveram no Rio de Janeiro, em setembro de 1991.

A tentativa de identificação continuou até março de 1993, com a presença dos membros da referida Equipe. Após este período, os peritos resolveram encerrar a investigação. Segundo parecer dos especialistas: “a tarefa de encontrar 14 ossadas entre cerca de 2.000 era sem dúvida muito complexa, estando todas misturadas e em péssimas condições”. Acrescentaram, ainda, a impossibilidade de fazer, nessas 2.100 ossadas, exame de DNA. Em torno de dez por cento dos crânios e ossos longos, foram catalogados, separados e guardados no Hospital Geral de Bonsucesso até 2011, quando as ossadas foram trasladadas para o Memorial Ricardo de Albuquerque, iniciativa do GTNM/RJ com recursos disponibilizados pela Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro.

Consideramos a criação do Memorial de Ricardo de Albuquerque, fato de relevância nas ações propostas e compromissos assumidos por nossa entidade, pela afirmação de nossa memória e da verdade histórica. Este memorial é até o momento, o único marco histórico construído por um movimento social em homenagem aos mortos e desaparecidos da ditadura civil-militar.

Arquivos do DOPS/RJ

Em 1983, ainda em pleno período de ditadura, ao ganhar as eleições nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro oposições ao regime (Franco Montoro e Leonel Brizola), os arquivos do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) do Rio de Janeiro e de São Paulo, passaram para a esfera federal. Ficaram em mãos da Polícia Federal.

Somente em 1992, por pressões de vários movimentos como o Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro, passaram para as mãos dos governos dos respectivos estados.

O GTNM/RJ, com autorização do então vice-governador do estado do Rio de Janeiro, Dr. Nilo Batista, iniciou uma extensa pesquisa nos arquivos do DOPS/RJ. Seu foco principal foram os mortos e desaparecidos políticos, especialmente esses últimos.

Essa pesquisa tornou evidente que muitos documentos foram dali retirados. Os desaparecidos, principalmente os mais velhos, militantes do PCB – Partido Comunista Brasileiro, não possuíam qualquer informação. Seus nomes não constavam nos arquivos!

Apesar disso, o GTNM/RJ encontrou alguns depoimentos de mortos e, especialmente, o do desaparecido político Joel Vasconcelos. Por um documento vindo do Doi-Codi/RJ, comprovou-se que Joel foi preso e interrogado naquele centro de torturas.

Essas pesquisas também permitiram que se encontrassem dois novos nomes de mortos políticos que não se encontravam nas listagens até então organizadas: Alberto Aleixo e Neide Alves dos Santos, militantes do PCB.

Através também dessas pesquisas e ao ser procurado pela irmã de um estudante argentino desaparecido em 1973, em Buenos Aires, o GTNM/RJ conseguiu informações sobre Enrique Ernesto Ruggia que entrou clandestino no Brasil com outros brasileiros exilados. Teve também seu nome incluído na listagem oficial de desaparecidos políticos no Brasil.

Milhares de páginas sobre mortos e desaparecidos políticos foram copiadas do arquivo e encontram-se no GTNM/RJ abertas ao público. Neste ano de 2013, a Comissão de Direitos Humanos da OAB copiou tais documentos e os encaminhou à Comissão Estadual da Verdade/RJ – CEV/RJ.

Foram tais pesquisas no arquivo do DOPS/RJ que permitiram ao GTNM/RJ publicar, junto com outros grupos de familiares, o “Dossiê dos Mortos e Desaparecidos Políticos a Partir de 1964” entregue ao Presidente Fernando Henrique Cardoso, em 1994.

 Lei 9.140/95

O Programa Nacional de Direitos Humanos I (PNDH I) estabeleceu medidas de curto, médio e longo prazos abrangendo políticas públicas, mas na prática, não foi implementada uma política eficaz de promoção e proteção aos direitos humanos.

