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- 23 de julho de 2017

Carta para um jovem estudante de arte

Caro Andrei, você não me conhece, sou um velho professor da Universidade onde você estuda. Vi seu rosto na mídia, li a matéria sobre o episódio ocorrido na delegacia onde a sua face foi transfigurada.  Apesar do corpo cansado, do cansaço decorrente deste insuportável momento em que vivemos no Brasil, e no mundo, desejo lhe agradecer por presenciar um ato de coragem. Ganhei força após saber da sua atitude de não emudecer, de mostrar a cara ferida, de fazer da dor e da humilhação algo que não seja exclusivamente seu. Ouvi na TV a sua fala com os lábios inchados, sem os dentes arrancados na delegacia pelo policial. Não consegui ficar paralisado após o seu depoimento. Ato corajoso que me arrancou da poltrona; negou-me o torpor dos imobilizados pela tristeza incitando-me a fazer algo que não sabia o que seria. Espanto, sim caro estudante, um desacomodador espanto. Desconhecia o que fazer, mas o corpo estava teso, com tônus suficiente para sentir a sensação que precede o vômito, expressão utilizada por Theodor Adorno para definir a obra de Franz Kafka. Desculpe o tom professoral, a citação acadêmica, mas lembrar da contenção do vômito é uma urgência política para este momento das catarses em excesso nas redes sociais, na mídia e fora dela. O catártico que alivia misérias cotidianas quando promove celeremente o esquecimento de acontecimentos insuportáveis; o catártico que entorpece os efeitos do horror que se espraia em múltiplos espaços. Atualmente opina-se muito, chora-se muito, emociona-se muito, enfurece-se muito e nada acontece. Catarse refrescante, apaziguadora, porém cúmplice do aniquilamento da vida caso ela ultrapasse os limites do biológico. A vida como enfrentamento às amarras do destino, às sinas, às verdades que não ousam dizer de onde vieram e como foram urdidas. Vida como força que testa, põe à prova, inquire sem permitir repouso. O expelir catártico somente alivia e enrijece o corpo e aquilo que denominamos eu.  Andrei, a coragem afirmada na denúncia do agressor lotado em um órgão público bloqueou o vomito. Lembrei de operações executadas nos cárceres do passado. O seu ato urdiu o involuntário da minha memória. Da urdidura vi imagens de rostos deformados em inúmeros lugares; rostos desenhados por imagens turvas onde só se distinguia a intensidade da dor. A coragem que me espantou esboroa a nitidez de um corpo torturado. Embaça também os autores da barbárie. Os autores do espancamento foram muitos. Pastores, cientistas, famílias ilibadas, psicólogos, esportistas, torturadores do passado, jornalistas, entre outros, conjugaram suas forças na mão do policial que lhe arrancou os dentes. A sua coragem mostra este coletivo que diz não à concepção de vida mencionada anteriormente.   Mortos e vivos do passado e do presente agradecem este ato.

Caro estudante de arte, na obra de Kafka os heróis fracassam, as mensagens edificantes são inexistentes, o conforto de uma resposta às nossas angústias é recusado. Não reconheci na sua fala a missão dos heróis que enfrentam o medo. Avalio que você saiba que o medo alimenta os ratos. Não o medo da prudência que nos mantém vivo. O temor que alimenta coisas abjetas  enfraquece, serviliza,  produz desatenção ao que resta de potência no mundo. A bravura heróica inexiste na sua atitude. Ao denunciar o policial não percebi o cumprimento de uma missão moral, ou a qualidade de um caráter, mas a interrupção de um tempo célere que nos faz esquecer, seguir em frente rumo ao presente descartando como inútil o que passou. Tempo das imagens e das palavras que se esvanecem rapidamente sem ao menos ter dado um sinal de alarme, de perigo para enfrentarmos os visíveis e invisíveis genocídios cotidianos.

Andrei, a sua coragem ao afirmar que na delegacia de polícia tortura-se, humilha-se, escapa da banalização das denúncias jornalísticas. Não, caro estudante da UFF, ela propicia o vigor para continuarmos atentos às forças do mundo disponíveis para dissiparmos uma barbárie particular da atualidade, a que dissipa a potência da palavra e da imagem. O seu ato interrompeu a anestesia advinda do palavrório onde o eu é soberano; interferiu no anestésico universo das imagens e das palavras em excesso, onde a carne falta. A sua cara desfigurada e suas palavras a indicar a autoria da barbárie ofertou a inconclusão do passado, urgências do agora, apelos para que alguém continue a contar o que aconteceu na delegacia sem omitir a dor da perda dos seus dentes.

Caro Andrei, ao denunciar o agressor você esqueceu o perigo deste gesto.  Esquecimento próximo a uma epifania de felicidade, dadivosa, o olvidar da coragem como exercício de liberdade. Você esqueceu palavras de ordem, de comando enunciadas por modalidades de existências fascistas, ou por aquelas que fertilizam o solo para a eficácia destas modalidades. Palavras de ordem, enunciações que matam ou enfraquecem. No uso do esquecimento feliz você esqueceu que viado bom é viado morto. Eu não escolhi ser gay, eu nasci gay. Prefiro ter um filho assassino do que bicha Os gays são frágeis e sensíveis. Respeitem os homossexuais eles são determinados geneticamente. Futebol não é esporte de viado. Os gays são condenados ao sofrimento. A alegria desta gente é interminável. Na minha casa viado e sapatão não entram. Devemos os perdoar em nome de Deus. Eu amo os gays.

Caro estudante de arte, o esquecimento feliz da sua coragem o colocou atento  aos apelos dos perigos do agora. Muitos morrem neste momento e muitos lutam. Este olvidar requer atenção ao mundo, às suas belezas e horrores. Coragem estranha ao brilho de uma alma olímpica, aos guerreiros de qualquer espécie. Coragem que afirma o sim à recusa do medo que alimenta os ratos, o sim do exercício inesgotável de liberdade que nos retira das amarras do destino, de uma sina, de uma culpa que não nos pertence.

Caro Andrei, agradeço por ter me propiciado espanto e me fazer escrever.

Luis Antonio Baptista, professor do Instituto de Psicologia da UFF

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