Entre as principais medidas legislativas foi criada a Lei 9.140/95, que trata da questão dos mortos e desaparecidos políticos. Os aspectos limitados e perversos dessa lei e a questão dos direitos humanos e cidadania em nosso país ficaram desvinculados do conhecimento de nossa memória histórica. Em aproximadamente 16 anos, ações governamentais necessárias não foram executadas.

A referida Lei estabelecia que o ônus da prova, sobre os crimes cometidos pelos agentes do Estado, contra os opositores do regime ditatorial, caberia aos familiares. A Lei instituiu a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Na primeira fase dos trabalhos, a Comissão decidiu realizar reparação pecuniária. Teve, sobretudo, a atribuição de definir as circunstâncias das mortes e a identificação das ossadas dos desaparecidos políticos. Muito pouco foi alcançado por essa Comissão, nas buscas por esclarecimento dos fatos históricos.

Guerrilha do Araguaia – Sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos

Entre os anos de 1972 e 1975, sob o regime ditatorial, as Forças Armadas realizaram uma série de operações militares na região sul do estado do Pará, divisa com os estados do Maranhão e Tocantins, cujo objetivo era exterminar a Guerrilha do Araguaia. Durante as operações, os agentes públicos e seus cúmplices foram autores de graves violações dos direitos humanos – como detenções ilegais e arbitrárias, torturas, execuções sumárias e desaparecimentos forçados – os quais estavam inseridas em um padrão sistemático e generalizado de repressão política contra opositores ao regime e também contra a população civil.

Diante da omissão do Estado e na falta de informações sobre o paradeiro de seus entes queridos, 22 familiares, representando 25 desaparecidos políticos na Guerrilha do Araguaia, interpuseram, em 1982, uma ação ordinária para o reconhecimento do fato perante a Justiça Federal brasileira.  Cobravam a localização e o traslado dos restos mortais de seus familiares, bem como a entrega de informação oficial sobre as circunstâncias de seus desaparecimentos.

Passados treze anos da interposição da ação, pela falta de diligências eficazes e a consequente inexistência de procedimentos judiciais, os familiares, em 1995, peticionaram uma denúncia internacional contra o Estado brasileiro, perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA).

Foram entidades postulantes junto à CIDH: Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil), Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro e Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos de São Paulo.

A CIDH concluiu a admissibilidade da ação, e encaminhando-a à Corte Interamericana de Direitos Humanos, em 2008.

Esta, em 2010, exarou sentença para o Caso Gomes Lund (Araguaia) X Estado brasileiro, decidindo e declarando, entre os resolutivos propostos que:

O Estado é responsável pelo desaparecimento forçado e, portanto, pela violação dos direitos ao reconhecimento da personalidade jurídica, à vida, à integridade pessoal e à liberdade pessoal, estabelecidos nos artigos 3,4,5,7 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (…)”, (Sentença da Corte, 2010, p. 114)

 A Corte estabeleceu um período de dois anos para o cumprimento da Sentença.  Um dos  resolutivos foi a criação de um Grupo de Trabalho (GTA), com a atribuição de realizar o levantamento, na área da Guerrilha, dos sítios onde foram enterrados os combatentes e a identificação dos seus restos mortais. O que, até hoje, não ocorreu, a despeito de gastos públicos no período entre 2009 a 2012, que chegam a ordem de doze milhões de reais.

Comissão Verdade

Vale lembrar que um dos resolutivos da Corte seria instituir uma Comissão da Verdade e da Justiça. Durante a Audiência Pública da Corte, em maio de 2010, em San José da Costa Rica, o governo brasileiro encaminhou ao Congresso Nacional um anteprojeto de lei para a criação de uma Comissão.

E, no bojo de tais questões foi votada a “toque de caixa”, em regime de urgência, urgentíssima, o projeto para a Comissão da Verdade, com atribuições bastante limitadas.

Estreitou-se a margem de atuação da Comissão, dando-lhe poderes legais diminutos. Fixou-se um pequeno número de integrantes, escolhidos diretamente pela Presidência da República, não tendo orçamento próprio e com duração de apenas dois anos, desviando o foco de sua atenção, ao estabelecer em 42 anos o período a ser investigado (de 1946 a 1988), minimizando na história do Brasil, os anos da ditadura civil-militar. Além disso, impede-se que a Comissão investigue as autorias e responsabilidades pelas atrocidades cometidas enviando as devidas conclusões às autoridades competentes para que estas promovam a responsabilização dos criminosos.

O Estado continua guardando sigilo, produzindo segredo sobre aquele período de terror. Como resultado constata-se a produção do esquecimento, apesar de terem sido instituídas, até o ano de 2013, 77 Comissões da Verdade a nível estadual, municipal, universitário, sindical, entre outras.

Violência de Estado e (In)Segurança Pública – Chacinas

A cidade do Rio de Janeiro, como cenário dos acontecimentos ocorridos nos anos 90, caracteriza a materialização, a exacerbação da violência urbana através das interconexões entre as forças de segurança e o chamado crime organizado, conformadas no âmbito de enormes desigualdades sociais. Nesse contexto de violência urbana, o aparecimento e concentração de chacinas praticadas por representantes das chamadas forças de segurança contra a pobreza expressam a escalada da repressão, emblemática através da violência estatal perpetrada contra os considerados perigosos.

(…) “civilização e barbárie é um produto do nosso tempo, visto que nunca se utilizou tanto esses dois conceitos, justamente em um momento em que a segurança torna-se a palavra de ordem. Com ela está o controle, a punição, a tutela, embora uma de suas funções seja, justamente, a de dissimulá-los e naturalizá-los”. (Por uma invenção ética para os Direitos Humanos: Coimbra, Lobo e Nascimento, 2013)

A ocorrência sistemática de assassinatos revela a ação efetiva de políticas de Estado, que, ao invés de garantir proteção ao conjunto da sociedade, a distorce, assumindo de forma bastante clara ações contundentes e criminalizantes contra os indesejáveis. Conformando assim, de um lado, o espraiamento ideológico de um espaço de subordinação a ser internalizado pelos subalternizados, e de outro, as formas de violência física e ações letais a ele direcionadas.

O GTNM/RJ participa de ações e denúncias junto com outras entidades de direitos humanas contra a violência policial, na atualidade, na cidade do Rio de Janeiro. São parceiros do Grupo as seguintes organizações nacionais: Ordem dos Advogados do Brasil/RJ (OAB/RJ), Associação Brasileira de Imprensa (ABI), Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL), Justiça Global, Rede de Movimentos contra a Violência, Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Petrópolis, Sindicato dos Jornalistas/RJ, Sindicato dos Professores do Município do Rio de Janeiro (SINPRO), Sindicato dos Professores da Rede Pública/RJ (SEPE), Sindicato dos Petroleiros (SINDIPETRO) entre outros.

Organizações Internacionais: Federação de Familiares de Desaparecidos e Presos da América Latina (Fedefam); IRCT – International Rehabilitation Council for Torture Victims; Rede Latinoamericana de Saúde Mental e Direitos Humanos

Tortura nas Forças Armadas brasileira e o Caso Cadete Lapoente

O tema é bastante delicado e, no Brasil, considerado tabu. Pela força, prestígio e poder que as Forças Armadas ainda desfrutam em nosso país. Não se tem notícias de como e quando ocorrem as investigações. Existem denúncias e testemunhos de rotina de humilhações e coações no cotidiano dos treinamentos militares. Episódios envolvendo maus tratos nas Forças Armadas são comuns, mas dificilmente denunciados. Até hoje o GTNM/RJ continua recebendo denúncias sobre tais fatos.

O Grupo Tortura Nunca Mais/RJ denunciou, em 2001, perante o Comitê Contra a Tortura das Nações Unidas, em Genebra, 23 casos de tortura e morte nas Forças Armadas. Entretanto, somente em quatro desses casos houve continuidade para as denuncias apresentadas. Em todos os outros, pressionadas de diferentes formas, as pessoas autoras das denúncias desistiram.

Em 2013, o Estado, por meio da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, criou um Grupo de Trabalho vinculado ao Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH), para investigar as violações de direitos humanos ocorridas no âmbito das Forças Armadas brasileiras constantes do estudo elaborado pelo Grupo Tortura Nunca Mais/RJ, apresentado à ONU naquele ano de 2001, a partir do caso do Cadete Lapoente, quando tais denúncias de violência nas Forças Armadas foram passíveis de ser investigadas.

Marcio Lapoente da Silveira, aluno da Academia Militar das Agulhas Negras – (AMAN), escola de formação de oficiais do exército brasileiro, morreu durante treinamento militar ordinário. Denúncias e testemunhos apontavam excessos cometidos pelos oficiais instrutores, nos exercícios, o que constituiu causa determinante para o óbito, no ano de 1990.

A família impetrou processo judicial contra os oficiais responsáveis pelo treinamento, que se encontra, ainda, inconcluso. Devido à morosidade da Justiça brasileira e com o apoio do GTNM/RJ, os familiares do Cadete recorreram à CIDH da OEA.

Finalmente, em 2011 foi estabelecido entre o Estado brasileiro e a família um Acordo de Solução Amistosa, finalmente, reconhecendo a responsabilidade do Exército brasileiro pela morte do Cadete Lapoente.  Na Cláusula nº 8 do Acordo, ficou determinada a inauguração de placa em homenagem aos cadetes falecidos, em atividade de instrução, no decorrer do Curso de Formação de Oficiais e em homenagem a Márcio Lapoente da Silveira. A placa foi fixada nas instalações da AMAN durante cerimônia, no ano de 2012 com a presença de seus familiares, amigos e do Grupo Tortura Nunca Mais/RJ.

 Conclusões

Sistematicamente, temos denunciado antigos e novos casos de tortura, exigindo a responsabilização para aqueles que cometeram crimes de lesa-humanidade, por meio de notas na mídia, entrevistas, atos públicos, seminários e outras atividades.

Os crimes cometidos pela ditadura civil-militar, que controlou o Brasil por mais de 20 anos, permanecem desconhecidos e os documentos que comprovam essas atrocidades continuam sob sigilo, assim como os testemunhos daqueles que cometeram graves violações aos direitos humanos, em nome do Estado brasileiro.

Concluindo, citamos o resolutivo de Sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que declara sobre o caso Gomes Lund (Araguaia)X Estado brasileiro, por unanimidade (Sentença da Corte, 2010 p. 114):

“As disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a Convenção Americana, carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para investigação dos fatos do presente caso, nem para identificação e punição dos responsáveis, e tão pouco podem ter igual ou semelhante impacto a respeito de outros casos de graves violações de direitos humanos consagrados na Convenção Americana ocorridos no Brasil”.

O Estado brasileiro não deu cumprimento no prazo determinado à recomendação da Corte referente ao caso Araguaia que estendeu esta sentença aos cerca de 500 mortos e desaparecidos políticos, afirmando que a interpretação oficial da Lei da Anistia não é empecilho para tais atos reparatórios.

Importantes setores da sociedade brasileira não dão o devido destaque para o teor da Sentença que possibilita, de uma vez por todas, o resgate da dívida histórica em relação ao período da ditadura civil-militar brasileira.

Lutamos por uma Comissão Nacional da Memória, Verdade e Justiça onde todos os arquivos da ditadura sejam abertos, divulgados e que o período de terrorismo de Estado (1964-1985) possa ser, efetivamente, investigado e dado a conhecer para toda a sociedade brasileira.

Queremos, sim, que nossa história recente possa ser compartilhada por todos, e que os agentes do Estado terrorista possam ser execrados socialmente e responsabilizados por seus bárbaros atos.

 Premiações e publicações do Grupo Tortura Nunca Mais/RJ

1999

Concedido pelo Grupo de Apoio Mútuo da Guatemala – Homenagem: Placa.

Ato de reconhecimento a sua luta entre os presos e desaparecidos de todo o mundo.

2001

Homenagem ao GTNM/RJ quando da comemoração dos 70 anos de existência do Sindicato dos Professores do Estado do Rio de Janeiro – SINPRO/RJ. Troféu.

2003

Prêmio USP de Direitos Humanos ao GTNM/RJ vencedor da modalidade “Institucional”.

Ordem dos Advogados do Brasil/RJ (OAB/RJ) ao GTNM/RJ pelo reconhecimento à dedicação e contribuição inestimável à causa dos Direitos Humanos.

2004

Premio João Canuto de Direitos Humanos ao GTNM/RJ por sua luta em defesa aos Direitos Humanos e Justiça Social – Movimento Humanos Direitos (MhuD) – CFCH/UFRJ. Troféu.

2005

Prêmio Austragésilo de Athayde – Governo do estado do Rio de Janeiro.

2006

Museu da República – Título de Personalidade Republicana.

FEDEFAM – Federação Latino-Americana de Associações de Familiares de Presos e Desaparecidos – Diploma de reconhecimento ao GTNM/RJ por “sua luta, resistência e persistência na busca pelos direitos à verdade, justiça e contra a impunidade”.

2008

Comenda “Mediadores da Paz” em reconhecimento a sua relevante contribuição em prol da promoção à cultura de paz – Associação dos Familiares e Vítimas de Chacina de Vigário Geral.

2009

FIOCRUZ – Sindicato dos Trabalhadores – Medalha Jorge Careli de Direitos Humanos – Contribuição à luta em defesa dos direitos humanos e por sua participação nas homenagens ao patrono da Medalha.

2012

Moção de Aplausos e Louvor ao GTNM/RJ da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro – ALERJ.

Casa da América Latina – “Medalha Abreu Lima” – Em reconhecimento por promover a solidariedade internacionalista entre os povos Latino-Americanos.

2013

Prêmio Zuzu Angel – da Secretaria Estadual de Mulheres do PSB/RJ – Homenagem às mulheres do GTNM/RJ – Atuais militantes e in memoriam às companheiras falecidas.

 Publicações

HELOYSA, Branca (Org.).  Primeiro Seminário do Grupo Tortura Nunca Mais, Editora Vozes, 1987.

Grupos Tortura Nunca Mais/RJ e PE, Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos SP (Orgs.). Dossiê dos Mortos e Desaparecidos Políticos a Partir de 1964, Companhia Editora Pernambuco, PE, 1995.

RAUTER, Cristina / PASSOS, Eduardo / BENEVIDES, Regina de Barros (Orgs.). Clínica e Política I,  Editora Te Corá, Instituto Franco Basaglia/RJ, 2002 (esgotado).

CALHAU, Janne (Org.), JORGE, Marco Aurélio, (Colaborador). Clínica e Política II Editora Abaquá/RJ, 2009.

COIMBRA, Cecília Maria Bouças / BULCÃO, Irene /AQUINO, Rubim Santos Leão (orgs.). Medalha Chico Mendes de Resistência,  Editora Abaquá/RJ, 2009.

FORMAGINI, Beth, (Diretora). Memória para uso Diário, Documentário (80min), 2009. Recebeu vários prêmios nacionais e internacionais.

 Pela Vida, Pela Paz

Tortura Nunca Mais!



[1] Presidente do GTNM/RJ, familiar de três desaparecidos na Guerrilha do Araguaia e Professora

[2] Socióloga e militante do GTNM/RJ

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